O novo protagonismo social dos protestos de massa
A falsa disjuntiva que há um quarto de século reduz as expectativas de mudança no Brasil aplicando o mesmo programa comum de rentabilização financeira, agroindústria e mineração predatórias e associação com quase todas as oligarquias regionais tradicionais, representadas por PT/PSDB, pode estar com os dias contadosHenrique Carneiro
Os grandes movimentos sociais de revoltas que surgiram no mundo em geral e no Brasil em particular desde o início do século XXI tiveram expressão fora dos aparatos sindicais e do sistema político oficial.
As chamadas “primaveras árabes”, mesmo que hoje em estação invernal, foram explosões populares inesperadas, com adesão intensa e entusiástica de multidões, despertando gerações que nunca haviam sido protagonistas. O cenário dessa luta política ficou marcado pelo acampamento da Praça Tahrir, e esse método se espalhou como um movimento global de ocupação.
Da Puerta del Sol, em Madri, à Praça Syntagma, em Atenas, espalhando-se para Nova York e Moscou, desde 2011, com diferenças em cada país, mas com um paralelismo na ausência de programas definidos ou de instituições representativas tradicionais, vem ocorrendo um novo impulso político de massa. Ele parte especialmente dos setores juvenis, de um novo precariado de nível universitário e de uma geração sem horizontes, mas com grandes angústias diante da degradação socioambiental em curso.
No que tange ao Brasil, entretanto, o irromper dessa onda internacional correspondeu à junção de formas alternativas de articulação política num âmbito “temático”, como o Movimento Passe Livre (MPL), que já havia desencadeado revoltas populares anteriores em diversas cidades, especialmente em Salvador e Florianópolis. Outro exemplo é a Marcha da Maconha, que, após a repressão em 2011, em São Paulo, catalisou marchas em todo o país, o debate no STF e a consolidação de uma causa democrática até então praticamente proscrita do direito ao debate público. Também a defesa de áreas urbanas específicas de interesse público – como o Ocupe Estelita, em Recife; a defesa do Parque do Cocó, em Fortaleza; do Parque Augusta, em São Paulo; da aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro – foi um fenômeno com muitas analogias com a Praça Taksim, em Istambul.
Junho de 2013 no Brasil não foi um raio em céu claro, mas o amadurecimento de uma série de fatores, inclusive a atmosfera internacional criada pelos levantes a partir de 2011.
O mais importante desses fatores, tanto na Europa como no Brasil, é o esgotamento de um conjunto de instituições políticas ligadas ao ciclo anterior de movimentos e partidos. Na Europa, a social-democracia se tornou o principal agente em diversos países na gestão dos Estados e na aplicação dos planos de austeridade a serviço da chamada Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI), uma espécie de cúpula supranacional da ditadura financeira europeia e global. De forma semelhante, o PT e seus governos no Brasil consolidaram um modelo social-liberal no qual o setor financeiro também foi o maior beneficiário.
A condição para o PT e para os partidos socialistas europeus cumprirem esse papel histórico foi o crédito político que obtiveram ao se tornarem a referência política de um ciclo de lutas populares e sindicais e, depois, de se mostrarem como alternativa capaz de vencer eleições. Ao assumirem os governos, contudo, dedicaram-se a uma conversão ao paradigma rentista financeiro, ao qual passaram a servir, e intensificaram seu papel de maiores obstáculos para as lutas sociais usando os aparatos sindicais como um freio orgânico. Ao garantirem crédito aos banqueiros, liquidaram seu crédito político junto ao povo. Ao crerem mais no crédito bancário do que na renda do trabalho, perderam a credibilidade e a confiança pública.
Com a absorção pelo governismo de entidades como CUT, MST e UNE, que haviam sido os veículos do ciclo anterior de grandes lutas de massa no Brasil (Diretas Já, em 1984, e Fora Collor, em 1992), restou um vazio de mobilizações com essas grandes estruturas burocráticas apáticas e integradas.
O que ocorre agora parece ser um novo ciclo, com os maiores protestos de massa da história do país eclodindo em 2013 como uma reação em cadeia que resultou de uma insatisfação longamente represada. Greves também voltaram a ser organizadas nas grandes obras da construção civil, entre garis e rodoviários, mas com características de explosões espontâneas e numa nova resistência a demissões no setor metalúrgico.
Na Europa, já há uma cristalização do novo ciclo de protestos de massa em novas referências políticas eleitorais, a partir da primeira vitória na história europeia de uma formação política da “esquerda da esquerda”, que foi o Syriza, na Grécia, no início de 2015, seguido do enorme crescimento do Podemos, na Espanha, ameaçando tornar-se a maior força política do país nas próximas eleições do fim do ano.
No Brasil, o crescimento do polo da “esquerda da esquerda” foi relativamente pequeno nas últimas eleições, com destaque para o Psol, que chegou a 1,6% dos votos nacionais. Mas já vem se abrindo espaço para um sindicalismo mais combativo, como o da CSP-Conlutas, na construção civil e em outros setores. A corrosão final da base social do PT e da CUT parece ser um destino histórico irreversível, pois seus laços com as mobilizações sociais quase desapareceram, tornando-se, respectivamente, um partido puramente parlamentar e governista e um sindicalismo em amigável convivência com os interesses burgueses. A perda de credibilidade do PT se agravou quando, diante de um último suspiro de alguma esperança de que o partido poderia guinar para a esquerda, como sugeriu certa campanha eleitoral, Dilma Rousseff compôs o ministério com Joaquim Levy, Gilberto Kassab, Kátia Abreu e outros próceres da República.
A falsa disjuntiva que há um quarto de século reduz as expectativas de mudança no Brasil aplicando o mesmo programa comum de rentabilização financeira, agroindústria e mineração predatórias e associação com quase todas as oligarquias regionais tradicionais, representadas por PT/PSDB, pode estar com os dias contados também por aqui.
O repúdio popular ao sistema político, mensurável não só pelas sondagens, mas por ações como a que ocupou e cercou a Assembleia Legislativa do Paraná, indica que ainda estão latentes as energias que se desataram como uma placa tectônica em 2013.
As cercas dos palácios podem voltar a tremer. Como a economia deve sofrer maior retração, o modelo predatório vai continuar, a água vai escassear ainda mais, a crise energética ameaça apagões, a violência da repressão só aumenta e os governos, de Geraldo Alckmin a Dilma, parecem múmias impávidas diante da catástrofe.
O pulso das explosões plebeias, dos sans-culottes do século XXI, pode se repetir em novas vagas, mas a incógnita maior é se no Brasil, a exemplo da Europa, poderá haver novos fenômenos políticos de movimentos antissistêmicos que expressem um polo de aglutinação da insatisfação pela esquerda, pois há muitos ovos de serpente também chocando à direita.
A desconfiança abrange imensos contingentes da juventude e do povo e se expressa de forma inorgânica, no rechaço ao sistema. No entanto, ao não haver nenhuma alternativa viável e convincente de ser um novo foro democrático, essa desconfiança se perde se não apontar alguma forma política capaz de um programa e de um protagonismo real. Além de desconfiar, é preciso confiar em algo.
Haverá um movimento, partido ou frente de agrupações que reflita Junho de 2013 para levar a luta conjunta contra o PT e o PSDB, além de todo o sistema político empresarial vigente? Poderá surgir algo como um Podemos ou um Syriza no Brasil?
Henrique Carneiro é historiador.