O punhal
A vitória de Javier Milei nas primárias argentinas revela mudanças sociais que estamos apenas começando a compreender. Uma sociedade fragmentada, golpeada pela crise econômica e pela pandemia, que expressa sua raiva, mas também manifesta um desejo de refundação profunda, uma necessidade de choque
Quem havia notado a nova classe burguesa antes que as cabeças de Luís XVI e Maria Antonieta fossem guilhotinadas? Ou os trabalhadores excluídos que acabavam de chegar do interior antes de cruzarem as pontes em 17 de outubro de 1945 [1]? As transformações sociais são lentas e ocorrem silenciosamente, são correntes subterrâneas difíceis de perceber até que um dia irrompem, e então todos dizem: claro, é óbvio, tinha que acontecer.
Portanto, para começar a entender os resultados das primárias de 13 de agosto, acredito que, mais do que pensar em grandes mudanças ideológicas do eleitorado (“giro conservador”, “direitização”), é preciso analisar o estado da sociedade em sua forma mais pura, ir o mais fundo possível. E não é necessário um doutorado em Sociologia para perceber que a sociedade argentina está fragmentada, dividida em mil pedaços depois de uma década de estagnação – com uma economia que não funciona, não resolve e não oferece uma saída –, de uma configuração política polarizada que não serve mais a ninguém e de anos de pandemia e inflação. Se não houve uma revolta que devastasse tudo de uma só vez durante esse período, como ocorreu em 1989 e 2001, foi porque as políticas assistenciais desempenham um papel eficaz de contenção, os movimentos sociais canalizam o descontentamento e a democracia continua funcionando. É como se a sociedade, que há dois anos já havia enviado um sinal de alerta batendo recordes de abstenção, desta vez estivesse esperando o momento eleitoral enquanto afia pacientemente o punhal, para finalmente enterrá-lo no corpo do sistema.
Desiludida, mas não violenta, a sociedade argentina se sente protagonista de um enorme fracasso coletivo, o que talvez explique por que valoriza tanto os poucos sucessos simbólicos que encontra (a Copa do Mundo, o filme Argentina, 1985, lembranças de algo que deu certo). Não explode, mas implode a cada dia. Onde vemos isso? No aumento da violência intrafamiliar, na multiplicação de pequenos conflitos sem sentido que rapidamente se transformam em brigas ferozes, no aumento do consumo de drogas e álcool e no abuso de psicofármacos (as vendas de clonazepam e alprazolam aumentaram três vezes, no primeiro caso, e cinco vezes, no segundo, mais do que a média dos medicamentos no último ano). Os relacionamentos, com pessoas e instituições, estão se rompendo: o vínculo escolar de centenas de milhares de crianças foi interrompido pela pandemia e nunca se recuperou; um relatório do Observatório de Psicologia Social Aplicada da Universidade de Buenos Aires (UBA) registrou uma deterioração sem precedentes nos relacionamentos conjugais e um aumento nos conflitos familiares.
Não apenas a crise e a pandemia, mas também a digitalização está transformando a sociedade, principalmente para as gerações mais jovens. Os “trabalhos” em serviços de entrega e aplicativos de transporte estão se multiplicando, assim como os empregos comissionados (por exemplo, telemarketing) e as oportunidades oferecidas pela economia de plataforma para a criação de pequenos empreendimentos comerciais. Os ícones de sucesso dessa nova era não são líderes que constroem grandes organizações ou façanhas coletivas, mas indivíduos: uma sociedade de ídolos solitários, milionários graças à especulação com criptomoedas, influenciadores que faturam via YouTube e referências da música que não apostam mais no trabalho em conjunto da banda (de cumbia, de rock), mas no talento individual de um artista que só precisa de um celular para ter sucesso. Em todos esses casos, são iniciativas individuais – no máximo, familiares ou de grupos muito pequenos – baseadas nos valores de liberdade, pequena propriedade, flexibilidade de horário, criatividade e empreendedorismo. O paradigma meritocrático do esforço individual, da auto superação e do risco. Como se a “sociedade do risco” de Ulrich Beck tivesse sido internalizada de forma positiva: todos eles arriscam (seu investimento, sua saúde, sua vida pedalando para uma entrega) e olham com desconfiança para aqueles que consideram que não o fazem.
Diante dessa nova realidade social, tanto o peronismo como a sensibilidade difusa que chamamos de “progressismo” têm pouco a oferecer e, portanto, fracassam. A ideia de que as eleições são ganhas aumentando as aposentadorias ou elevando o limite de isenção do imposto de renda provou ser falsa: há uma parte do drama que não se resolve com mais gastos, que não se encaixa nos programas sociais, seja o IFE (Renda Familiar de Emergência), o quantia fixa ou o “plan platita”. O que o peronismo tem a oferecer a essas novas realidades? Seu discurso clássico de proteção, sua visão do Estado como igualador social e seu apelo à ação coletiva de sindicatos ou movimentos sociais têm pouco a ver com as vidas sofridas, atomizadas e fragmentadas de um número crescente de pessoas, para as quais o liberalismo é menos uma ideologia do que uma realidade que emerge da posição que ocupam na economia; um efeito, como argumenta Pablo Seman, de seu lugar na estrutura do capitalismo. Se o discurso popular clássico do peronismo pode parecer ultrapassado, o discurso progressista parece oco. Ou pior ainda: como uma desculpa para encobrir os privilégios.
Portanto, insisto: se há algum lugar para buscar uma explicação para os resultados de 13 de agosto, a vitória de Javier Milei, o triunfo de Patricia Bullrich nas primárias do Juntos por el Cambio e o terceiro lugar do peronismo é no nível do solo. É hora de sociólogos (ou antropólogos) em vez dos cientistas políticos. Precisamos olhar para lá, para o mercado de roupas usadas, para a loja de conveniência 24 horas, para o grupo que se reúne na esquina (“O lounge dos pobres”, como dizia o policial em The Wire). Portanto, no final, as respostas espontâneas dos trabalhadores que passam pelo metrô e respondem às perguntas de um repórter de televisão acabam sendo mais precisas do que as mil pesquisas de intenção de voto.
Era, até certo ponto, lógico: a sociedade havia punido o kirchnerismo (em 2015), o macrismo (em 2019) e a Frente de Todos (em 2021), e desta vez procurou algo completamente novo, a marca mais estranha disponível na prateleira, o veículo mais bizarro para expressar sua indignação feroz, como se quisesse mais do que apenas dizer algo: queria ser acreditada. E, no entanto, não é apenas a rejeição silenciosa que explica o crescimento de Milei. Se o macrismo foi essencialmente uma coalizão antiperonista, Milei é isso, mas é mais do que isso. Há um voto de esperança? Digamos que há uma expectativa. Após uma década de impasse político, da esterilidade da “hegemonia impossível”, Milei diz, de forma clara e alta, que ele pode, que as coisas que promete – a dolarização, menos impostos – são factíveis. Ele as retomou em seu discurso do dia 13 à meia-noite, que pode ter soado febril e distópico (e foi), mas também foi autêntico (Milei é autêntico). Ele buscou ali apresentar um programa e foi o mais ideológico de todos, com referências aos líderes do liberalismo (Alberto Venegas Lynch, Juan Bautista Alberdi) e uma série de propostas bastante concretas. A ascensão de Milei expressa uma forte vontade de impugnação do sistema e de rejeição ao gradualismo, mas também o desejo de uma refundação profunda, de um choque.
Uma coisa devemos reconhecer no libertário. Havia inteligência estratégica por trás de sua vitória, como revelam cinco decisões que ele conseguiu manter ao longo da campanha. A primeira é construir-se como o candidato da antipolítica, apelando à luta contra a “casta”, um conceito importado do Podemos espanhol que ele soube explorar melhor do que ninguém. A segunda, derivada da anterior, é não entrar para o Juntos por el Cambio, como fizeram José Luis Espert e Ricardo López Murphy, cuidando ao mesmo tempo para não atacar Macri nem Bullrich e concentrando suas críticas em Horacio Rodríguez Larreta, prefeito de Buenos Aires. A terceira, que apareceu em seu discurso do dia 13, é a reivindicação de Menem e Cavallo como os arquitetos do último plano anti-inflacionário bem-sucedido, uma operação simbólica audaciosa que coloca Milei no grupo de líderes de extrema direita que mergulham no passado para encontrar seu lugar no presente: o Tea Party como antecedente de Donald Trump, Vox e o franquismo, José Antonio Kast e o pinochetismo, Jair Bolsonaro e a ditadura brasileira. A quarta, somar ao seu neoliberalismo econômico os votos da reação conservadora, ou seja, a aversão que os avanços em termos de gênero, diversidade e pluralismo geram em amplos setores sociais. E a quinta – que começou nos últimos dois meses, quando parou de falar sobre a compra e venda de órgãos para se concentrar em seus dois ou três temas principais (dolarização, crítica ao Estado, criminalização da política) – é trabalhar na desdemonização de sua figura, tornando-a tolerável, ou pelo menos audível, para amplos setores sociais. O mesmo caminho traçado por Marine Le Pen, afastando-se do fascismo de seu pai; Georgia Meloni, enviando sinais tranquilizadores para a União Europeia; e Jair Bolsonaro, buscando o apoio da centro-direita tradicional.
Concluindo.
A vitória de Milei, que se estendeu por quase todo o país e por quase todos os estratos sociais, foi complementada pela vitória de Bullrich nas primárias do Juntos por el Cambio. Expressão da crise da centro-direita tradicional que já se manifestou em países como Brasil ou Chile, Bullrich entendeu melhor do que seu rival para onde o vento estava soprando, abandonou as construções superestruturais (o desavergonhado desfile de líderes em que a campanha de Rodríguez Larreta se transformou) e ofereceu uma proposta clara: a candidata ultra que joga dentro de um partido tradicional e, portanto, é mais confiável. Se Milei é Bolsonaro, Bullrich quer ser Trump. O quadro se completa com a derrota do peronismo, a pior de sua história. Como o eleitorado ficou dividido em terços (ou quartos, se considerarmos o voto em branco e a abstenção), qualquer coisa pode acontecer. Abaixo da política, há uma sociedade muito diferente daquela construída pela crise de 2001, pelo kirchnerismo e pelo gradualismo de Macri, uma sociedade nova que estamos apenas começando a conhecer.
José Natanson é diretor do Le Monde Diplomatique, edición Cono Sur.
[1] “Dia da Lealdade”, quando uma grande mobilização de trabalhadores e sindicatos em Buenos Aires demonstrou seu apoio ao então vice-presidente Juan Domingo Perón, que estava em prisão domiciliar.