O mundo das crenças: há espaço para todos
A espiritualidade que nos congrega pode ser linda, o seu uso militar, político e comercial é uma desgraça
“A raça humana é sempre toda ouvidos para um conto de fadas”
Lucretius, De rerum natura, 50 AC, (590)
“Fins moralistas justificam meios violentos”
Haidt, (xiii)
“A insistência em uma noção enraizada, independentemente de evidências contrárias, é a fonte do autoengano que caracteriza a loucura”
Barbara Tuchman (224)
A racionalidade ocupa sem dúvida um espaço importante no que temos chamado de homo sapiens, mas temos dado insuficiente peso às nossas dimensões irracionais, ao que podemos chamar simplesmente de crenças. Como bem explicita Jonathan Haidt, gostamos de vestir as nossas crenças do manto da racionalidade, e, portanto, de legitimidade. Mas não custa darmos um passo atrás, e pensar racionalmente nas nossas dimensões irracionais.
A quantidade de crenças no mundo é impressionante. Temos centenas de religiões, de mundos sobrenaturais, semeadas das fantasias mais surrealistas, mas cada comunidade de crentes afirma com convicção de que as suas crenças são baseadas na realidade. Como conseguimos inventar tantas histórias, e nelas acreditar, ainda que sejam absurdas? Há lendas, naturalmente, e delas gostamos, como a dos Cavaleiros da Távola Redonda, e fantasias assumidas como tais nos contos, por exemplo, de Chapeuzinho Vermelho. Gostamos de contos de fada, mas sabemos que são contos de fada.
Mas em outro nível, no universo da espiritualidade, os contos de fada se tornam não só crenças assumidas, racionalmente assimiladas e confirmadas, inclusive com tantos que morreram ou estão dispostos a morrer por eles. Criou-se inclusive um conceito poderoso, a fé, como ponte entre a fantasia, a racionalidade, e o nosso mundo emocional. A fé realmente move montanhas, mas por definição, ela é baseada em acreditar sem provas, senão seria conhecimento, e não precisaria de ato da fé. Os que acreditam que o mundo foi criado há pouco mais de 5 mil anos, justamente “acreditam”, e os que sabem que existe há bilhões de anos simplesmente sabem, não precisam acreditar.
A fé, por definição, dispensa provas. E, nessa medida, permite que as pessoas se convençam, e até busquem defender racionalmente, as fantasias mais absurdas, de que o sol é um deus, de que houve serpentes que falam, de que há figuras humanas com asas e que voam, de que os pecados se lavam no sangue fazendo sacrifícios de animais, ou até de humanos, de que más safras são culpas de bruxas que é preciso queimar – não à toa eram mulheres – ou ainda mais comodamente, de que matar pode ser legítimo, uma ordem de Deus, porque estaríamos matando infiéis. A fé não tem limites, dispensa racionalidade.
É impressionante que nesta nossa era científica o irracional ainda tenha tanto peso. Lembremos que nos anos 1500 um Copérnico havia adiado por décadas a publicação do que ele sabia ser a realidade – que o mundo não gira em torno da terra – por medo das perseguições religiosas. Nos anos 1600 Galileo tinhas de sussurrar eppur si muove¸ com medo da morte. Em pleno século XXI grande parte dos norte-americanos prefere acreditar do que saber, e batalham para que nas escolas a teoria da evolução seja ensinada ao lado do bereshit, da visão da criação do mundo que encontramos na bíblia, com maçã, serpente e arcanjo, como teorias legítimas.
Não estamos aqui denunciando a irracionalidade, faz parte de nós como seres humanos, mas buscando de onde vem tanta força nesse estranho mundo irracional da espiritualidade. Não se trata de exercício apenas teórico, tem grande importância, considerando como religiões podem utilizar o irracional como justificativa de interesses muito reais. A peça de teatro de José Saramago, In Nomine Dei, baseada nas guerras de religião, com massacres e tudo, ajuda a entender como o absurdo pode ser transformado em interesses organizados e racionalmente defendidos, com “argumentos”. A peça é baseada nos anos 1500, mas hoje vemos na televisão inúmeros programas que justificam qualquer coisa, porque na bíblia podemos encontrar frases que justifiquem praticamente tudo – e o seu contrário. O raciocínio mágico se generaliza.
O sentimento de espiritualidade é respeitável, e o encontramos em tantas épocas e civilizações, mas o seu uso, que levou e leva a tanta barbárie, violência, oportunismo político, ganhos financeiros, o é muito menos. Em 2022 Edir Macedo e família ostentam uma fortuna de R$ 1,34 bilhão, falar em nome Deus pode ser muito lucrativo (Forbes, 2022, fortuna 230). Nos Estados Unidos as fortunas com essa origem são muito mais amplas. Mark Twain (1995, p.182) ironiza sobre a sociedade: “tendo guerras o tempo todo, e levantando exércitos e construindo marinhas, e lutando pela aprovação de Deus de todas as maneiras que pode. E onde quer que houvesse um país selvagem que precisasse ser civilizado, eles iam lá e o tomavam, e o dividiam entre os vários monarcas esclarecidos, e o civilizavam – cada monarca à sua maneira, mas geralmente com bíblias, balas e impostos. E a maneira como eles gritavam a Moral, o Patriotismo, a Religião e a Irmandade dos Homens era nobre de se ver”.
Neste sentido, é essencial separar o sentimento religioso, a espiritualidade, que encontramos em tantas civilizações, do seu uso político no quadro de diferentes estruturas organizadas de poder, que se apropriam de alguma forma do papel de representantes de divindades para justificar tudo e qualquer coisa. Os governos atuais de Israel navegam confortavelmente nas raízes emocionais poderosas que representa a convicção de serem o “povo eleito”, portanto com direito a exercer a justiça divina em cima de outros povos. Os nazistas levavam na sua bandeira o “Gott mitt uns”, Deus está conosco. O Talibã pode se permitir tudo em nome da fé, e o apelo a “Deus, Pátria, Família” é encontrada nas bocas de todos os pequenos candidatos a ditadores do planeta, Trump, Erdogan, Orban, Duda, Meloni, Bolsonaro, Kristersson, Duterte, Netanyahu e tantos mais na fila de espera, navegando na ingenuidade e frustração das populações.
A mensagem implícita é de que quem quer respirar livremente, com mais democracia e igualdade, é contra os ideais sagrados e, portanto, não uma pessoa tolerante e de cabeça mais aberta, mas um inimigo. A compreensão de que a espiritualidade faz parte de um conjunto de aspirações, que queremos aqui elencar, e que podem ser compreendidas e legitimadas, mas que o seu uso na indústria da comunicação, da política e inclusive da exploração comercial consiste num abuso da intimidade das pessoas, em atos de violência sem legitimidade, me parece essencial. A apropriação de símbolos poderosos, como Deus, Pátria e Família, permite justificar qualquer coisa, gera um empréstimo de respeitabilidade. Não há como não lembrar da fala do bispo sul-africano Desmond Tutu: “Quando os missionários vieram para a África eles tinham a Bíblia e nós tínhamos a terra. Eles disseram ‘Vamos orar’. Fechamos os olhos. Quando os abrimos, tínhamos a Bíblia e eles tinham a terra”. O conceito de hipocrisia encontra aqui a sua representação mais perfeita.
Nas nossas emoções e no nosso imaginário cabem universos de criatividade espiritual, que vão desde a reencarnação até o Olimpo ou o purgatório, e a história das crenças religiosas mostra uma riqueza espantosa. Da beleza da Cosmogonia de Hesíodo, às cosmogonias do Egito, de Pan Ku na China, de Olorum africano, do Bereshit bíblico e tantos outros, não há como não ver a busca de preencher o inexplicável, ou inexplicado, com mitos. É legítimo? Sem dúvida, pois preencher o vazio explicativo com um mito gera mais sentimento de segurança do que um buraco negro desconhecido. E se nos pomos de acordo com a comunidade em torno de nós, e aceitamos o mesmo mito, o nosso vazio mental entra em sentido de repouso. Na falta de ciência, temos crença. E se os vizinhos também acreditam, temos uma visão de mundo. Mas a facilidade com a qual tantas pessoas se deixam levar, balançam a cabeça, obedecem, fazem um Pix de contribuição para as corporações religiosas, nos alerta para as nossas fragilidades emocionais e mentais, que merecem ser respeitadas e não abusadas.
Já as codificações éticas colocam dilemas muito mais amplas, pois permitem justificar comportamentos com empréstimos à legitimidade sobrenatural, na falta de legitimidade terrena de não fazer o mal. O fato de encontrarmos na Bíblia o comando divino “não deixarás que as bruxas vivam” permitiu massacres, e multiplicaram-se as festas de ver pessoas queimadas vivas, com a profunda satisfação das populações, que se sentiam vingadas das suas frustrações. A Bíblia, nesse sentido, é fértil, e Mark Twain (1995, p.319) resume em um parágrafo:
“No Antigo Testamento Seus atos expõem constantemente Sua natureza ressentida, injusta, mesquinha, impiedosa e vingativa. Ele está sempre punindo – punindo delitos triviais com severidade mil vezes maior; punir crianças inocentes pelos crimes de seus pais; punindo populações pelos crimes de seus governantes; até mesmo descendo para vingar-se sangrentamente de bezerros, cordeiros, ovelhas e novilhos inofensivos, como punição por transgressões inconsequentes cometidas por seus proprietários. É talvez a biografia mais condenatória que existe impressa em qualquer lugar.”
A verdade é que encontramos em escrituras passagens para justificar tudo e seu contrário. E não faltam pregadores com uma massa de citações decoradas. Como escreve Haidt (2012), “O raciocínio pode levá-lo para qualquer lugar onde você queira ir” (p.122). Haidt usa o “pensamento confirmativo” (confirmatory thinking, p.81), “raciocínio motivado” (motivated reasoning, p.84) ou “cérebro partidário” (partisan brain, p.88): “Como ratos que não conseguem parar de apertar um botão, partidários (partisans) podem ser simplesmente incapazes de parar de acreditar em coisas aberrantes. O cérebro partidário foi reforçado tantas vezes para realizar contorções mentais que o liberem de crenças indesejáveis. O partidarismo extremo pode ser literalmente viciante” (p.88).
Estamos aqui na fronteira mental, onde a força da crença – do que se quer acreditar – se sobrepõe ao racional, e dele se empodera para reforçar a própria crença. No limite, explicar que a Terra é redonda e tem 4,5 bilhões de anos torna-se inviável. Na cabeça da pessoa, em certas áreas de raciocínio, foi instalado como se fosse um filtro – em inglês prefiro usar o conceito de frame – que simplesmente não deixa passar nada que não corresponda ao formato predeterminado. O brainwashing [lavagem cerebral] é muito mais generalizado no nosso cotidiano que gostaríamos de admitir. Barbara Tuchman (2014) usa os conceitos de “auto hipnose” (self-hypnosis, p.269) e de justiça própria (self-righteousness, p.271), buscando caracterizar o congelamento de visões que se vestem de racionalidade, mas são impermeáveis a argumentos: “Os psicólogos chamam o processo de triagem de informações discordantes de ‘dissonância cognitiva’, um disfarce acadêmico para ‘Não me confunda com fatos’” (p.322).
Não há como deixar de ver que a crença, neste sentido, gera uma área de conforto: não preciso mais pensar no assunto, está resolvido pela simples rejeição mental de qualquer argumento que venha a incomodar o cérebro. Pá de cal, assunto resolvido. No limite, conforme a crença adotada, temos o raciocínio simplório que leva facilmente ao fanatismo, particularmente se é confirmado com uma comunidade de crentes. Desde Constantino no ano 325 da nossa era, os políticos entenderam a força do empréstimo de autoridade divina para os embates humanos. Uma coisa é o conhecimento racional, baseado na ciência; outra é a crença, baseada na fé, no que se quer acreditar; e outra ainda a ética, os valores emprestados para justificar o que fazemos, área na qual borrar as fronteiras entre ciência e crença tornou-se generalizado. Adotamos as crenças necessárias para justificar o que supomos saber.
Estamos aqui muito além das igrejas, com a centralidade do processo na política, nos interesses comerciais, gerando o controle da atenção bem descrito por Tim Wu no The Attention Merchants, e denunciado por Noam Chomsky no documentário Chomsky&Cia. Hoje, com a conectividade global, a atenção humana presa em telinhas várias horas por dia, desde a infância mais tenra, e em particular a indústria que colhe informações privadas sobre cada um de nós, nas mais diversas dimensões, criam-se novas arquiteturas mentais, ou nova mobília na nossa cabeça. Os mercadores da atenção chamam de “bolhas”, com “internautas” que só encontram confirmações do que acreditam.
Conhecimento racional, crenças e convicções morais se confundem no novo universo planetário que Shoshana Zuboff (2019) chamou de “a era da sociedade de vigilância”: “Um texto eletrônico totalmente novo agora se estende para muito além dos limites da fábrica ou escritório. Graças aos nossos computadores, cartões de crédito e telefones, e às câmeras e sensores que proliferam em espaços públicos e privados, quase tudo o que fazemos agora é mediado por computadores que registram e codificam os detalhes de nossas vidas cotidianas em uma escala inimaginável há apenas alguns anos” (p.182). A ideia do Jesus Christ Super-Star deixa de ser uma ideia. A igreja eletrônica veio para ficar. O bispo Edir Macedo é dono da TV Record, e navega em citações de textos de 2 mil anos atrás. Ele é ao mesmo ciência, crença e ética. Recomendou votar em Bolsonaro, em nome de Jesus.
Mas é interessante a que ponto nesta era de avanços científicos e de compreensão dos mistérios da vida, a espritualidade aliada ao pertencimento a organizações religiosas continua poderosa no mundo. Entendemos que o trovão não ocorre porque Zeus está irritado, e que portanto teríamos de ver quem o irritou: olhamos as previsões do tempo no celular. Mas esse imenso mundo das divindades permanece forte no cotidiano de três quartos da população mundial, e a consulta a “textos” de tantos séculos atrás serve de misteriosa justificativa para os nossos absurdos da era dos algoritmos. Podemos elencar alguns mecanismos, se é que podemos chamá-los assim, que presidem a essa persistência, ou até renovação.
O medo da morte sem dúvida joga um papel importante. Nas mais variadas mitologias, imaginar que a morte é apenas uma passagem para outra vida, seja na reencarnação, ou na subida da alma aos céus – sempre é para cima, como se o céu fosse um lugar – nas diversas modalidades do Éden, conseguimos escapar do óbvio: somos um mamífero que passa pela vida em ritmo relativamente lento, mas inevitável, e depois não se ouvirá mais dele. O ressuscitar é um sonho, mas o fim é o fim, e apesar de Lázaro, e a agitação no palco da vida, não há como não lembrar do realismo de Shakespeare, sobre esse ser humano “que se pavoneia e se cansa no palco, e então não é mais ouvido”. É uma motivação poderosa, não à toa muitos se “convertem” na hora extrema.
Igualmente poderoso, ao meu ver, é o sentimento de vazio que nos dá quando pensamos que estas poucas décadas que temos para aparecer no mundo terminam com tantas brigas e turbulências, e afinal é só isso. “Ma é questo la vita?”, pensa o mortal, chegando à morte. Ou seja, além do medo da morte, e do vazio que segue, temos que enfrentar o próprio sentido do que fazemos. Wim Wenders resumiu o sentimento de forma simples: “A humanidade anseia por significado”. Pertencer a um desenho maior, ter um Deus que nos observa e julga – como se não tivesse outra coisa para fazer –, precisar nos submeter a regras ditadas por um ser superior, ser filho de Deus enfim, é poderoso.
Meu pai, que era muito católico, se indignava de que as pessoas “preferiam descender de primatas do que serem criaturas de Deus”, como se fosse uma opção. Era engenheiro, com muita leitura, inclusive de filosofia, mas aqui não se trata de racionalidade, e sim do imenso vazio que nos invade quando pensamos que somos uma criatura frágil, briguenta e passageira, perdida num planeta perdido no universo. Na mesma linha, Lee Kuan Yew menciona que “há uma busca por algumas explicações mais elevadas sobre o propósito do homem, sobre por que estamos aqui. Isso está associado a períodos de grande estresse”. (in Huntington, 1996, p.97). Buscar sentidos no sobrenatural é poderoso.
A liberdade pode ser muito angustiante. Ter regras na vida, nesta turbulenta confusão de valores, pode ajudar muito. Não à toa demos tanto peso aos Dez Mandamentos, proibições e obrigações, pontos de referência que nos permitem guiar os nossos comportamentos. São diversos segundo as religiões, no hinduísmo encontramos a proibição de matar animais e outras formas de vida, e o cristianismo nunca impediu os cristãos de matar, mas sempre “em guerra justa”, e contra pagãos, ou bárbaros, ou seja, gente que precisamente não seguia as nossas regras, não são iguais. Só o fato de precisamos justificar, explicar porque violamos os mandamentos, mostra a importância não só da ética, mas de um conjunto de códigos aceitos por determinado segmento da sociedade. As religiões desempenham um papel importante na tranquilidade pessoal. Estou seguindo as regras. Dante traz com força a angústia de não saber o caminho: “Eu me encontrei em uma floresta escura, onde o caminho reto estava perdido” é precisamente a entrada do Inferno. A religião ajuda “nas necessidades psicológicas, emocionais e sociais de pessoas presas nos traumas da modernização” (Huntington, 1996, p.99).
Mas no limite ter regras também pode ser opressivo. Numa sociedade religiosa, o ódio e a violência contra as pessoas que não se submetem às mesmas regras levaram, nas mais variadas sociedades, a comportamentos de uma violência impressionante. É que o sentimento de conhecer “o bem”, a certeza do caminho reto, parece justificar a perseguição de todos os desvios. Quem não leu o Malleus Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras, de Heinrich Kramer e Jacob Spenger, está perdendo uma visão de como as regras, apropriadas pelos “justos”, podem levar a violências pavorosas. Isso data de há poucos séculos na Europa, e o livro, em nome de Deus, ensina como torturar mulheres, de preferência nuas, bem como a importância de quem interroga não lhes ver o rosto, pois o sofrimento nele expresso poderia comovê-los, e tirá-los da sua severa retidão. Os massacres na Índia, no conflito entre hinduísmo e islamismo são de ontem, e perduram os ódios. A morte de uma jovem no Irã, porque não cobria a cabeça e o rosto de maneira adequada aos mandamentos religiosos leva hoje a um levante, mas o essencial aqui é que enquanto uma sociedade se apropriar de regras ajuda na coesão social, a sua rigidez se torna ao mesmo tempo opressiva. Entre o conforto de regras superiores e a barbárie, a fronteira é pequena.
A noção de culpa, e de culpabilidade, desempenha um papel essencial no sentimento religioso, e em particular no poder das hierarquias religiosas. No cristianismo e no judaísmo somos todos culpados pelo pecado original, como se Adão ter comida a maçã tivesse qualquer importância no meu cotidiano em 2022. E Cristo veio nos redimir desse pecado, que como em tantas crenças, tem de ser lavado no sangue, no sofrimento. Os crucifixos, instrumento de tortura, continuam a nos ameaçar. E temos todos os universos do submundo do inferno – sempre em baixo, por misteriosa razão, mas a palavra em latim significa precisamente “em baixo” –, o lugar onde os malvados serão punidos, sofrerão até o infinito fim dos tempos. O imaginário sobre os tipos de tortura, que vemos em tantas representações artísticas, mas também na Epopeia de Gilgamesh, no shoel judaico, ou no reino de Hades na mitologia grega. Aliás, chamamos de mitologia as versões anteriores das crenças atuais.
Associada à culpa, como força poderosa de controle social, em particular da mulher, está a sexualidade. Associar a atração sexual a algo sujo, “libidinoso”, quando se trata da fonte maior da nossa pouca felicidade, na riqueza das suas manifestações, continua a ser o combustível para ódios e perseguições. O que faria Freud sem essa repressão sexual permanente, a sua associação ao pecado, às proibições bíblicas? Controlar a sexualidade da mulher, nos seus mínimos detalhes, por parte de doutores da lei divina, é objetivo que encontramos em tantos textos religiosos. A excisão (corte dos lábios da vagina feminina) ainda é praticada hoje em meninas, em nome de obediência às regras, e aos mandamentos religiosos, para que a futura mulher não tenha o vergonhoso prazer sexual. Todo o conceito da “Imaculada Conceição” está ligado ao sentimento (mais do que pensamento) de que o ato sexual seria uma “mácula”.
Marie-France Baslez, que pesquisa a origem do cristianismo, Comment notre monde est devenu chrétien, apresenta o detalhe dos debates, desde o século II da nossa era, sobre a virgindade de Maria. Mas o essencial para nós, é a ideia de pecado, de culpa ligada à sexualidade, e que permitiu, durante séculos e até hoje, que se proíba uma mulher de entrar na igreja com braços descobertos, para falar de um detalhe que parece inocente, mas que em outras culturas resulta na burka. A questão do direito às decisões sobre o seu próprio corpo, por parte da mulher, continua tão presente como em outros séculos. Ser controlador da sexualidade dos outros é uma ferramenta de poder que hoje vemos manipulada nas igrejas eletrônicas, e cujo conteúdo mudou pouco. Basta ver os debates da Corte Suprema nos Estados Unidos, a luta pelo direito ao aborto, ao direito da eutanásia, dispor da própria vida. Apoiada no controle da sexualidade, a religiosidade prospera. “Pode beijar a noiva”, ouve o casal, que hoje provavelmente não esperou a autorização.
Outro eixo poderoso que nos leva para as religiões é a busca de pertencimento, sentimento essencial da nossa vida social. A própria palavra “religião” nos traz na sua origem a ideia de se religar aos outros, de pertencer, religio em latim. A volta à religião, mais do que ao território, pode ser importante nessa fase de êxodo rural e de busca de identidade: “As pessoas se mudam do campo para a cidade, separam-se de suas raízes e aceitam novos empregos ou não trabalham. Elas interagem com um grande número de estranhos e são expostos a novos conjuntos de relacionamentos. Elas precisam de fontes de identidade, novas formas de comunidade estável e novos conjuntos de preceitos morais para fornecer-lhes um senso de significado e propósito… Para pessoas que enfrentam a necessidade de determinar ‘Quem sou eu? A onde pertenço?’, a religião fornece respostas convincentes, e os grupos religiosos fornecem pequenas comunidades sociais para substituir aquelas perdidas pela urbanização” (Huntington, 1996, p.97).
Aqui também os lados negativos abundam: “Quaisquer que sejam os objetivos universalistas que possam ter, as religiões dão identidade às pessoas postulando uma distinção básica entre crentes e não crentes, entre um grupo interno superior e um grupo externo diferente e inferior” (Huntington, 1996, p.97). Nada como um inimigo externo para reforçar os laços internos, e as religiões organizadas utilizaram essa necessidade de pertencimento de forma generalizada. Os que estão fora do grupo são pagãos, seguidores de “seitas”, “ateus” e tantos outros qualificativos que permitem o sentimento confortável de estar numa comunidade, de estar “juntos”, de ter um inimigo comum. O uso político é igualmente generalizado, e à medida que o embate se agrava, a crença migra para o fanatismo fundamentalista, que hoje podemos observar em várias culturas políticas e religiosas. A política migra da racionalidade para as emoções, do cérebro para o fígado. “Amai-vos uns aos outros” serve de justificativa para o ódio e a violência. Não são israelenses que estão matando palestinos, é “a ira de Deus que cai sobre eles.” Com reciprocidades, naturalmente. Deus pode ser uma gazua política. Baslez (2008, p.150) usa o conceito de “identificação coletiva”, ao comentar a excitação popular nos jogos de circo romanos, quando os “outros” eram cristãos. Homo sapiens?
Outra motivação que nos leva para o sobrenatural é que, na hora do desespero, precisamos apelar para alguém. Os absurdos guerreiros de todas as “civilizações” partiam para a guerra pedindo a proteção de deuses, e muitos animais foram destripados para que se lesse nas vísceras o que se podia ler sobre o destino das batalhas. Deus me ajudou diz qualquer jovem depois de marcar um gol, e o mesmo dirá o goleiro ao impedi-lo. Eu diria que o comando de não invocar o nome do Senhor em vão poderia ser aplicado. Mas o essencial, é que nessa nossa vida insegura, nos agarramos a qualquer esperança. Minha mãe, polonesa, era como se deve católica apostólica romana. Mas quando eu estava preso no Brasil, e ameaçado de morte, ela na Polônia rezou por mim na igreja, e por via das dúvidas foi procurar também os ritos pagãos que ainda sobrevivem da antiga Polônia pré-cristã. No desespero, todos os santos são bons. O fato é que sobrevivi. Graças a Deus.
E não há como não ver o imenso potencial civilizatório que as religiões podem desempenhar, ao promover a solidariedade humana, organizar comunidades, restaurar a sociabilidade tão necessária e tão diluída nos universos urbanos. Acompanhei muito os aportes da Pastoral da Criança, que não só obteve imensos sucessos em termos das suas políticas sociais, como gerou um impacto organizacional de solidariedade que envolveu centenas de milhares de mulheres. A visão do Papa Francisco, de uma outra economia, permite o reencontro entre os interesses econômicos, os objetivos sociais, a proteção ambiental e o respeito humano. Trata-se aqui, claramente, de uma outra economia, mas que envolve uma outra cultura, no sentido mais amplo.
A expansão do Islã tampouco pode ser simplificada. De um lado, enquanto as elites adotavam uma vida luxuosa com a venda de petróleo, as redes islâmicas de solidariedade asseguravam serviços de saúde, de educação, de um conjunto de atividades básicas que o Estado não providencia, bem como densas organizações comunitárias. E em termos de imensas regiões colonizadas e humilhadas, no Oriente Médio e no norte da África, mas sobretudo na Ásia, “a reafirmação do Islã, qualquer que seja sua forma sectária específica, significa o repúdio da influência europeia e norte-americana sobre a sociedade, a política e a moral locais” (William McNeill, in Huntington, 1996, p.101). Estamos falando de 1,6 bilhão de pessoas, de dezenas de países. Uma vez mais, cruzam-se as necessidades da população em adotar referências religiosas, enquanto o seu uso político gera barbárie, inclusive por parte dos que o combatem.
Neste sobrevoo das motivações religiosas, por parte de um não especialista no tema, mas sensível à imensa hipocrisia em que as políticas religiosas invadem inclusive a economia, não podia deixar de trazer o imenso aporte cultural e artístico, que nos legou a Santa Sofia em Istanbul, a Catedral de Paris, maravilhas artísticas na Ásia, as miniaturas da Pérsia, os monumentos da América pré-colombiana, tantas sinfonias, cantos, cerimônias religiosas complexas, da missa cristã aos ritos africanos, uma teatralidade e musicalidade que nos encantam e sem dúvida atraem. Nesse grande e frequentemente miserável teatro da vida, a religião está muito presente. Bem-vindas, mas não justifiquem a barbárie, e não usem o nome do Senhor em vão.
Haverá sem dúvida outros universos motivacionais, nesta difícil separação do que é ciência e razão, do que é crença e emoção, do que é julgamento e ética. A atitude interessante me parece ser o exercício de dar um passo para trás, e olhar com tolerância e compreensão para a tão difícil busca de caminhos do pobre ser humano, suficientemente dotado de inteligência para compreender os limites da razão. E também tão impotente frente a tantas manifestações da bestialidade coletiva da humanidade. Neste momento em que escrevo, cerca de 180 milhões de crianças estão passando fome no mundo, enquanto produzimos alimento suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas. São crianças, mas os “mercados” são mais sagrados. Não olhem para cima.
É interessante pensar que os aborígenes australianos tinham Uluru, a rocha sagrada; os celtas tinham Belenus, um deus solar; o Popol Vuh conta a mitologia dos maias, os astecas olhavam para o céu, Tlalocan; na mitologia chinesa, Pan Ku separou a terra do céu; na mitologia japonesa, Izanagi criou os deuses Amaterasu e Susanoo, respectivamente o Sol e as Tempestades; o Livro dos Mortos nos ensina sobre Atum e Rá e os mitos egípcios; a mitologia greco-romana nos legou as belíssimas histórias de Zeus-Júpiter, Afrodite-Vênus e tantos outros; a mitologia hindu nos legou Brama (o criador), Vishnu (o mantenedor) e Shiva (o destruidor); a mitologia judaico-cristã nos legou Adão e Eva, Jesus e Maria, e combatentes de monstros como São Jorge; a mitologia mesopotâmica nos legou o deus Apsu (água doce) e a deusa Tiamat (água salgada) que criaram o resto, e como tantos deuses, brigaram à vontade; na mitologia nativo-americana, em que nos faltam textos escritos, temos em todo caso um Pai Celeste e uma Mãe Terra, além de deuses malandros como o Corvo e o Coiote; na mitologia nórdica, temos Odin que vivia em Valhala, e também um juízo final, Ragnarok.
A Mitologia, de Christopher Dell, de onde extraio essa pequena lista, é um documento de extrema riqueza, que ao apresentar as várias formas como civilizações diferentes e em diversas épocas criaram explicações para o inexplicável, afirmando com determinação e frequentemente muita violência a sua realidade, nos chama para um pouco de bom senso e tolerância. Somos o que somos, e é o mundo que temos. Os cristãos rezam ajoelhados, os islâmicos de cócoras, os judeus se balançam de pé, os hindus de pernas cruzadas, os africanos dançam. Convenhamos, há espaço para todos. A questão não está nas crenças, mas no seu uso político e comercial que hoje predomina. Apropriar-se da intimidade das pessoas, e inclusive se possível do seu imaginário, transformou-se numa indústria. No centro dessa indústria, cada vez mais, estão os gigantes corporativos. Os governos acompanham, discutem o óbvio em Davos, e se submetem.
Traçar essas notas, por parte de um economista como eu, pode parecer estranho. Mas é que os desafios da própria economia não cabem mais na estreiteza dos conceitos que a delimitaram. Conceitos como o de cultura, de civilização, de solidariedade humana, emergem por toda parte, e nos obrigam a ampliar a visão. Congratular-se com um PIB que aumenta ao destruir a natureza e ao gerar injustiças e sofrimentos gritantes é simplesmente grotesco. Que me seja permitido trazer à tona o óbvio econômico: o mundo de 2022 alcançou o equivalente a US$ 100 trilhões de bens e serviços produzidos no ano. Isso, dividido por 8 bilhões de habitantes, representa o equivalente a US$ 4,2 mil por mês por família de quatro pessoas. Dá para viver? O mundo de hoje não é pobre, é mal administrado. O Brasil produz, só de grãos, 3,7 quilos por pessoa por dia, e temos milhões passando fome. Não se trata mais de uma luta econômica, trata-se de uma luta pelo resgate do bom senso e da dignidade humana. Usar as crenças para justificar o injustificável é criminoso. O Quo Vadis? da humanidade hoje tornou-se universal.
Ladislau Dowbor é professor titular de economia da PUC-SP e autor de dezenas de livros e estudos técnicos sobre desenvolvimento econômico e social, disponíveis gratuitamente online (open access) em http://dowbor.org.
Leituras sugeridas
Marie-France Baslez – Comment notre monde est devenu chrétien – CLD Editions, 2008
Michel Onfray – Décadence: vie et mort du judéo-christianisme – Flammarion, 2017
José Saramago – In Nomine Dei – Companhia das Letras, 1996
Mark Twain – The bible According to Mark Twain – Touchstone, 1995
Forbes – 290 bilionários brasileiros – 2022
Jonathan Haidt – The Righteous Mind: why good people are divided by politics and religion – Pantheon Books, New York, 2012
Tim Wu – The attention merchants: the epic scramble to get inside our heads – Knopf, New York, 2016
Shoshana Zuboff – The Age of Surveillance Society – Public Affairs, 2019
Samuel P. Huntington – The Clash of Civilizations – Simon&Schuster, 1996
Christopher Dell – Mitologia: um guia dos mundos imaginários – Sesc, São Paulo, 2014
Lucretius – The Nature of Things – tradução de A.E. Stallings – Penguin Classics, 2007
Barbara Tuchman – The March of Folly: from Troy to Vietnam – Random House, New York, 2014
Richard Dawkins – The God Delusion – Houghton Mifflin Company, New York, 2006
Emmanuel Saez and Gabriel Zucman – The Triumph of Injustice – Norton, 2019
Tereza Campello e Ana Paula Bortoletto – Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro – Ed. Elefante, 2022
Ladislau Dowbor – Resgatar a função social da economia: uma questão de dignidade humana – Ed. Elefante, 2022
Ladislau Dowbor – A economia desgovernada – Scholas Ocurrentes, 2019
Mário Theodoro – A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil – Zahar, 2022