O “modelo” brasileiro de crescimento e distribuição esgotou-se?
O rumo que aqui se defende não ignora as dificuldades presentes e futuras para a retomada do crescimento nem minimiza os problemas que se avolumaram no período recente e requerem solução, mas entende que é possível buscar um caminho que aprofunde o caráter social que marcou o desenvolvimento brasileiro dos últimos anosAndré Biancareli
I
O governo Lula, na economia, iniciou-se com uma política monetária muito restritiva, grandes superávits fiscais, apreciação da taxa de câmbio e uma agenda de reformas estruturais em linha com as diretrizes do governo anterior. A urgência da situação recebida foi importante para essa opção, o que não diminui seu caráter conservador nem seus efeitos negativos. O “ajuste” assim conseguido, aliado à melhoria da situação externa, encaminhou a retomada que se seguiu.
O crescimento do PIB em 2004 (5,7%, depois de apenas 1,1% no ano anterior) iniciou uma sequência de cinco anos positivos. Nesse período, o dinamismo da economia teve a maior média em mais de duas décadas, atingindo 4,8%. Considerando-se todo o governo Lula, já incluídos o ano de crise de 2009 (queda de 0,3% do PIB) e a recuperação em 2010 (7,5%), essa média fica em torno de 4,1%.
Nesses anos, é possível falar em um “modelo”, ou arranjo, virtuoso. Se a demanda externa ajuda na recuperação, é a doméstica (principalmente o consumo, mas também o investimento induzido) que puxa o crescimento de 2004 em diante. Não há como desvincular esses traços da aceleração na distribuição de renda.
O índice de Gini, em suave redução ao longo dos anos 1990, ampliou seu ritmo de queda: de 0,589 em 2002, chega a 0,543 em 2009. Mais do que isso, a parcela de famílias pobres caiu de 34% em 2002 para 21% em 2009. Ainda de acordo com dados oficiais, o crescimento da renda dos 10% mais pobres entre 2001 e 2009 foi significativamente maior do que o dos mais ricos: 7,2% ao ano contra 1,4%. Em termos de capacidade de consumo, ascenderam 25 milhões de pessoas da classe D para a C – que no final do governo Lula representava 50% da população, ou cerca de 100 milhões de brasileiros.
Essas transformações não foram resultados espontâneos, tendo respondido a diferentes determinantes. O conservadorismo inicial foi sendo gradualmente substituído por uma concepção diferente sobre o papel do Estado, o tamanho e a importância dos bancos públicos e outras empresas estatais, por mecanismos de planejamento, revalorização do investimento público etc.
Para além desse retorno modificado do “desenvolvimentismo” e do cenário externo favorável, quatro foram os motivadores específicos da “criação” de um mercado de consumo de massas no Brasil, nem todos devidamente reconhecidos no debate público: políticas de transferência de renda (com o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada à frente); o sistema de proteção social (apesar de seus problemas, a herança da Constituição de 1988 é fundamental nessa história); a política de valorização do salário mínimo (mais de 50% de aumento real até 2010); e o bom comportamento do mercado de trabalho (notadamente a criação de novos empregos e a redução da informalidade). Interagindo com esses processos, mas também respondendo a outros fatores, a expansão do crédito desempenhou ainda papel importante.
Em poucas palavras, ao contrário de outros períodos na história, a economia brasileira crescia e distribuía renda. E crescia porque distribuía. Os problemas que já se gestavam nesse “modelo” pareciam menos importantes que essa lição principal, reforçada pela exitosa reação anticíclica aos efeitos da crise internacional.
II
Após o forte crescimento no ano eleitoral de 2010, alguma desaceleração era esperada. Os primeiros movimentos do governo Dilma foram nessa direção: cortes de gastos – que sempre afetam o investimento público mais do que os gastos correntes –, aumento das taxas de juros e “medidas macroprudenciais” para controlar o crédito. Hoje é possível dizer que não apenas o leque de instrumentos e a dose foram exagerados, mas que também houve uma leitura errada do contexto externo (com a crise desdobrando-se em novas pressões deflacionárias) e prudência excessiva com a inflação (que não se movia principalmente por excesso de demanda).
Algumas outras causas específicas – casos de corrupção paralisando projetos, dificuldades burocráticas etc. – podem ser consideradas, mas o fato é que a desaceleração foi fortemente influenciada pela mudança de direção na política econômica, especialmente na frente fiscal. Os efeitos contracionistas foram acentuados e perduraram: o PIB cresceu 2,7% em 2011 e, nos anos seguintes, não se conseguiu retomar o ritmo: apenas 1% em 2012; 2,5% em 2013; e não mais do que 1% projetado para 2014. Discute-se atualmente se o país caminha para a recessão, em meio a uma convenção pessimista e à contaminação nítida da conjuntura pelo calendário eleitoral.
Nem a mudança no mix macroeconômico em 2012 (com redução da taxa de juros até o piso histórico de 7,25% e um maior controle sobre a taxa de câmbio) nem os esforços de incentivo à indústria (por meio de isenções descoordenadas para setores específicos) foram capazes de reanimar a produção industrial e o conjunto da economia, que sofre outros males além do baixo dinamismo: deterioração nas contas externas, inflação rondando o teto da meta, piora nas contas fiscais em grande parte explicada pela queda na receita. A estrutura produtiva aprofunda os sinais de regressão e os problemas de infraestrutura logística têm sido enfrentados de forma lenta (que se pretende acelerar com o pacote de concessões para o setor privado).
Teria, enfim, chegado a um limite no governo Dilma a combinação virtuosa entre avanços econômicos e melhoras sociais?
Em relação às segundas, não há esgotamento. Com o aprimoramento da estratégia focalizada de combate à pobreza extrema e a continuidade dos aumentos do salário mínimo, a distribuição de renda pessoal continuou melhorando: o Gini atingiu 0,530 e a pobreza caiu para apenas 16% em 2012. Igualmente, o mercado de trabalho vem mostrando resiliência surpreendente (para a qual contribuem a política de crédito estudantil e a expansão do ensino, que retardam o ingresso no mercado de trabalho). A informalidade segue em queda e o desemprego registra mínimas históricas.
No entanto, é inegável que os efeitos positivos desses bons indicadores sobre o resto da economia são decrescentes e que a insatisfação social é uma realidade, a despeito dos avanços obtidos. Isso tudo ajuda a disseminar a ideia, justificada por diferentes caminhos, de que o modelo teria se esgotado – e precisaria ser substituído.
III
O primeiro dos argumentos sobre o “esgotamento” recorre a determinações macroeconômicas muito duvidosas. O modelo seria “insustentável” porque se baseia no consumo, que deveria ser reduzido (elevando-se a poupança) para ampliar o investimento, como se as categorias de gasto fossem concorrentes e como se cortar o dinamismo da demanda fosse incentivo para ampliar a capacidade produtiva. O segundo é sua contrapartida pelo lado da oferta e fundamenta-se na baixa produtividade da economia. Essa variável (de difícil mensuração, pró-cíclica e muito mais resultado do que causa de qualquer coisa), é tomada como indicador dos excessos do crescimento salarial verificado e explicação para a dificuldade de avanço nos investimentos.
Concordando parcial ou totalmente com esses diagnósticos, algumas propostas de mudança de rumos no desenvolvimento brasileiro mostram-se cada vez mais presentes no debate público.
De um lado, assiste-se a uma nova versão da agenda liberal sendo propagada por setores intelectuais e financeiros com grande exposição midiáticae unidade política. As principais propostas são uma nova rodada de abertura comercial (unilateral), a redução do tamanho e a reversão nos papéis assumidos pelo Estado, uma gestão macroeconômica bem mais rígida (especialmente na área fiscal), a redução dos custos do trabalho e uma ênfase genérica em educação e qualificação profissional. Como seria de esperar, nenhum papel está reservado à dimensão social na estratégia econômica, mas o caráter universal do sistema de proteção brasileiro é claramente criticado, e políticas mais focadas são recomendadas.
Tal visão parece basear-se em uma concepção primária de vantagens competitivas, às vezes defendendo a reespecialização produtiva, sem qualquer atenção às consequências em termos de emprego, salários, sustentabilidade das contas externas etc. Mais importante, sem os ganhos distributivos como os causados pela redução da inflação em 1994 (quando ideias similares se tornaram hegemônicas no Brasil), uma mudança de estratégia nessa direção provavelmente significaria uma reversão no caráter social do desenvolvimento insinuado na última década.
De outro lado, ganhou espaço no debate público e no interior do governo uma visão heterodoxa sobre questões macroeconômicas que se apresenta como uma estratégia de desenvolvimento.Criticando o crescimento com poupança externa e a apreciação da taxa de câmbio, e especialmente preocupados com o processo de “desindustrialização”, a receita aqui é concentrada em medidas de política macro. Uma importante desvalorização da moeda nacional (com vistas a emular a estratégia asiática de crescimento export-led), cortes nas taxas de juros e políticas de ajuste fiscal (corte de gastos) são as principais propostas.
Apesar de antiliberal e focado nos graves problemas da estrutura produtiva, esse conjunto de ideias também se mostra “neutro” a respeito do progresso social como motor econômico. Além disso, a ambição de um crescimento liderado pelas exportações no Brasil parece ignorar todas as outras vantagens dos países industrializados da Ásia (liderança tecnológica, decisões estratégicas das empresas multinacionais a respeito de sua localização, barreiras à entrada etc.) e também pode ser entendida como uma defesa de salários mais baixos como complemento ao câmbio desvalorizado, em busca da competitividade. Isso sem contar o ambiente internacional atual, pouco convidativo a novas potências exportadoras.
Assim, se o esgotamento da associação virtuosa entre crescimento e distribuição ainda é uma questão em aberto, o eventual predomínio de uma dessas duas visões resolveria a questão. A melhora nas condições de vida da população, nesse caso, voltaria a ser um subproduto complementar, quiçá desejável, do êxito econômico – que teria de ser buscado com medidas amargas. Não são poucas nem desimportantes as vozes que clamam, nos dias que correm, por uma submissão dos objetivos sociais à volta do crescimento baseado na eficiência ou na volta da “credibilidade” perdida.
IV
O rumo que aqui se defende não ignora as dificuldades presentes e futuras para a retomada do crescimento (que não decorrem apenas de fatores domésticos) nem minimiza os problemas que se avolumaram no período recente e requerem solução, mas entende que é possível buscar um caminho que aprofunde (em vez de negar) o caráter social que marcou o desenvolvimento brasileiro dos últimos anos.
Tal ênfase não tem como objetivo defender o que se conquistou nem considerar os progressos suficientes. Pelo contrário, a prioridade é justificada mais pelos desafios à frente do que pelos avanços obtidos. Há várias razões para isso.
A primeira delas refere-se ao alto nível de concentração de renda que ainda existe no Brasil. Embora importante, a redução do índice de Gini para cerca de 0,5 simplesmente coloca o país entre os dez ou vinte mais desiguais do mundo. A segunda razão é o fato de os resultados positivos concentrarem-se nessa dimensão, limitada, das diferenças sociais. Muito mais difícil de medir, a concentração de riqueza no Brasil é certamente pior do que a de renda, e há razões para imaginar que tenha piorado.
A terceira motivação é a natureza individual, muito associada ao poder de compra, que marca as melhoras. Elas deveriam ser preservadas, mas outro caminho foi pouco explorado: a infraestrutura social, os chamados bens de consumo coletivo ou público, como educação, saúde, transporte e as condições de vida urbana, como o saneamento. Em várias dessas dimensões, a mercantilização progressiva foi a tendência recente. Permitiu-se uma ampliação do acesso a vários desses serviços, descuidando-se, porém, dos aspectos de qualidade e conteúdo.
Ir além da ampliação do mercado de consumo de massas, avançando na dimensão dos direitos sociais (como, aliás, é previsto na Constituição de 1988), seria, portanto, a diretriz principal de uma nova fase do desenvolvimento brasileiro. Essa orientação pode ser justificada por seu conteúdo moral e civilizatório, mas também há um grande potencial propriamente econômico.
Maiores investimentos nessa direção teriam efeitos multiplicadores importantes em termos de emprego, renda e atividades econômicas locais. Além disso, a ampliação do alcance e da qualidade dos serviços públicos elevaria a renda disponível das famílias – efeito não alcançado com a concessão de subsídios às empresas prestadoras privadas, quase sempre com baixa qualidade.
Por fim, outra frente a ser explorada é a da estrutura tributária, complexa e concentrada em impostos indiretos (com baixa incidência sobre altos rendimentos e estoques de riqueza). As dificuldades envolvidas na tarefa de torná-la mais progressiva não reduzem sua importância para a construção de uma sociedade mais justa e com maior potencial de crescimento.
V
Em suma, as dificuldades atuais da economia brasileira e o clima de pessimismo que predomina em certos círculos fazem a resposta à pergunta título deste artigo parecer óbvia. Como toda afirmação peremptória, a tese do “esgotamento” mais esconde do que revela – no caso, a oposição a uma tentativa de desenvolvimento que, ainda de maneira muito incipiente, tomou as diferenças históricas que marcam a sociedade brasileira como oportunidade para o crescimento econômico. Contra um suposto fatalismo, o que se precisa é de renovação e aprofundamento dessa associação entre objetivos sociais e econômicos, até porque a maior parte das desigualdades no Brasil ainda permanece intocada¹.
André Biancareli é professor assistente do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp-SP.