O Mercosul aos 30 anos: ajustes e reflexão em um cenário de incertezas
No encontro virtual pelos trinta anos do Mercosul, em março, ficou evidente o descompasso entre os líderes, inclusive com a abrupta retirada do presidente brasileiro da reunião. A grave crise sanitária vivida pela região e os devastadores efeitos econômicos da pandemia deveriam ser uma oportunidade para intensificar as convergências, mas a realidade tem revelado dissensos e desarticulação
No dia 26 de março de 2021, o Tratado de Assunção completou trinta anos. Naquela mesma data, em 1991, Fernando Collor de Mello e seus congêneres da Argentina, Carlos Saúl Menem; do Uruguai, Luis Alberto Lacalle; e do Paraguai, Andrés Rodríguez Pedotti, assinaram o acordo que deu vida ao Mercado Comum do Sul (Mercosul).
O bloco surgiu com um perfil nitidamente comercial, mirando, inicialmente, a formação de uma união aduaneira. Almejava-se uma maior dinamização dos fluxos de trocas entre os Estados parceiros, bem como elevar a capacidade de competitividade de cada um dos sócios no mercado internacional. Em suma, o Mercosul nasceu sob o signo dos enormes desafios econômicos que o mundo do pós-Guerra Fria impunha aos países em desenvolvimento.[1]
Entretanto, a integração do Brasil com os seus vizinhos esteve longe de ser um processo natural. A história dessa complexa relação, especialmente no que se refere aos dois maiores países da América do Sul, foi marcada pela alternância de períodos de disputa e cooperação. Desde a consolidação das independências nacionais, Brasil e Argentina se enxergavam como adversários na concorrência pela liderança regional, por vezes trazendo à tona instabilidades e tensões de toda ordem, sobretudo na região do Rio da Prata. Essa rivalidade, que hoje encontra-se basicamente restrita ao futebol, já levou os dois países ao confronto direto, no episódio que ficou conhecido como “Guerra da Cisplatina”, no Brasil, e como “Guerra del Brasil”, na Argentina.[2]
Por muito tempo, a desconfiança moldou as orientações diplomáticas de ambos os países, inviabilizando a ratificação de acordos ensaiados ao longo das décadas e constrangendo os esforços mais sólidos de cooperação. Esses posicionamentos erráticos só deram lugar a uma aproximação bilateral perene a partir do último presidente do regime militar, João Figueiredo (1979-1985). A lógica de predomínio da rivalidade sobre a cooperação foi devidamente invertida, estabelecendo-se uma longa fase de diálogos harmônicos, permeados pelos esforços de reequilíbrio nas relações entre Brasília e Buenos Aires. Essa aproximação amigável favoreceu uma ressignificação recíproca da imagem do outro e possibilitou a assinatura do Acordo Tripartite Itaipu-Corpus (1979), solucionando um complexo contencioso sobre o aproveitamento dos recursos hídricos do Rio Paraná, destravando as negociações envolvendo a construção das hidrelétricas Itaipu e Corpus.
O passo seguinte ocorreu em ambiente democrático. Em 1985, os presidentes José Sarney (1985-1990) e Raúl Alfonsín (1983-1989) assinaram a Declaração de Iguaçu, marcando não apenas a plena sintonia política entre os dois governos, mas o lançamento das bases de um plano estratégico de integração binacional. Estava claro que as duas maiores democracias da América do Sul haviam sobrepujado, de forma definitiva, a ideia de ver no outro uma ameaça geopolítica, militar e econômica. Tornam-se recorrentes, a partir de então, as referências às palavras “integração” e “amizade” no léxico dos governantes, e inaugurou-se um esforço criativo em torno de uma agenda comum, com os seguintes resultados: o Programa de Integração e Cooperação Econômica (Pice); o Protocolo de Cooperação Nuclear; e o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento.
Em 1991, finalmente, o debate sobre a integração acabou transbordando para além do eixo Brasil-Argentina. O Tratado de Assunção ganha vida nesse contexto de uma América do Sul redemocratizada e interessada em acelerar a modernização econômica mediante esforços sinérgicos, razão pela qual são incorporados os dois sócios menores: o Uruguai – país que desde o final dos anos 1980 expressava vontade de se aproximar dos dois vizinhos maiores – e o Paraguai – Estado com o qual os demais nutriam uma espécie de “dívida histórica” por conta da destruição provocada pela Tríplice Aliança na “Guerra do Paraguai”. E assim surgiu o Mercado Comum do Sul.[3]
A evolução do Mercosul
Desde as suas origens, o bloco passou por fases importantes. Houve avanços e recuos, principalmente no que se refere à sua arquitetura institucional. Na esfera comercial, o bloco apresentou avanços expressivos durante muitos anos. Em contrapartida, a coordenação macroeconômica esbarrava tanto no problema da assimetria entre seus sócios, como nos desencontros das políticas cambiais em curso, por causa da opção dos países-membros pela persistência da preservação de plena autonomia nos respectivos processos decisórios.
Ao completar trinta anos, e apesar de muitas idas e vindas na sua trajetória, é inegável que o Mercosul trouxe resultados importantes para seus sócios, indo além do domínio estritamente econômico. No plano político, por exemplo, é notável o significado do Protocolo de Ushuaia (1998), que introduziu a cláusula democrática no bloco e consagrou o respeito às franquias democráticas como condição necessária para ser admitido e para se manter como membro pleno. Com base nesse documento, houve a suspensão do Paraguai e da Venezuela, em 2012 e 2017, respectivamente.
Durante os anos 2000, sob a luz do regionalismo pós-liberal[4] e em um contexto marcado por uma predominância de governos de esquerda na América do Sul, o Mercosul fortaleceu sua agenda política, social e cidadã. De um lado, ganhou vida o Parlamento do bloco e, de outro, envidaram esforços em favor da construção do Programa Mercosul Social e Participativo. Nesse cenário, surgiram iniciativas como as Cúpulas Sociais e o Instituto Social do Mercosul, além de lançarem-se projetos como o Plano de Ação para o Estatuto da Cidadania e o Plano Estratégico de Ação Social.
Em paralelo, o governo brasileiro mostrou maior disposição em assumir o ônus de liderança do projeto integrador, cooperando para o lançamento do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), custeado, majoritariamente, por Brasil e Argentina, e que visava reduzir as assimetrias intrazona ao financiar projetos de infraestrutura e coesão social nos dois sócios menores: Paraguai e Uruguai.
Esse esforço integrador multidimensional não significou, contudo, um abandono da sua vocação comercial original. Em 2011, a corrente de comércio do Brasil com os demais membros alcançou o recorde histórico de US$ 48,9 bilhões, com um superávit brasileiro de US$ 6,7 bilhões. Deve-se reconhecer, contudo, que a representatividade do bloco para as exportações brasileiras reduziu-se significativamente ao longo dos últimos anos. Em 2020, chegou a apenas 5,9% do total das vendas brasileiras ao exterior, contrastando enormemente com os dados de 1998, quando essa fatia era de 17,4%. Mesmo antes da pandemia, em 2019, o fluxo comercial do Brasil com o Mercosul respondeu por apenas 1,5% do PIB do país.
A partir de 2013, ocorreu um esvaziamento da chamada “onda rosa” na região, abrindo-se espaço para o avanço de governos de orientação de direita. Nesse sentido, foram emblemáticos: (I) a ascensão do Partido Colorado nas eleições paraguaias de 2013; (II) a vitória de Maurício Macri na Argentina, em 2015; e (III) o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Desafios do presente
Desde meados da década passada, o Mercosul parece ter enfatizado novamente uma agenda prioritariamente comercial,[5] com a negociação de ajustes normativos intrabloco e tentativas de redução da Tarifa Externa Comum, em paralelo à aceleração das negociações de acordos externos com parceiros como a União Europeia, cujos entendimentos preliminares foram iniciados em 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Nesse cenário mais contemporâneo, tem destaque a aprovação, em 2017, do Protocolo sobre Contratações Públicas do Mercosul e do Protocolo sobre Cooperação e Facilitação de Investimentos – já em vigor para Brasil, Uruguai e Argentina – e, em 2019, da Emenda ao Protocolo de Montevidéu sobre Comércio de Serviços. Trata-se de uma atualização e modernização do Mercosul no tratamento de temas de grande centralidade no comércio mundial e fundamentais para as suas negociações externas. O acordo com a União Europeia, concluído em 2019, mas ainda sequer assinado oficialmente, inclui a temática das compras governamentais.
Atualmente, o acordo com a União Europeia tem sofrido amplas pressões de países como França e Áustria, que se opõem amplamente à sua ratificação, notadamente por conta das irresponsáveis posições assumidas pelo governo de Jair Bolsonaro na temática ambiental – o entendimento negociado entre os blocos tem regras sobre comércio e desenvolvimento sustentável. Sabe-se, contudo, que parte das críticas ao acordo vem sendo feitas por representantes do setor agrícola francês, sabidamente protecionista e contrário à abertura prometida ao Mercosul.
Além do acerto com a União Europeia, foi concluído um acordo com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), enquanto negociações encontram-se em andamento com países como Canadá, Coreia do Sul, Indonésia, Cingapura, entre outros. Esses esforços buscam garantir concessões comerciais para o Mercosul que ampliem a presença de seus membros nas trocas globais, especialmente em um contexto marcado por ampla incerteza sobre as negociações multilaterais da Organização Mundial do Comércio.
Também houve esforços no sentido de realizar um amplo corte tarifário na Tarifa Externa Comum. Na Cúpula do Mercosul em Santa Fé (2019), falou-se em uma redução média da ordem de 50%. Desde então, contudo, o empenho esfriou notadamente após a ascensão de Alberto Fernández no governo argentino, cuja agenda econômica intervencionista em pouco converge com o liberalismo dos governos de Jair Bolsonaro e de Lacalle Pou.
Vale dizer, aliás, que os desencontros entre os presidentes de Brasil e Argentina têm dado o tom desde o final de 2019, revelando-se diferenças e rusgas de cunho ideológico que prejudicam o bom andamento da integração mercosulina. No encontro virtual pelos trinta anos do bloco, em março , ficou evidente o descompasso entre os líderes, inclusive com a abrupta retirada do presidente brasileiro da reunião. A grave crise sanitária vivida pela região e os devastadores efeitos econômicos da pandemia deveriam ser uma oportunidade para intensificar as convergências, mas a realidade tem revelado dissensos e desarticulação.
Em suma, o bloco celebra seus trinta anos em um momento de agudas incertezas, exigindo-se ampla e profunda reflexão de cada um dos membros. Não é o momento para sentimentalismos ou excessos, mas é provável que os próximos passos exijam uma revisão de premissas e orientações estabelecidas. Uma maior agilidade decisória e negociadora pode ser benéfica em um mundo marcado por constantes transformações e crescente competitividade. Nesse sentido, a ampliação da agenda mercosulina é um fator igualmente urgente, com a exploração de temas como: indústria 4.0, saúde, energia e meio ambiente. Mas, acima de tudo, é preciso lembrar que muito da estabilidade interestatal no Cone Sul, bem como a formação de uma comunidade psicológica não belicista na região, se deve, ainda que indiretamente, aos êxitos do Mercosul.
Leandro Gavião é professor da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e doutor em História Política (UERJ), com estágio doutoral na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Paulo Velasco Júnior é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UERJ (PPGRI-UERJ) e doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ.
[1] ALMEIDA, Paulo Roberto de. Integração Regional: uma introdução. São Paulo: Saraiva, 2013.
[2] SARAIVA, Miriam. Encontros e desencontros: o lugar da Argentina na política externa brasileira. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.
[3] VAZ, Alcides Costa. Cooperação, integração e processo negociador: a construção do Mercosul. Brasília: Ibri, 2002.
[4] VEIGA, Pedro da Motta; RIOS, Sandra. P. O Regionalismo Pós-Liberal na América do Sul: Origens, iniciativas e Dilemas. Santiago de Chile, CEPAL, 2007.
[5] VELASCO JÚNIOR, Paulo A. Uma América Latina em transformação: incertezas e possibilidades. Cadernos Adenauer XVII, n.4, 2016.