O Brasil armado por Bolsonaro e seus legados
Desde o começo do governo Bolsonaro, houve mais de 40 publicações com vistas a afrouxar o controle de armas e munições no país
Até o ano de 2019 o fuzil FAL, produzido pela Imbel, era utilizado apenas nas Forças Armadas brasileiras, e em poucas unidades policiais de elite. No modo automático, ele é capaz de disparar rajadas com até 700 tiros por minuto. Também lança projéteis a 840 metros por segundo, e consegue acertar um alvo com grande efetividade a até 600 metros de distância. Pelo seu poder de perfurar blindagens, sempre foi cobiçado pelo crime organizado e quadrilhas de roubo a banco. Antes do governo Bolsonaro, no entanto, se quisessem esta arma tinham que corromper agentes para desviar de paióis públicos ou buscar fora do país, pagando por ele até 60 mil reais. Este cenário mudou no primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro, quando este tipo de arma foi liberado para o grupo dos CACs (sigla para colecionadores, atiradores e caçadores). Em 2021, uma quadrilha do Rio Grande do Sul se utilizou da brecha deixada por um dos decretos assinados por Bolsonaro para comprar um Fuzil FAL diretamente de uma loja usando um laranja com licença de CAC, que ganhou 2 mil reais para emprestar seu nome. No mesmo dia que foi retirada pelo comprador, o fuzil foi repassado à quadrilha. Algumas semanas depois, foi utilizada para roubar 4 milhões de um carro forte.
Desde o começo do governo Bolsonaro, houve mais de 40 publicações com vistas a afrouxar o controle de armas e munições no país. Ao todo, foram 17 decretos, 19 portarias (a maior parte do Comando do Exército), 4 instruções normativas da Polícia Federal e 2 resoluções da Câmara de Comércio Exterior. Esta profusão de regras, diversas publicadas em edições noturnas ou em vésperas de feriado para diminuir a transparência e cobertura da imprensa, visa especialmente diminuir a resistência e riscos de derrubada das mesmas. Houve semanas em que policiais nas delegacias, promotores e juízes em fóruns não tinham clareza sobre o que estava valendo, ou sobre em que artigo enquadrar alguém pego ilegalmente com uma arma. Essa ampla profusão de normas provocou o que o Ministério Público Federal definiu como “caos normativo” em nota técnica.
Além disso, parte significativa dos decretos e demais normas do Executivo extrapolam seu poder regulamentador, usurpando a competência do Poder Legislativo, sendo manifestamente contrárias à lei e à Constituição Federal.
Para tentar resumir, o ataque se deu em três grandes frentes. A primeira é a facilitação de acesso à compra e registros das armas. Em segundo lugar, houve aumento substancial do número de armas e munições que podem ser compradas por cada pessoa, além da ampliação da potência das armas acessadas por civis. Por fim, essas medidas foram acompanhadas da perda de capacidade de fiscalização, e criação de barreiras ao trabalho policial.
Nessa primeira frente, o governo federal retirou requisitos previstos na lei, como a obrigação de justificar necessidade, que passava por uma avaliação de um policial federal. A cobrança dos demais requisitos (como atestado de antecedentes e teste psicológico), que após a aprovação do Estatuto do Desarmamento em 2003 era feita a cada três anos, passou para 10 anos. O governo tentou ainda, por várias vias, e conseguiu reduzir impostos de armas e munições, barateando o preço.
Na segunda frente, houve ampliação substancial nos limites para armas e munições. Se antes o civil tinha que justificar a necessidade a cada arma comprada, agora pode pedir de imediato seis armas, ainda que só tenha uma residência. Para este cidadão, eram concedidas autorizações de compra de 50 munições por ano por arma, limite que passou para 200. Em resumo, uma pessoa que comprou seis armas, pode comprar 1.200 munições por ano. As armas de calibre permitido foram expandidas e a potência quadruplicada. Se antes um cidadão acessava um revólver .38, uma espingarda 12 ou uma pistola .380; agora pode ter armas de igual ou potência superior às da polícia, como 9mm, .357 e .40.
Mudanças mais substanciais para os CACs e desmonte da fiscalização
Para o grupo dos CACs, a mudança foi ainda mais substancial. Não existe mais gradação por experiência e tempo de atividade, um atirador registrado no primeiro mês pode hoje acessar o mesmo quantitativo de armas de um competidor olímpico com 20 anos de registro. Um colecionador podia antes comprar apenas uma arma de cada modelo, agora pode comprar até cinco de cada modelo, sem nenhum limite máximo de armas no total. O caçador que antes podia ter no máximo 12 armas, agora pode ter 30, o atirador esportivo que antes podia ter no máximo 16 armas, agora pode ter 60. Neste grupo de 60, pode ter metade deste limite no calibre restrito, o que enquadra fuzis, por exemplo. A este grupo também foi aberta uma brecha, frontalmente contrária a lei, que permite que andem armados em qualquer lugar. Eram por volta de 170 mil civis com este tipo de licença no primeiro ano da gestão Bolsonaro, com este incentivo, agora são 700 mil.
Foram justamente estas brechas exploradas com esmero por um CAC que abastecia o Comando Vermelho preso pela polícia no Rio de Janeiro. O limite dado para ele por Bolsonaro e Exército era de 30 fuzis, ele comprou 26, no calibre 5,56mm, do mesmo modelo e marca, todos iriam alimentar os tiroteios diários que martirizam os cariocas. Em seu veículo foram encontradas ainda diversas caixas de madeira da Companhia Brasileira de Cartuchos, que da fábrica iriam direto para fuzis de traficantes.
Por fim, há o eixo de desmonte da fiscalização. O Exército Brasileiro já apresentava diversas dificuldades para vigiar a atividade de lojas de armas, clubes de tiro e CACs. Desde 2018 a situação se agravou bastante, já que o número de CACs explodiu e o recurso para a fiscalização caiu pela metade (de R$ 3,6 milhões em 2018, foi para R$ 1,7 milhão em 2021). Regras aperfeiçoadas de marcação e rastreabilidade de armas de fogo, munições e explosivos (o combo sem o qual não existem ações de roubo a banco no país) foram revogadas a pedido do presidente menos de 24 horas após a publicação pelo Exército. No campo da informação, esta Força admitiu recentemente que não consegue extrair de seu sistema (bastante antiquado) o número de armas registradas por município. Também não consegue extrair relatórios para dizer entre as mais de 1 milhão de armas de CACs, quantas são fuzis, ou quantas delas estão registradas no calibre 9mm.
Aumento exponencial de armas em circulação
O número de armas nas mãos de civis teve um crescimento exponencial desde o afrouxamento no controle. As armas de CACs, segundo dados obtidos por Lei de Acesso à Informação, eram 290 mil em 2017, passando para mais de 1 milhão em julho de 2022. No mesmo período, as armas registradas na Polícia Federal, na categoria de Defesa Pessoal, saltaram de 328 mil para 891 mil.
A tendência de redução de homicídios iniciada já no final de 2017 após trégua no enfrentamento de facções criminais em vários estados do país, e ajudada pela elevação de recursos transferidos para os estados em decorrência da criação do Fundo de Segurança Pública (ocorrido em 2018), somada à contribuição da redução de jovens na distribuição etária do país poderia ter sido bem mais acentuada, não fosse este novo derrame de armas de fogo no país.
Ainda que os homicídios continuem em queda, alguns números já começam a ser pressionados, como o de feminicídios. Além do aumento da participação das armas de fogo nos crimes letais contra as mulheres (que em 2020 atingiu 50% segundo o Ministério da Saúde), houve aumento de casos em 16 dos 27 estados do país (segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança). A maior parte das armas está sendo registrada para uso em ambiente doméstico, justamente o local que mais concentra violência contra esta parcela da população.
Outro efeito visível é o aumento de desvios de armas. Se em 2015 eram 31 armas desviadas por mês somente de CACs, neste ano em que este volume de armas ultrapassou 1 milhão, são 112 armas desviadas por mês. Neste bolo, é preciso lembrar, agora há fuzis.
Este descontrole não traz efeitos apenas no crime comum e crime organizado. O presidente Bolsonaro não esconde mais que seu desejo de “que todo mundo se arme” traz na verdade um interesse no uso de armas de fogo para fins políticos: algo que está sendo atendido. O grupo auto-intitulado “Os 300” que acampou por meses na capital federal e promoveu ataques contra os ministros e prédio do Supremo Tribunal Federal, confessou publicamente ter CACs armados entre seus integrantes. Em novembro de 2020, outro militante bolsonarista, que viajou do sul do país levando uma espingarda calibre 12 registrada no Exército, e que pretendia atacar ministros do Supremo, só não chegou armado à Brasília, pois teve a espingarda apreendida alguns quilômetros antes, em um hotel de Goiás.
Radicalização política
Foi-se o tempo em que o debate de armas no Brasil versava sobre a baixa efetividade para legítima defesa e impactos na segurança pública. Hoje, este debate precisa ser também enfrentado olhando para a radicalização do ambiente político e deterioração da democracia.
Foram, aliás, estes os motivos usados tanto pelos juízes do Tribunal Superior Eleitoral para estabelecer uma zona livre de porte de armas ao redor dos locais de votação num período de 72 horas, como para os ministros do Supremo (ambos em Setembro) para suspender parte dos decretos de armas, em uma decisão liminar tomada inicialmente pelo ministro Fachin e depois acompanhada pela maioria do Plenário no mês de setembro.
A esperteza de Bolsonaro ao driblar o Congresso Nacional, local adequado para alterações legais, e editar mudanças de vigência imediata por decretos será também sua fraqueza em caso de derrota nas eleições de outubro. Tão facilmente quanto foram editados, os decretos poderão e provavelmente serão revogados segundo declarações dos demais candidatos e candidatas à presidência. O que poderá trazer o retorno de alguma racionalidade ao tecido legal de controle de armas e munições. Mas os problemas estão longe de serem solucionados. Será preciso decidir, por exemplo, o que fazer com pessoas que compraram milhares de armas que voltarão a ser de uso restrito (como fuzis e carabinas semi-automáticas).
Para além disso, ficou óbvio que, sem forte pressão política, o Exército Brasileiro continuará criando mais problemas do que soluções na fiscalização. Vale relembrar que em pleno 2022 esta Força admite não conseguir nem detalhar os tipos de armas e calibres em sua base com mais de um milhão de armas, nem quantas delas estão registradas em cada município brasileiro. Tanto no Exército, quanto na Polícia Federal, cujo diretor foi trocado quatro vezes no governo Bolsonaro, para atender aos humores do presidente e barrar investigações contra sua família, será necessário revisitar os sistemas de registro e a conexão destes com as forças estaduais, que apreendem mais de 90% das armas do país e podem ser fortes aliadas no rastreamento e combate ao mercado ilegal de armas e munições.
No plano estadual, há também muitas oportunidades a serem aproveitadas pelos governos eleitos, como por exemplo a criação de delegacias ou departamentos especializados no combate ao tráfico de armas e munições, e o fortalecimento das equipes periciais de modo a melhor aproveitar o recém criado Sistema Nacional de Análises Balísticas – SINAB, possivelmente o único legado positivo desta gestão. Esse sistema permitirá que informações de um projétil ou estojo coletado em local de crime ou de arma apreendida sejam cruzadas automaticamente com outras armas e evidências em todo o país. Isso gera possibilidade de conectar investigações e coletar provas mais robustas de organizações criminosas com atuação interestadual.
Como forma de indicar prioridades e caminhos neste campo, os Instituto Sou da Paz e Igarapé criaram e distribuíram entre os partidos políticos uma agenda de propostas para o novo governo federal e outra para governos estaduais. Ambas possuem seções específicas sobre violência armada, armas de fogo e munições, permitindo um material de consulta didático às gestões que se iniciam em janeiro de 2023, e que terão um entulho normativo e uma pilha de armas para limpar se quiserem aprofundar as práticas para redução da violência armada no Brasil.
Bruno Langeani, mestre em Public Administration and Public Policy pela Universidade de York (Reino Unido), é gerente do Instituto Sou da Paz e autor do livro: “Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência” (Editora Telha, 2021).