O ProUni e as disputas em torno da democratização do ensino superior
Não podemos esquecer que temos cerca de 50 milhões de jovens −potencial gigantesco para que se pense em políticas de inclusão tanto para os governos quanto para a sociedade civil. Nesse cenário, a disputa pelos caminhos para a democratização do ensino superior no país tem ocupado lugar de destaque no debate educacionalEliane Ribeiro
A universalização do ensino fundamental e, por conseguinte, a expressiva chegada da população jovem ao ensino médio têm despertado, em setores tradicionalmente excluídos do ensino superior no Brasil, a possibilidade concreta de acesso à carreira universitária, como estratégia plausível para alavancar melhores níveis de vida e relativa mobilidade sociocultural. Nesse contexto, o sistema educacional tem sido chamado a dar respostas mais efetivas na relação entre demanda e oferta de vagas no ensino superior, fomentando um conjunto de políticas de inclusão social e de ações afirmativas que deve produzir efeitos sociais positivos na redução das distâncias que separam as juventudes de distintos estratos sociais da população brasileira. A tarefa não é simples, sobretudo por ainda convivermos com uma longa história de exclusão e de baixo grau de compreensão sobre cidadania na sociedade brasileira, em que a educação não é incorporada como um bem público e onde nem todos são considerados sujeitos de direitos.
Sem dúvida, a questão não pode ser simplificada, dada a complexidade das variáveis que envolve. Além disso, não podemos esquecer que temos cerca de 50 milhões de jovens entre 15 e 29 anos − um potencial gigantesco para que se pense em políticas de inclusão tanto para os governos quanto para a sociedade civil em geral. Nesse cenário, a disputa pelos caminhos para a democratização do ensino superior no país tem ocupado lugar de destaque no debate educacional.
Um dos aspectos que mais têm contribuído para o acirramento desse debate é o fato de a aposta de expansão ter se concentrado na ampliação de vagas por meio do ensino privado, com a criação do Programa Universidade para Todos – ProUni (Lei n. 11.096/2005), em 2004. Desde então, o governo federal tem sido convocado a construir argumentos que dialoguem com um conjunto controverso de questões, de modo a esclarecer em que medida o ProUni tem se apresentado como um instrumento de democratização da educação superior no Brasil, considerando, sobretudo, a crítica que se faz à qualidade de ensino oferecida pelas instituições privadas e a possibilidade de que estaria servindo, exclusivamente, para estimular o crescimento dessas instituições. Para muitos críticos, a abertura de acesso ao ensino superior tem sido assistencialista, confirmando uma cidadania de segunda classe aos contemplados.
O debate se aquece com os resultados de estudos que revelam que, para muito dos jovens que acessam o ProUni ou mesmo para adultos que retornam ao processo de escolarização, os percursos, as trajetórias e as estratégias de permanência acabam se configurando como uma verdadeira “corrida de obstáculos”, demonstrando que, para além do acesso, as políticas devem garantir uma permanência digna e que “caiba na vida” dessa população, que, para elevar seus níveis de escolaridade, precisa, prioritariamente, conciliar a educação com o mundo do trabalho. Segundo pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada − Ipea (2012), 52% dos universitários brasileiros trabalham e estudam, o que se confirma no fato de que 74% dos bolsistas do ProUni em 2012 frequentavam cursos noturnos. Assim, o conjunto de desigualdades sociais vivenciadas por essa população ainda se reflete intensamente nas formas de acesso e permanência no sistema de ensino (repetência, evasão, afastamentos, retornos etc.), demandando políticas públicas consistentes, que contribuam para mudar tal realidade.
O ProUni surge com a finalidade de prover bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior, oferecendo, em contrapartida, isenção de alguns tributos às instituições que aderem ao programa. Dirige-se aos estudantes egressos do ensino médio da rede pública ou da rede particular na condição de bolsistas integrais, com renda familiar de até um salário mínimo e meio por pessoa para concorrer às bolsas integrais e com até três salários mínimos por pessoa para as bolsas parciais de 50%. Desde 2012, os candidatos são selecionados pelas notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), devendo obter média de 450 pontos (os que têm pontuação zero em redação são automaticamente excluídos).
Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o ProUni já atendeu, desde sua criação até o processo seletivo do segundo semestre de 2012, mais de 1 milhão de estudantes. Neste primeiro semestre de 2013, os estudantes concorrem a 99.223 bolsas de estudos integrais e 45.416 parciais, distribuídas em 12.159 cursos de 1.078 instituições particulares de todo o país.
Mas, afinal, quem o ProUni tem atingido? Segundo o Inep, em 2012, 52% eram mulheres, 49% pretos e pardos, 1% com deficiência, 1% professores de educação básica pública, 74% frequentando cursos noturnos e 4% cursos de turno integral e, por fim, 51% na região Sudeste, 19% na Sul, 15% na Nordeste, 10% na Centro-Oeste e 5% na Norte. E a população, o que pensa do ProUni? O Ipea, por meio do Sistema de Indicadores de Percepção Social (Sips), criado em 2011, com foco na educação, perguntou à população qual encaminhamento deveria ser dado ao ProUni. Para a maioria, o programa deveria ser mantido (24%) ou ampliado (73,4%). Além disso, entre os programas governamentais, foi o que apresentou maior visibilidade social, com 61% dos entrevistados afirmando conhecê-lo; 84,2% consideram as vagas ofertadas insuficientes.
O fato é que, de alguma forma, embora as mudanças em relação ao ensino superior ainda sejam circunscritas, dados os imensos desafios sociais que se apresentam, é notório que a expansão das vagas em universidades públicas e privadas, articulada com uma série de ações afirmativas e de inclusão, tem trazido benefícios significativos a setores tradicionalmente excluídos do sistema de ensino superior brasileiro.
De acordo com o Censo 2010, realizado pelo IBGE, o número de brasileiros com diploma universitário passou de 4,4% (2000) para 7,9% (2010). Já em 2011, segundo o Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo Inep, foram matriculados 5.746.762 alunos em cursos de graduação no ensino presencial e 992.927 na educação a distância, totalizando 6,7 milhões de estudantes universitários no Brasil. Os números demonstram que, no período 2010-2011, a matrícula em cursos de graduação nas universidades cresceu 7,9% na rede pública e 4,8% na rede privada.
Contudo, mesmo com o crescimento expressivo da rede pública, dos 6,7 milhões de estudantes, distribuídos em 2.377 instituições de ensino superior, 1,7 milhão frequentam as universidades e instituições públicas de ensino (cerca de 277) e 5 milhões as universidades privadas (cerca de 2.100), demonstrando o peso e a participação destas no ensino superior no país. Entretanto, vale destacar que, no ranking das melhores universidades brasileiras de 2012 realizado pelo Datafolha, das cinquenta primeiras, 41 são públicas e apenas nove privadas, sendo sete delas confessionais (católicas e presbiterianas).
Ainda assim, deve-se reconhecer que as vagas anuais de ingresso na graduação em universidades federais públicas passaram de cerca de 110 mil em 2003 para mais de 230 mil em 2011. Esse aumento teve impacto no número total de matrículas em instituições federais, que passaram de 638 mil para mais de 1 milhão. Além disso, com o Reuni [Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais], foram criados 2.046 novos cursos. Um aspecto importante a ser destacado é que o ProUni não pode caminhar isolado de outras ações. A realidade tem instigado a aplicação de novas medidas, como o incentivo à permanência, por meio da Bolsa Permanência, de convênios de estágio e de outras políticas.
Outro dado relevante e que deve ser considerado para pensar as políticas é o fato de os jovens das camadas mais pobres verem a universidade pública como uma difícil e remota possibilidade. Pesquisa realizada com alunos do ProJovem (ensino fundamental) no Brasil, em 2011, solicitou que eles fizessem um exercício de projetar o futuro, discriminando quais experiências de escolarização estariam no seu rol de possibilidades. Dos que apontaram o ingresso no ensino superior como possibilidade, a grande maioria citou a universidade privada, por meio de programas de bolsas como o ProUni ou até mesmo pelo pagamento por meio do seu próprio trabalho, indicando que, muitas vezes, para os jovens das camadas pobres, estudar só é possível na articulação com o trabalho. De modo geral, a explicação apresentada para justificar a opção pelo ensino privado é o fato de não se considerarem capazes de concorrer com os jovens que carregam trajetórias escolares lineares e previsíveis e que podem, por exemplo, eleger cursos de maior prestígio social, os quais, em grande parte, exigem dedicação em horário integral, como Medicina, praticamente fora do rol de possibilidades de muitos desses jovens pesquisados. É interessante também observar que, embora tenham uma avaliação bastante crítica do ensino que será oferecido pelas universidades privadas na comparação com as públicas, acionam o esforço pessoal para ultrapassar os riscos que essa “escolha” pode proporcionar.
Um novo dado, que poderá impactar positivamente no processo de inclusão dos jovens mais pobres no ensino superior, é a Lei n. 12.711, sancionada em agosto de 2012, que garante a reserva de matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e nos 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos.
Sem dúvida, para atingir a meta do Plano Nacional de Educação – que até 2020 deve elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos –, a participação do setor privado ainda não pode ser descartada. Justifica-se, mas deve-se atentar sobretudo para que o foco esteja no complexo arranjo equidade-qualidade-relevância social. Para o governo, fica o desafio de enfrentar, de forma enérgica, o debate com as universidades privadas, para que promovam uma política de acesso à educação superior centrada na preocupação com a qualidade do ensino e permanência do estudante, o que implica a criação de suportes e redes de experimentação e possibilidades para os bolsistas. O esforço, sem dúvida, deve ser sustentado e ampliado, pois, afinal, conforme revelou o relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), com dados de 2010, ainda existem 88% de jovens brasileiros entre 25 e 34 anos que não conseguiram acessar o curso universitário. No mais, a grande aposta ainda deve estar concentrada na oferta pública, a base efetiva que pode dar sustentação para transformar a educação em um dos maiores bens públicos do país. E o maior ganho, sem dúvida, é que o processo em curso, mesmo repleto de contradições e controvérsias, vem afetando valores, expectativas e, sobretudo, ampliando e deslocando desejos desses jovens, na perspectiva de experimentar outros percursos de vida.
Eliane Ribeiro é Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Faculdade de Educação da Uerj.