O poder de morte da PM-SP – Parte II: Mecanismos de controle do uso da força
A partir da transição democrática no Brasil, como se tratou o problema da violência policial nas políticas de segurança pública do estado de São Paulo? Mesmo sendo signatário de acordos internacionais, a violência nas ações policiais é um problema constatado no Brasil como um todo. Quais são os limites de ação de grupos internos e externos de controle frente às instituições e às condições de atuação das forças policiais?
Políticas para o uso da força estão relacionadas diretamente à responsabilização e ao controle que deve ser exercido sobre as instituições policiais. As políticas devem ser capazes de definir regras, modelos, padrões e alternativas de comportamento visando a redução do uso da força letal. São várias as formas de accountability existentes nas práticas das polícias contemporâneas. Existem práticas de responsabilização internas e externas, verticais e horizontais, formais e informações, legais e burocráticos etc. A questão que se coloca é a legitimidade e a efetividade dessas formas de controle.
O Código de Conduta para Funcionários Encarregados de Fazer Cumprir a Lei – (CCONU), resolução 34/169 de 16 de dezembro de 1979 da ONU, definiu o padrão policial internacional da seguinte maneira: os policiais devem cumprir a lei; respeitar e proteger a dignidade humana e manter a defesa dos direitos humanos; usar a força somente quando for estritamente necessário, baseando-se no princípio da proporcionalidade (o uso da arma de fogo é considerado medida extrema a ser evitada); garantir a confidencialidade das informações; proibir absolutamente o uso da tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; assegurar a saúde das pessoas sob sua custódia; e obedecer aos preceitos do Código, fazer com que ele seja cumprido e informar seus superiores de violações do mesmo. O Código sinaliza que o respeito aos direitos humanos e a proteção de cidadãos, vítimas, policiais e infratores devem ser os princípios orientadores das agências policiais nas democracias.
Em 1990, o 8º Congresso da ONU sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes elaborou os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei. As resoluções trataram de temas mais específicos referentes ao uso da força e da arma de fogo. A intenção do documento foi fomentar políticas regionais, nacionais e internacionais sobre o uso da força, em consonância com o respeito à legalidade e à proporcionalidade da ação policial:
(I) instruir os governos a oferecer treinamento e equipar os policiais com amplo espectro de armas que confiram gradação ao uso da força;
(II) Apoiar o desenvolvimento e o uso de armas e munições não letais, procurando com isso a diminuição de ocorrências de ferimentos graves e mortes em ações policiais;
(III) Incrementar o uso de equipamentos de legítima defesa como escudos, capacetes, coletes à prova de bala com o intuito de minimizar o uso de armas de qualquer espécie;
(IV) quando o uso da arma de fogo for estritamente necessário, devem ser observadas as seguintes distinções: a) exercer moderação no uso de tais recursos e agir na proporção da gravidade da infração e do objetivo legítimo a ser alcançado e b) minimizar danos e ferimentos, e respeitar e preservar a vida humana.
Mais especificamente, o Princípio Básico nº 9 estipula que os responsáveis pela aplicação da lei não deverão usar armas de fogo, exceto em casos de legítima defesa contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave. A arma de fogo pode ser utilizada para impedir a perpetração de crime grave que envolva séria ameaça à vida.
Essas diretrizes internacionais não são vinculantes. A Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo (LOP), Lei Complementar 207, de 5 de janeiro de 1979, alterada pela Lei Complementar 922 de 9 de julho de 2002, não faz menção às regras sobre uso da força. Embora alguns estados tenham realizado treinamentos baseados em usos gradativos da força, como é o caso do Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, juridicamente no país não há regras que permitam definir se o uso da força foi excessivo ou desnecessário.
A CF de 1988 não alterou o Código de Processo Penal Militar (CPPM) nem a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1978, que definiu o foro militar para julgar o policial. Em síntese, quando um policial comete um crime, é aberto Inquérito Policial Militar (IPM) e o julgamento se dá nos chamados conselhos de sentença, compostos por quatro juízes militares e um juiz togado. Além disso, para ser juiz militar basta ter patente ou posto superior ao do policial que está sendo julgado. Para muitos analistas, essa sem dúvida é uma receita para a impunidade decorrente de crimes cometidos por policiais militares.
Por essa razão, o debate sobre as mortes ocorridas em ações da polícia tem sido direcionado para a mudança do julgamento dos policiais da justiça militar para a justiça comum. Embora os crimes de homicídio cometidos por policiais militares em serviço sejam passíveis de julgamento pela justiça comum, mediante processo investigatório que se inicia tanto na caserna como na delegacia de polícia civil, os policiais militares ainda estão submetidos à justiça especial.
O policial militar no seu trabalho civil responde à Corregedoria da Polícia Militar (Corregepol) que tem características essencialmente militares e é uma forma de controle disciplinar interno. A Polícia Civil tem corregedoria própria. A corregedoria tem como competência a investigação de crimes militares, faltas de caráter disciplinar e a instauração de inquéritos militares. Ela recebe denúncias de vítimas, testemunhas e comandantes, bem como do Ministério Público, Ouvidoria de Polícia, Disque-Denúncia e por outros meios de comunicação. As denúncias caracterizadas como crime são encaminhadas para a Justiça Militar do Estado de São Paulo (JMESP), um foro especial com competência para processar e julgar policiais militares por crimes militares definidos em lei. Caso o foro especial acate a denúncia, este deve instaurar um IPM. As investigações realizadas pela Corregedoria consistem basicamente no levantamento da ficha policial do acusado, coleta de depoimentos, confronto das versões dos fatos e verificação das provas.
As transgressões disciplinares são classificadas em leve, média e grave e as sanções aplicadas incluem advertência, repreensão, detenção, prisão administrativa e exclusão. Os policiais acusados de transgressões disciplinares e mesmo homicídios não são afastados das atividades. A atuação das corregedorias parece na verdade estimular a impunidade nos casos considerados graves – a ação de grupos de extermínio em São Paulo envolvidos na chacina de São Mateus (em 2006), nos grupos de extermínio do Parque Bristol (em 2007) e os Highlanders (em 2008) foi investigada, mas a corregedoria desqualificou as vítimas, acusando-as de envolvimento com o tráfico de drogas ou indicou a absolvição dos policiais.[1]
O controle externo das polícias militares ainda é pouquíssimo desenvolvido no país, o que dá às polícias militares ampla margem de arbítrio em uma função essencialmente civil que é a da segurança pública.[2] Estudos realizados pela Ouvidoria de Polícia têm demonstrado que a prática da Corregepol militar em classificar esses crimes como “resistência seguida de morte” e mesmo como “morte decorrente de intervenção policial”, além de já conter uma avaliação prévia que inocenta o policial, tem provocado erros de distribuição dos processos no Poder Judiciário. Segundo a lógica processual, portanto, três delitos deveriam ser objeto de processo: o crime gerador da ação policial, a resistência à prisão e a morte decorrente da intervenção policial.
Outra agência de controle da atividade policial, o Ministério Público exerce função constitucional indispensável. Em geral, essa função está adstrita ao processo acusatório, ou seja, como representante do poder público na acusação formal e acompanhamento de inquéritos policiais (IPs) em todos os crimes. Afora essa função processual, o MP tem o papel de acompanhar denúncias e propor mudanças nas estratégias de acompanhamento de processos acusatórios.
Em 2003, o MP paulista criou o Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial (Gecep) e, em 2010, foi reorganizado. O grupo foi criado como forma de reforçar o compromisso do Ministério Público de controle externo da atividade policial, tendo como atribuições receber denúncias de abusos, maus-tratos, tortura e homicídio praticados por agentes do Estado e adotar medidas jurídicas necessárias para apuração do fato. Entre outras funções específicas, como visitar cadeias e delegacias, o MP deveria elaborar banco de dados e analisar “as ocorrências sobre possível prática de delitos por agentes do Estado que tenham resultado em morte, tortura ou lesões em situação de confronto ou não com a vítima, instaurando-se, se for o caso, procedimento investigatório criminal para apuração do fato”. Os membros do MP, no entanto, afirmam que o órgão está aquém dessas funções (apud Nunes, 2014).
Uma importante função do MP consiste em fazer cuidadosa análise dos autos processuais em termos da qualidade das provas testemunhais e periciais. As testemunhas em sua grande maioria são os próprios policiais envolvidos com a ocorrência. E, como se sabe, as provas periciais são pejadas de erros e lacunas. Por exemplo, Farias (2014) analisou um laudo cadavérico de um homem morto pela incursão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) no Morro do Russo em 2008. Na necropsia constava a marca produzida por grânulos de pólvora. No registro de ocorrência (RO), a dinâmica dos fatos narrada pelos policiais traz a versão da troca de tiros entre traficantes e policiais, acompanhado da informação de que os policiais presentes prestaram socorro à vítima, levando-a para o hospital mais próximo, onde faleceu.[3] As anotações do perito policial foram duvidosas e lacunares, dificultando uma leitura adequada do ocorrido. A interpretação mais plausível que apontava para execução sumária somente foi possível porque a família constituiu um perito próprio.
Em outra pesquisa, Michel Misse (2011) analisou os homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro entre 2001 e 2011. A pesquisa realizou o acompanhamento do trabalho de promotores da Primeira Central de Inquéritos, analisou os IPs, realizou entrevistas com promotores, juízes, defensores públicos, familiares de vítimas, policiais civis e militares. A pesquisa fez observação do trabalho de investigação policial em homicídios em uma delegacia da Zona Norte da cidade. Acompanhou os casos denunciados no Tribunal de Justiça e fez a leitura de processos criminais. Como conclusões, apontou para a importância do Auto de Exame Cadavérico (AEC) realizado pelo Instituto Médico Legal. Os antecedentes criminais e a precariedade das investigações marcam a decisão do sistema de justiça, pois nessas circunstâncias os casos são arquivados, mesmo quando há indícios de execução.
Observaram-se indícios de que os policiais desfizeram cenas do crime e a ausência de perícia no local do crime. A pesquisa encontrou uma narrativa padrão dos ROs, segundo a qual os policiais foram recebidos a tiros pelos “bandidos”, “elementos” ou “meliantes”, numa construção da inculpação das vítimas pela resistência e por suas mortes. A pesquisa demonstrou a baixa qualidade dos inquéritos, assim como a ausência de elementos probatórios para confirmar ou refutar a versão dos policiais e a tendência ao arquivamento da maioria dos inquéritos e processos instaurados, prevalecendo a narrativa inicial apresentada pelos policiais. Portanto, as práticas judiciárias em relação à culpa dos policiais denunciados como criminosos não têm tido efeito na redução dos indicadores de letalidade. Na verdade, contribuem para a construção judicial e policial da impunidade.
De todo modo, a referência internacional está sendo utilizada como padrão para definir o conceito de letalidade a partir do uso proporcional da força. O crescimento da pressão da sociedade civil e das organizações internacionais de direitos humanos, bem como o crescimento da letalidade em São Paulo, provocaram a adoção de algumas formas de controle. As principais foram a Ouvidoria de Polícia, controle externo, e o Programa de Acompanhamento de Policiais Militares Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco (Proar), controle interno, introduzidos em 1995.
*Luís Antônio Francisco de Souza é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp, campus de Marília; Gabriel de Sousa Romero é bacharelando em Ciências Sociais e pesquisador do Observatório de Segurança Pública da Unesp de Marília; Evelyn Moreira Januário é bacharel em Ciências Sociais e pesquisadora do Observatório de Segurança Pública da Unesp Marília; e Juliane Figueiredo Silva Pereira é graduanda em Ciências Sociais e pesquisadora do Observatório de Segurança Pública da Unesp Marília.
Leia a seguir as demais partes deste artigo
Parte I: Mandato policial
Parte III: Controle externo e controle interno
[1] HUMAN RIGHTS WATCH. Força Letal: violência policial e segurança pública no Rio de Janeiro e em São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.hrw.org/report/2009/12/08/lethal-force/police-violence-and-public-security-rio-de-janeiro-and-sao-paulo.
[2] Embora o tema da violência policial tenha sido abordado desde antes da redemocratização, a questão do controle externo começa a aparecer durante os anos 1990. Ápice desse processo é a realização da Primeira Conferência Internacional sobre Controle Externo da Polícia, em 1999.
[3] A prática de prestar assistência à vítima da ação policial pelos próprios policiais vem sendo criticada como sendo uma forma de prejudicar as investigações pela violação do local do crime. Somente recentemente a prática está mudando, com regras para a preservação do local do crime que inclui o acionamento do Samu. Essas práticas estavam presentes nas ações da PM na ditadura militar.