O poder desnudado por suas próprias crises
A crise econômica iniciada em 2008, o acidente nuclear de Fukushima e as revoltas populares no mundo árabe convergem para um questionamento do capitalismo mundial. Apesar das diferenças que guardam entre si, os três grandes acontecimentos que agitam o mundo revelam de maneira gritante os limites de uma mesma lógicaDenis Duclos
Três grandes crises agitam o mundo e não se deixarão reduzir a assuntos que espiamos rapidamente antes de passar para o próximo: o grande pânico financeiro iniciado no final de 2008; o acidente nuclear em Fukushima, ocorrido em 11 de março de 2011; e a crise de regime em muitos Estados árabes, onde o povo se rebela desde o fim de 2010.
A priori, não é razoável comparar tais crises, já que elas se referem a campos muito diferentes. A primeira, que parece produzir-se em um mundo virtual, trata da evaporação de trilhões de dólares; a segunda decorre de um acidente gravíssimo relacionado a uma tecnologia que visa à produção de energia abundante; e a terceira nasce de uma revolta popular em massa contra ditaduras militarizadas. Também não seria decente justapô-las como puras catástrofes, sendo uma o efeito do “triunfo da ganância”1 e outra o resultado de um desastre natural imprevisível, com sofrimentos que assumem o sentido – desejável – de uma “primavera dos povos”.
Contudo esses eventos distintos convergem para um mesmo questionamento do sistema capitalista mundial. E a resultante poderia não ser o caos global anunciado por um impressionante concerto de pessimistas, mas uma evolução libertadora – um “parto da história”, retomando a clássica metáfora marxista.
Pontos em comum
Essas crises têm três pontos em comum. Elas fragilizam pilares cruciais do sistema: sua base energética, seu modo de orientação do trabalho humano pelo dinheiro e sua necessidade de estabilidade política, especialmente na periferia dos centros liberais. Em cada área respectiva, as crises são a manifestação do mesmo estilo do excesso, que conduz ao perigo tecnológico inaceitável, ao risco financeiro incontrolável ou ao poder autoritário insuportável. E revelam o poder das tendências que se opõem à manutenção do próprio sistema: dinâmicas ambientais e resistências humanas de sociedades inteiras que se recusam a submeter-se à incompetência, à poluição ou a autoridades delinquentes.
Em primeiro lugar, destaca-se um conjunto coerente de condições de sobrevivência do mecanismo dominante: a submissão do homem e da natureza ao controle e à exploração do melhor mercado, pelo maior rendimento possível. Assim, a tutela financeira da economia não é uma divagação especulativa: ela ordena as atividades humanas pela lógica do rendimento. A economia virtual constitui, portanto, menos uma aberração que um campo de manobra da autoridade mundializada, capaz de deslocar fábricas e trabalhadores; de criar economias “emergentes”, impérios-fábrica e continentes-escritório; de prever a produtividade e desenvolver o consumo cativo que lhes serão irreversivelmente necessários. Em outras palavras, a financeirização é a criação do quadro – muito caro – de uma economia-mundo. Daí que sua crise em enormes bolhas de insolvência desqualifica a governança geral do trabalho humano no sistema.
Imprevisibilidade e desordem
Sem o petróleo – mesmo três vezes mais caro que em 2000 e dez vezes mais que em 1990 –, deveríamos dividir por quatro a produção global de alimentos. A intendência que ainda fornece energia barata não pode desprezar nenhum de seus recursos fósseis, orientando cada setor a um uso preferencial: energia nuclear para a produção industrial; carvão liquefeito e gás para o aquecimento; e petróleo principalmente para deslocar um bilhão de veículos.2 Questionar o setor nuclear (e planejar seu abandono, como propõe a Alemanha até 2022) não será, portanto, apenas uma lição que incentiva a reorientar pelo menos 14% da produção elétrica mundial para a energia eólica, solar ou para a biomassa, mas um ataque a um segmento essencial do mecanismo global.
Enfim, sem esmagar as liberdades políticas num anel de países em torno das democracias de mercado supostamente regidas pelo Estado de direito, centenas de milhões de pessoas seriam desenfreadamente atraídas para mercados de trabalho distantes de seu local de vida; conflitos sociais ou religiosos adiariam indefinidamente a própria possibilidade de uma mundialização dócil das trocas.
Esses mesmos democratas puderam ver na solidez dos regimes eufemisticamente considerados “moderados” um escudo contra um conflito mundial oriundo do barril de pólvora do Oriente Médio. É por isso que as legítimas exigências dos povos rebelados não suscitam apenas a espontânea solidariedade (como na Líbia), mas também uma grande preocupação, mais ou menos disfarçada de expectativa.
Não é de surpreender, portanto, que essas três crises convoquem as mais altas instituições internacionais nem que corram a tentar debelá-las. Como disse o californiano especialista em energia nuclear Najmedin Meshkat sobre o acidente em Fukushima: “Isso vai muito além do que um país pode gerir. É algo que deve ser discutido pelo Conselho de Segurança da ONU. […] É uma questão mais importante que a zona de exclusão aérea sobre a Líbia.”3
Em segundo lugar, cada uma dessas três falhas sistêmicas designa a mesma tendência do sistema a “forçar” o curso das coisas: forçar o trabalho humano pelo constrangimento financeiro; forçar a natureza por meio de tecnologias perigosas; forçar o processo político, enquadrando as massas quando elas ainda não se disciplinaram pela lógica taylorista (que foi e continua sendo a faceta civil da disciplina militar).
A indústria financeira usou a garantia dos Estados liberais para beneficiar dívidas públicas, manipular ofertas de crédito e empurrar devedores para contratos injustos ou armadilhas invisíveis. Quanto aos regimes autoritários, eles exibem sua natureza em seus uniformes e nas suas barreiras rodoviárias, em prisões políticas e “estados de exceção”, na arrogância de suas classes nepotistas monopolizadoras. Por fim, a indústria nuclear cerca-se, desde suas origens, de uma cultura da segurança, policial e militar, para impor suas escolhas em nome dos interesses nacionais estratégicos.
Nos três casos também, a duplicidade serve como ferramenta de gestão cotidiana. Depois de escamotear os pontos fracos – impossibilidade de “titularizar” as dívidas sem tirar a solvibilidade do sistema financeiro; necessidade permanente de resfriar uma central nuclear; separação inelutável entre os povos e os serviços de segurança –, camufla-se a extensão dos danos. O programa de recuperação dos ativos bancários nos Estados Unidos, votado em outubro de 2008, cobria apenas US$ 300 bilhões (com um custo final de US$ 25 bilhões para os contribuintes), ou seja, menos de um décimo das perdas reais. O desastre nuclear de Fukushima foi e continua sendo constantemente minimizado pela operadora Tepco e pelas autoridades japonesas e internacionais, mesmo depois de ter sido considerado de gravidade equivalente à do acidente de Chernobyl. Isso sem falar nos desaparecimentos, torturas, prisões e abusos de todo tipo, ignorados pela mídia nos regimes principescos ou nas ditaduras militar-policiais ainda consideradas “moderadas”.
Esses excessos revelam agora seu limite comum. A falta de previsão, a confusão e a paralisia aparecem e perduram, apesar das afirmações infundadas e da insistência no erro. A incapacidade de pensar acompanha como uma sombra a vontade de impor uma ordem a despeito de qualquer razão: quando se decide construir uma indústria nuclear, não se pode incluir a prioriuma “preparação para um acidente grave” cuja simples possibilidade se nega (com apoio do cálculo de probabilidades). Assim, a França e o Reino Unido recusaram-se a incluir os ataques terroristas nos “testes de resistência” das centrais nucleares europeias.
No mundo financeiro, se acredita no mercado (que é sua fonte de vida), você não pode pensar o crescimento como uma bolha que vai “suicidá-lo” – e isso menos de um século após a última grande crise, e exatamente como previu o economista John Kenneth Galbraith.4 As elites ditatoriais parecem incapazes de imaginar, até o último segundo, que um buraco pode se abrir em seus palácios e que seus privilégios podem ser abolidos, tanto pela rua (que desprezam) como pelo congelamento de seus bens tão cuidadosamente expatriados. Considerando a impotência para resolver problemas, a analogia entre a crise nuclear e a financeira fica ainda mais evidente. Como observa Paul Jorion,5 a crise financeira assemelha-se à de Fukushima: em um caso, é necessário jogar água incessantemente para resfriar os núcleos danificados da central; no outro, é necessário jogar dinheiro incessantemente para remediar a implosão da bolha.
Mas, assim como será difícil esconder e reduzir por muito tempo o grau de endividamento ao qual conduziu a excessiva criação de moeda por meio do crédito – pois essas perdas acabarão sendo absorvidas pelos contribuintes –, também será impossível estabilizar por muito tempo a difusão mundial (por ar, mar e pelos produtos exportados) de substâncias radioativas de longa duração, como o césio 137, ou muito tóxicas, como o plutônio – pois os tanques de muitos reatores estão danificados. Do mesmo modo, já não se pode mais esconder que, para além das zonas de evacuação, o Japão está ameaçado por uma nova degradação dos reatores de Fukushima, pelo estado de outras centrais abaladas pelo terremoto ou pela radioatividade subavaliada que impregna o solo, os produtos agrícolas, os contêineres. Também não se pode mais esconder que outros milhões de pessoas serão afetados pelo agravamento da crise econômica e do desemprego, em decorrência do desastre.
Uma ideologia em declínio
É verdade que persiste a atitude de conduzir as coisas à força, com imposições financeiras, tecnológicas e policiais. Esses constrangimentos contam até mesmo com uma solidariedade corporativa mundializada: a definição, pelas instituições nucleares do mundo inteiro, do que se pode saber; o impedimento, pelos lobbiesfinanceiros, da restrição de seu poder de orientar o futuro; o socorro mútuo dos regimes autoritários (príncipes sunitas reprimindo juntos os manifestantes no Bahrein, ou cartéis militares do Magreb apoiando secretamente o coronel Muamar Kadafi); e a desconfiança ocidental implícita para com a juventude árabe.
Mas a estratégia de forçar o mundo não pode mais atuar como ideologia global. Ela não aparece mais como um mal necessário, revelando-se pelo que é: um estilo de governo arbitrário, perigoso e predatório, a serviço de três tipos de agentes de dominação, em detrimento da liberdade de cada um dispor de seu trabalho, desfrutar da natureza sem destruí-la (verdadeiro objetivo da economia, de acordo com o matemático e bioeconomista Nicholas Georgescu-Roegen) e participar sem entraves da comunidade política humana.
As três crises que manifestam os mesmos constrangimentos excessivos do dinheiro, da tecnologia e do poder têm como resposta a expectativa das “três libertações”: a de um trabalho humano que não deve ser apenas relocalizado, reformulado e orientado para o lucro máximo, mas sim rediversificado, em uma lógica de maior autonomia; a da natureza que não deve ser submetida ou torturada para obter sua máxima utilidade; e por fim a da livre participação na vida política do “povo planetário”, contrária tanto à dominação dos regimes militares (ou das fatwas aterrorizantes cada vez mais rechaçadas no mundo muçulmano) como ao fechamento xenófobo que sentimos crescer no Ocidente, presumido lar do liberalismo.
Em todas essas áreas, uma formidável batalha de ideias está sendo travada, especialmente na internet. Ela se mostra tão difícil no setor de energia como no campo financeiro – em que cada protagonista deve iniciar-se nos arcanos do funcionamento dos mercados –, e mesmo assim cresce em camadas cada vez mais amplas, apesar dessa dificuldade. A intuição de uma possibilidade de viver de outra forma, mais simples e livre, é o argumento que enfrentam agora os experts, sem que eles possam imediatamente tachar tais alternativas regressivas ou irrealistas.
Denis Duclos é antropólogo e diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, na França. Autor de Éloge de la pluralité – Conversion entre cultures et continuation de l’humanité, Bibliothéque de la Revue du Mass permanente, Paris, 2012.