O mundo segundo Teerã
Assinado em novembro, o acordo sobre o setor nuclear iraniano marca uma etapa importante da aproximação entre Washington e Teerã. Os obstáculos permanecem, mas a República Islâmica parece determinada a aproveitar a nova conjuntura do Oriente Médio e desenvolver um diálogo construtivo com os EUA e com seus vizinhoShervin Ahmadi
Estados Unidos e Irã têm uma longa história. Por um lado, o papel da CIA no golpe de Estado contra o governo nacionalista de Mohammad Mossadegh em 1953; por outro, a tomada de reféns na embaixada norte-americana em 1979: nos dois países, esses episódios ainda estão muito presentes na memória coletiva. Contudo, Teerã parece querer virar a página e depositar, pela primeira vez, sua confiança num governo norte-americano, o do presidente Barack Obama. É uma decisão de consequências incalculáveis para a política regional.
Longe de ser uma improvisação, essa medida foi preparada cuidadosamente, o que se vê pelo modo como se organizou a última eleição presidencial. Decidido a evitar qualquer risco de confronto entre seus partidários, o regime afastou os candidatos mais controvertidos. O povo percebeu a jogada e votou em massa naquele que defendia o fim do conflito com os Estados Unidos. Eleito já no primeiro turno com quase 72% dos votos, o novo presidente Hassan Rohani estava em posição de negociar, em igualdade de condições, com os norte-americanos.
Essa escolha não decorreu de uma visão romântica da administração Obama e de suas intenções: Teerã sabe muito bem que o cenário internacional e regional mudou e que os Estados Unidos já não podem lhe fazer guerra.
A hesitação do presidente norte-americano em ordenar represálias militares contra a Síria e sua adesão à proposta de um desmantelamento do arsenal químico de Bashar al-Assad confirmaram a mudança na ordem regional. Embora o papel da Rússia tenha sido enfatizado pela mídia ocidental,1 os iranianos sempre afirmaram que eram os autores da proposta de destruição do arsenal químico e que convenceram Damasco a aceitá-la. Seja como for, a nova atitude norte-americana persuadiu a República Islâmica de que agora devia recorrer à negociação, não à guerra, e dispor-se a ceder em alguns pontos para normalizar as relações com Washington.
Os dois países têm interesses estratégicos comuns no Afeganistão e no Iraque; ambos se inquietam igualmente com a marcha dos acontecimentos no Paquistão. No entanto, mantêm alianças político-militares antagônicas. O Irã apoia o Hezbollah libanês, a Síria e o Hamas palestino. Os Estados Unidos são aliados das monarquias petroleiras do Golfo Pérsico e de Israel; e ainda que essa região se torne um dia menos importante para eles, não se concebe que tais vínculos venham a ser postos em questão.
No plano econômico, uma reaproximação poderia dar resultados rápidos, como por exemplo o desbloqueio dos fundos iranianos congelados nos Estados Unidos e a assinatura de contratos produtivos nos setores em que o Irã tem necessidades urgentes, como a aviação. As empresas norte-americanas têm todas as condições para conseguir esses contratos, pois, apesar das sanções, sempre estiveram indiretamente presentes no país. Outro trunfo: a considerável diáspora iraniana instalada nos Estados Unidos, que nunca rompeu com a mãe-pátria. Os Estados Unidos dispõem também de uma base cultural sólida no Irã, paradoxalmente o único país da região – afora Israel – onde não se alimenta um sentimento hostil contra eles.
Mas a reorientação da política externa iraniana não diz respeito unicamente às relações com Washington. Longe disso. Teerã já definiu há muito tempo seus eixos estratégicos, determinados não tanto pela ideologia, mas sobretudo pelos interesses regionais e pela avaliação do equilíbrio de forças.
Os avanços do regime iraniano no cenário regional, durante os últimos dez anos, são impressionantes. Ele atuou com muita habilidade e realismo nessa esfera, a segunda em importância aos olhos dos dirigentes (depois da militar). Vários centros de pesquisa especializados surgiram em torno do Conselho de Discernimento do Interesse Superior do Regime e do Ministério das Relações Exteriores. Desde 1997, o Centro de Pesquisas Estratégicas, fundado em 1989 sob a tutela desse conselho, produz com regularidade relatórios sobre as questões mais importantes, endereçados aos dirigentes. Parte desses estudos é publicada no periódico trimestral do centro, que já teve como diretor Rohani, o novo presidente.2 Bem distantes do tom propagandístico oficial, as análises aí desenvolvidas tratam da estratégia tradicional e a revista não hesita em apelar para especialistas estrangeiros.
Crescente influência regional
O Irã manobra num ambiente complicado, dando mostras de grande flexibilidade. Na frente leste, sua principal fonte de preocupação é o Paquistão. O papel deste no Afeganistão, sua aliança com os Estados Unidos, o refúgio que oferece aos muçulmanos mais radicais, sem falar em sua bomba atômica, preocupam o Irã, tanto quanto a instabilidade oriunda desses compromissos contraditórios. Evitando levantar a questão do destino dos xiitas,3 Teerã espera estabilizar suas relações com Islamabad jogando com sua dependência energética. O projeto do “gasoduto da paz”, destinado de início a canalizar o gás do Irã para a Índia através do território paquistanês, foi finalmente assinado em março de 2013. Sob pressão norte-americana, a Índia recuou em 2005,4 mas o Irã sabe que as necessidades energéticas desse gigante econômico vão obrigá-lo, a médio prazo, a rever sua posição.
No Afeganistão, Teerã sempre manteve boas relações com o governo instalado pelos Estados Unidos, que prefere aos talibãs. O intercâmbio econômico teria sido multiplicado por oito nos últimos quatro anos, chegando a US$ 5 bilhões. Ainda que esse número pareça exagerado, os produtos iranianos invadiram o mercado afegão apesar das pressões dos Estados Unidos, para quem Teerã estaria tentando, desse modo, contornar as sanções que lhe foram impostas.5
No Iraque, a queda de Saddam Hussein desembaraçou o Irã de um de seus piores inimigos, permitindo-lhe aumentar sua influência política nesse país e na região. Esquecendo a guerra mais longa do século XX, os dois países se tornaram parceiros econômicos e aliados políticos.
Durante o governo de Saddam, Teerã auxiliou vigorosamente a oposição iraquiana – xiita, mas também curda. Após 2003, algumas facções conservaram relações estreitas com os persas e lhes permitiram ampliar sua influência no palco político iraquiano. O primeiro-ministro Nuri al-Maliki é considerado muito próximo de Teerã, e o dirigente curdo Jalal Talabani desempenhou papel importante na reaproximação entre os Estados Unidos e o Irã. A primeira negociação oficial entre os dois países, com vistas à estabilização do Iraque, foi organizada por sua iniciativa em 2007.
A convivência com Ancara, outro vizinho do oeste, parece mais delicada. As relações econômicas vêm se intensificando há dez anos, com as trocas comerciais passando de US$ 2,1 bilhões em 2002 para US$ 21,3 bilhões em 2012.6 Depois das sanções norte-americanas, as empresas iranianas instaladas nos Emirados Árabes Unidos, responsáveis por grande parte das importações do país, se transferiram para a Turquia. Teerã vê Ancara como importante parceiro estratégico e as ambições regionais comuns podem aproximar os dois países, ainda que permaneçam divididos em relação ao futuro da Síria. Mas, também nesse caso, embora o impasse se prolongue, algumas aproximações são possíveis, como se viu pela visita a Teerã, em 27 de novembro, do ministro das Relações Exteriores turco, Ahmed Davutoglu.7
Uma guerra fria persiste entre o Irã e sua vizinha do sul, a Arábia Saudita. Nos anos 1980, esse reino havia apoiado o regime de Saddam na guerra contra o Irã; e em 1987, por ocasião da peregrinação a Meca, a polícia abriu fogo contra os peregrinos que se manifestavam contra os Estados Unidos e Israel, matando mais de quatrocentos deles, entre os quais 250 iranianos. Mais tarde, as relações se normalizaram sob a presidência de Hachemi Rafsandjani (1989-1997) e Mohammad Khatami (1997-2005), que visitaram várias vezes o reino saudita. Em 2003, a invasão norte-americana do Iraque gerou novas tensões: Riad se inquietou com a influência crescente do Irã e com a marginalização política dos sunitas. A presidência de Mahmud Ahmadinejad (2005-2013), com suas posições agressivas, nada fez para serenar os ânimos.
O Hezbollah atribuiu a Riad a responsabilidade pelo atentado contra a embaixada do Irã em Beirute, em 19 de novembro, quando estavam a meio caminho as negociações em Genebra sobre a questão nuclear. Também no cenário libanês, os dois países se confrontam, a Arábia Saudita apoiando o ex-primeiro-ministro Saad Hariri, além de grupos radicais sunitas às vezes muito próximos da Al-Qaeda.
O degelo entre Teerã e Washington complicou tudo. O Irã tentará estabelecer vínculos privilegiados com os norte-americanos em certos assuntos, como a garantia da saída das forças aliadas do Afeganistão ou a exploração dos campos petrolíferos do sul do Iraque, o que pode enfraquecer a posição da Arábia Saudita. A guerra fria entre Teerã e Riad vai, portanto, continuar.
Nas últimas semanas, o Irã lançou uma ofensiva para atrair outros países do Golfo, enviando em dezembro Javda Zarif, o arquiteto do acordo com os Estados Unidos, a Omã, ao Kuwait, ao Catar e aos Emirados Árabes Unidos. Neste último, Zarif deu a entender que o Irã estava disposto a rever em grande escala sua posição com relação ao problema das ilhas. As três ilhas de Pequena Tomb, Grande Tomb e Abu Mussa foram anexadas pelo Irã, ainda sob o xá, em 1968, mas são reivindicadas pelos Emirados Árabes Unidos.
Tradicionalmente, as relações com o Catar sempre foram muito boas. Doha não apoiou o Iraque na guerra contra o Irã, como outros países do Golfo, e em 2006, quando era membro do Conselho de Segurança da ONU, não votou a favor das sanções contra o Irã. Todavia, o conflito sírio abriu um fosso entre os dois países, pois a ajuda do Catar aos combatentes islâmicos não podia deixar Teerã indiferente. Além disso, Doha acolheu o ex-vice-presidente iraquiano Tarek al-Hachemi, perseguido pela justiça de seu país por ter “financiado ataques terroristas”.
Em busca de parcerias
Para fazer face aos distúrbios do cenário internacional, o Irã procura parceiros. Já membro observador da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), sonha integrar os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), embora seu fraco peso econômico, fora do setor energético, seja um empecilho. Os Brics, aliás, já expressaram por várias vezes sua preocupação com as ameaças militares ao Irã.
Durante o governo de Ahmadinejad, o Irã investiu bastante na América Latina. Dois presidentes, o venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales, foram a Teerã; e as relações comerciais se ampliaram a tal ponto que Hillary Clinton, então secretária de Estado, mostrou publicamente sua inquietação com esses sucessos diplomáticos na América Latina.8
Com a Europa, as relações flutuaram desde a revolução de 1979. O assassinato em Berlim, em setembro de 1992, de vários membros do Partido Democrático do Curdistão Iraniano (PDCI), entre os quais seu secretário-geral, Sadegh Sharafkandi, provocou uma ruptura do “diálogo crítico” entre a União Europeia e Teerã. Só com a eleição de Khatami, em 1997, as relações foram retomadas. Depois, em 2003, quando a guerra no Iraque recomeçava, a Europa, representada pela Alemanha, França e Reino Unido, entabulou negociações com o Irã sobre seu programa nuclear. Teerã concordou com algumas concessões, por exemplo, sobre o enriquecimento de urânio e a aplicação do protocolo adicional do Tratado de Não Proliferação de armas nucleares; mas os Estados Unidos, embriagados com sua “vitória fácil” no Iraque, deixaram esse processo se perder. Em dezembro de 2006, a União Europeia votou a Resolução n. 1.737 do Conselho de Segurança, impondo as primeiras sanções da ONU ao Irã e adotando, de seu lado, medidas ainda mais coercitivas. Em 2012, o Conselho Europeu determinou um embargo sobre as exportações de petróleo iranianas e congelou os valores depositados no Banco Central do Irã.
Apesar de tudo, alguns países europeus continuaram a manter relações comerciais com o Irã. Sem dúvida, as trocas diminuíram: em dois anos, as exportações iranianas para a Europa caíram de 16,5 bilhões de euros para 5,6 bilhões de euros, e as importações, de 10,5 bilhões de euros para 7,4 bilhões de euros.9 A British Petroleum tenta de todos os modos evitar sanções para poder investir no projeto Chah Deniz 2. Londres desempenhou um papel importante nas negociações que levaram a um acordo sobre a questão nuclear. Desde a eleição de Rohani, a cadeia BBC Farsi, muito popular no Irã, dá uma imagem positiva do país. Teerã procura fazer bom uso das ambições regionais de Londres,10 enquanto Paris parece totalmente desacreditada. Caso a retomada de relações com Washington se confirme, as empresas europeias correm o risco de perder o posto privilegiado que, há trinta anos, vêm conservando no mercado iraniano…
Shervin Ahmadi é Jornalista responsável pela edição de Le Monde Diplomatique em farsi.