O preço da cooperação UE e CELAC
A Cúpula Celac-UE foi organizada como um espaço para reaproximar os chefes de estado e governo, além de os conectar a executivos de grandes empresas, associações industriais e instituições financeiras cuja atuação se relaciona à gestão de portfólios associados ao financiamento para o desenvolvimento
Nos dias 17 e 18 de julho de 2023, a capital da Bélgica e da Europa, Bruxelas, reuniu representantes de países da União Europeia (UE) e da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac) na Cúpula Celac-UE. Trata-se de um espaço para o diálogo político e a promoção da cooperação entre os países membros de ambos os blocos político-econômicos. Esta é a terceira reunião conjunta de lideranças europeias e latino-americanas na história recente. A última vez que o encontro aconteceu foi há oito anos.
Embora houvesse muita expectativa em torno de um possível avanço do Acordo Mercosul-UE, a reunião não constitui o foro apropriado para esse tipo de discussão e este tema ocupou apenas uma agenda lateral, sem grandes anúncios ou resultados. Contendo uma programação extensa – que incluiu mesas redondas voltadas para o diálogo com a sociedade civil, com as juventudes e com os governos subnacionais –, o foco principal da Cúpula foi a proposta de investimentos feita pelos europeus aos latino-americanos.
A Cúpula foi organizada como um espaço para reaproximar os chefes de estado e governo, além de os conectar a executivos de grandes empresas, associações industriais e instituições financeiras cuja atuação se relaciona à gestão de portfólios associados ao financiamento para o desenvolvimento (principalmente, a Agenda 2030). Em paralelo, ela também repercutiu as movimentações para recalibrar o regime financeiro global na direção de uma maior participação dos agentes privados no financiamento de projetos no nível nacional.
Documentos oficiais, ao descreverem os objetivos do que foi chamado de um “Painel de Negócios entre União Europeia e a América Latina e o Caribe” (ALC), sinalizam a necessidade de uma “revisão conjunta dos parâmetros-chave” para a nova estratégia de investimentos que vem sendo promovida pelos europeus, o Global Gateway (Portal Global, em português). A linguagem sugere que o trabalho no encontro deveria enfocar os critérios para a redistribuição dos riscos relacionados ao investimento, de modo a tornar as economias latino-americanas mais atrativas ao capital externo.
O nome Global Gateway denota o esforço da União Europeia para se reconectar com o mundo em um contexto de acirradas disputas com os Estados Unidos, de um conflito aberto envolvendo a Rússia (ainda que triangulado pela Guerra na Ucrânia), e, principalmente, da emergência chinesa como fator incontornável de concorrência global, tanto do ponto de vista da realização de projetos quanto da exportação de capitais para diferentes regiões. Para fazer frente a esses desafios, em 07 de junho de 2023, foi lançada a Nova Agenda para as Relações entre UE-ALC, à qual o Global Gateway está vinculado.

Na semana seguinte a esse lançamento, a presidente da Comissão Europeia, Úrsula von der Leyen, visitou o Brasil, a Argentina, o Chile e o México. O objetivo foi reforçar o interesse europeu em seguir com a estratégia para esses países. Ato contínuo, segundo o calendário disponibilizado pela própria Comissão Europeia, a Cúpula Celac-UE seria o momento de coroação do processo de engajamento dos países latino-americanos e caribenhos na nova estratégia bi-regional.
Concretamente, o Global Gateway constitui um portfólio de investimentos que é ofertado pela Europa à América Latina, à África e à Ásia. Ele deverá funcionar como uma plataforma para atrair recursos no nível supranacional e nacional europeu, além de estabelecer parcerias com o setor privado daquele continente. Considerando os grandes números divulgados no site da iniciativa, a expectativa é conseguir mobilizar até 300 bilhões de euros (não há cronograma claro para este dispêndio), dos quais 10 bilhões em recursos públicos europeus devem ser destinados exclusivamente para a América Latina. O Brasil se beneficiaria com pelo menos 2 bilhões de euros, com foco na produção de hidrogênio verde.
A diferença entre 300, 10 e 2 bilhões de euros é grande. O pulo do gato para entender essa matemática é avaliar o peso da iniciativa privada, em particular dos investidores institucionais, para financiar e, assim, impulsionar os projetos e investimentos. Por meio desta iniciativa, a UE promete engajar o capital privado para realizar investimentos que, no território dos países do Sul Global, sejam do seu interesse. No entanto, apesar de uma carteira extensa de projetos, a parcela de dinheiro público europeu alocado para promovê-los é pequena em comparação ao esforço que se espera do mercado de capitais.
Nesse sentido, a Comissão Europeia, além de definir as áreas e os setores de interesse para o investimento privado europeu, também passa a estimular a transformação dos países-alvo do Global Gateway em zonas de sacrifício, de onde é possível extrair riquezas que, de modo geral, nunca retornam às comunidades locais. É nesse sentido que especialistas começam a pontuar a ocorrência de certas mudanças nas noções de cooperação e financiamento para o desenvolvimento, que tendem a gerar benefícios exorbitantes para o setor financeiro, ao passo que deixam muito pouco para as sociedades.
Por um lado, a noção de cooperação é reduzida à criação de novos mercados e à intermediação do investimento privado. Por outro lado, financiar o desenvolvimento perde o estatuto de uma reparação histórica para, também, ser lançado ao paradigma do mercado. Já o dever de casa dos governos que recebem esses investimentos é promover a redução dos riscos monetários, fiscais e regulatórios de acordo com as demandas dos seus sócios privados. Em muitos países, já é possível observar o efeito das adesões a esse tipo de metodologia de cooperação, financiamento e gestão. O resultado, em geral, é a redução do papel do Estado como provedor de serviços públicos à população, bem como processos agudos de endividamento público e privado.
Mas o plano também reorganiza a divisão das vantagens comparativas e competitivas entre os países do Sul Global. Em particular, a América Latina e o Caribe são definidos como um território vital para o equilíbrio ecológico da Terra, considerando que nesses países se encontram cerca de 50% da biodiversidade do planeta. A região também é caracterizada como grande produtora de alimentos. Outros destaques registrados são o perfil energético “limpo”, isto é, sustentável porque utiliza fontes de energia majoritariamente renováveis, e a credibilidade da região como parceiro comercial e nos investimentos.
Do ponto de vista setorial, o plano busca distribuir as oportunidades de investimentos aos europeus em cinco eixos principais: digital, clima e energia, transporte, saúde e educação e pesquisa. Comprometido com o Pacto Ecológico Europeu (também conhecido como o Green Deal da Europa), o plano prevê enorme investimento na extração de matérias-primas críticas. Não há, contudo, previsão para investimentos na área de educação e pesquisa em toda a América Latina. No Brasil, o Global Gateway aponta para investimentos nas áreas de proteção de florestas, combate ao desmatamento e cidades inteligentes e sustentáveis. Ecoando a disputa digital e comercial com a China, anuncia o interesse por implantar a infraestrutura 5G.
Como se vê, a estratégia de investimentos, que os europeus encaixaram sob o guarda-chuva da cooperação e do financiamento ao desenvolvimento, atende aos seus próprios interesses. Privilegia o financiamento climático quando é possível relacioná-lo à transição ecológica europeia. No entanto, subfinancia a agenda mais ampla para o desenvolvimento dos países do Sul Global. De fato, a contração das fontes de recursos para temas relacionados à pobreza e às desigualdades ou mesmo à fome ou à democracia se torna cada vez mais sentida. Enquanto sobram recursos para mitigação climática, faltam recursos para adaptação e perdas e danos. Na Cúpula Celac-UE, esse conflito ficou registrado na declaração final do encontro.
A leitura atenta do documento revela que o tom inicial da reunião foi modificado pela presença dos latino-americanos, e, particularmente, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A introdução de termos que afirmam as relações soberanas entre os países, os diferentes estágios de desenvolvimento e as diferentes capacidades nacionais para levar a cabo as recomendações políticas internacionalmente negociadas, bem como a afirmação expressa de que a cooperação deve atender a “prioridades comuns” são pequenas vitórias do grupo.
Ao contrário do isolamento auto-infligido que foi adotado pela política externa da extrema direita no passado recente, esse resultado demonstra a importância da presença internacional dos latino-americanos. Por ora, ganhou-se tempo. Agora, é preciso trabalhar. O Brasil terá, nos próximos três anos e meio, a chance de se consolidar como um “governo verde” e uma “liderança sustentável” no cenário externo. Para isso, a justiça climática e o combate ao racismo ambiental devem estar no centro das ações da atual gestão. Pacotes unilaterais e pré-fabricados de investimento com alto impacto ecológico e social não podem existir no século XXI.
Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc e membro da Rede Brasileira pela Integração dos Povos.