O laisser-faire é libertário?
A persistente popularidade do liberalismo vem do fato de nunca sabermos por onde pegá-lo. Criticamos seu aspecto econômico? Seus partidários insistem em sua contribuição ao pluralismo político e à diversidade culturalSerge Halimi
Um é um filósofo que ganhou status de referência na contestação antiprodutivista. O outro, um acadêmico de menos de 30 anos que comanda um seminário na École Normale Supérieure. Certamente brilhantes, seus respectivos trabalhos parecem abranger os dois polos entre os quais tateia a esquerda francesa.
Jean-Claude Michéa e Geoffroy Lagasnerie discordam sobre quase tudo. O primeiro combate tanto o liberalismo econômico como o cultural; o segundo os saúda como um “foco de imaginação.” Ambos concordam, no entanto, em considerá-los ligados entre si. É aí que reside seu erro comum.
Livro após livro, Michéa aprofundou a ideia de que os defensores da “transgressão moral e cultural permanente” estavam limpando o terreno, na vertente à esquerda do campo político, para os “predadores das finanças globais”.1 O último livro de Lagasnerie parece confirmar tal intuição, uma vez que o jovem defensor de Michel Foucault, preocupado com as “pulsões autoritárias” da esquerda, opõe a elas, com uma benevolência apoiada, o “pluralismo” dos pensadores liberais da Escola de Chicago.2
O trabalho de Michéa, que frequentemente se refere a George Orwell e Christopher Lasch,3 preocupa-se acima de tudo em ressuscitar as tradições populares da esquerda. E assim bate com vigor e entusiasmo em seu desvio burguês, mercantil, em suas “pretensões intelectuais”. Acreditando que “a propaganda socialista só faz sentido se for destinada em primeiro lugar aos ‘humildes’”, Michéa recomenda que ela privilegie “tanto a empregada doméstica que joga na loteria toda sexta-feira como o trabalhador imerso na leitura cotidiana do L’Équipe, o empregado amante da pesca com vara ou a velhinha que passeia com seu poodle”.4
A construção de tipos ideais opostos (o trabalhador viril louco por futebol; o burguês parisiense que circula de bicicleta) tem virtudes pedagógicas, produzindo o humor ou a ira, mas corre o risco de oferecer uma imagem superficial e ultrapassada da sociedade. De um lado, vigor, franqueza, camaradagem; do outro, hedonismo, artifício e lucro. O povo de Michéa é Jean Gabin em La belle équipe. Musculoso, francês, chefe de família. Quanto à esquerda louca pela modernidade que ele talentosamente esmaga, ela parece resumir-se aos leitores cada vez menos numerosos do Libération e da revista Les Inrockuptibles. Aqueles cujo “progressismo” só visaria “desinstalar, um a um, todos os traços e todas as raízes do passado”, ainda que, “se as classes populares vivem hoje cada vez pior, é porque, para elas, as coisas eram um pouco melhores antes”.
Segundo Michéa, a esquerda e a extrema esquerda são excessivamente “modernas”. Já Lagasnerie as reprova por não serem modernas o bastante. Apoiando-se em cursos dados por Foucault no Collège de France, ele teme que a denúncia do neoliberalismo dissimule a nostalgia de um mundo autoritário, burocrático: “Aqui, chegamos a um problema central, ao qual são confrontados todos os grandes autores radicais: como neutralizar a pulsão passadista ou reacionária necessariamente inscrita no coração de qualquer projeto crítico? Como questionar uma ordem presente sem que isso leve, quase automaticamente, a uma adesão à ordem antiga ou a uma percepção desta como um momento do qual só podemos sentir saudade? E, portanto, como conceber uma investigação crítica do neoliberalismo que não apresente de maneira valorizada aquilo que o neoliberalismo derrotou, que não se apoie, consciente ou inconscientemente, nos valores pré-liberais?”.
Michéa e Lagasnerie são ao mesmo tempo opostos e complementares. Se um não existisse, o outro o teria inventado. Enquanto o primeiro vê a detonação dos “limites morais e naturais” tradicionais como “o componente cultural indispensável do liberalismo”, o segundo defende uma “percepção positiva da invenção neoliberal” a serviço das “mobilizações das minorias” e da “crítica radical dos fundamentos do exercício do poder disciplinar”. Pensadores neoliberais como Gary Becker5 teriam, diz Lagasnerie, ampliado o espaço da liberdade pessoal, deslegitimando o Estado e seus mecanismos de controle social. A seu ver, qualquer decisão humana – inclusive o casamento e o crime – adviriam na verdade de um cálculo econômico. Assim são realizados grandes julgamentos morais, recorrendo aos psiquiatras, “operações de classificação dos indivíduos entre normais e anormais”. Em suma, a Universidade de Chicago chegou à Escola de Frankfurt.6
Falta de espessura sociológica
Há passarelas entre os dois sistemas de pensamento. Alguns libertários norte-americanos reivindicam ao mesmo tempo a descriminalização da maconha, o direito ao casamento homossexual e o desmantelamento do Estado de bem-estar total. No entanto, personalidades nada apagadas, como Augusto Pinochet, Ronald Reagan, Margaret Thatcher ou Deng Xiao Ping, lembraram que é possível colocar em prática o neoliberalismo e simultaneamente manter, ou até consolidar, os dispositivos estatais de controle social e repressão. Inversamente, não faltam no mundo artistas, livre pensadores, ateus, noctâmbulos e viciados que execram o capitalismo financeiro. Michéa e Lagasnerie sabem disso; chegam até a mencionar furtivamente a questão. Mas ainda assim…
No entanto, seus postulados opostos abrangem duas linhas ainda mais sedutoras intelectualmente, coerentes mesmo, na medida em que citam ou interpretam textos, compõem categorias, porém não questionam sua espessura sociológica ou seu destino histórico. Assim, quando afirma que “um militante de esquerda é essencialmente reconhecível, hoje, pelo fato de que lhe é psicologicamente impossível admitir que”, em qualquer que seja o campo,7 “as coisas podem ter sido melhores antes”, de que militante de esquerda Michéa está falando exatamente? Será que ele realmente acredita que todos foram atingidos pelo “complexo de Orfeu”, isto é, estão submetidos a uma “crença metafísica no sentido da história”, aterrorizados pela “proibição religiosa de olhar para trás”? Até recentemente, a esquerda era criticada justamente por sua postura nostálgica, suas presidências que começavam no Panteão, sua mania de comemoração.8
Michéa também força a barra quando afirma que a direita, por sua vez, deixou de ser reacionária. Mas, um pouco como sua definição do proletariado, a de reação – pré-capitalista, nostálgica do Antigo Regime, submissa ao poder da Igreja – parece remeter à de um passado concluído, o que lhe permite ligar os dois lados a uma mesma fascinação atordoada da modernidade, do mercado, do individualismo, do desenraizamento, do cosmopolitismo boêmio. Mas a recorrência, no seio da direita, de propostas hostis à Revolução Francesa, à soberania popular, bem como os cortejos de famílias católicas indignadas com o casamento homossexual, sugere que os reacionários não desapareceram com Charles Maurras.
A aposta perdida de Foucault
Lagasnerie não está interessado na história política do neoliberalismo. Mas ele bem sabe que Milton Friedman deu conselhos a Pinochet; Friedrich Hayek e Becker, a Reagan e Thatcher. Isso não o impede de afirmar que seus trabalhos “desdramatizaram a reflexão sobre o crime”, “livraram[-na] da influência que exercia sobre ela categorias morais e moralizantes”: “Com o neoliberalismo, o conjunto do sistema penal entra em colapso e se desestabiliza, uma vez que ele se assenta na patologização do criminoso e no poder psiquiátrico”. Singular desestabilização que, no tempo de Reagan e de Thatcher (para nem falar de Pinochet), castigou a miséria e mandou um número recorde de presos para o corredor da morte. Os liberais teriam avaliado, porém, que tamanha repressão tinha “um preço – em termos de efetivos policiais, funcionamento da justiça etc. Em consequência, a própria ideia de identificar e punir todos os criminosos é absurda. O custo de tal política seria […] muito amplamente superior aos benefícios que a sociedade poderia colher dela”.
No mundo real, os liberais tiveram de fazer outros cálculos… E não se contentaram em produzir textos: apoiaram políticas públicas. Com o mesmo tropismo positivista, seus teóricos mais apegados à “economia do crime” perceberam que, considerado seu custo para a sociedade (furtos e roubos, assassinatos, sistemas de proteção e segurança, seguros, problemas psicológicos etc.), todas as despesas do sistema prisional tornavam-se justificadas, até vantajosas.
Além disso, se, como creem os economistas neoclássicos, o criminoso faz um cálculo antes de cometer seu crime, então é o caso de elevar constantemente o preço do crime (penas intermináveis, assédio, execuções), na esperança de levar aqueles que se sentirem tentados à conclusão de que o crime já não compensa. Esse raciocínio reduziu a cinzas a construção, em grande parte especulativa, que associa os ultraliberais ao liberalismo penal e judiciário. Em 1978-1979, quando dava aulas no Collège de France, Foucault podia a rigor tentar uma aposta contrária. Algumas décadas depois, o jogo acabou – e a aposta foi perdida.
Mas o trabalho intelectual continua. Porém, nossa eventual salvação não surgirá da reinterpretação maravilhada das teorias neoliberais nem da ressurreição do proletariado do século passado.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).