O que as manifestações extremistas na França expõem ao mundo?
Nos ambientes democráticos não deve ser permitida a entrada de ideais extremistas que visam a supressão da própria democracia
No início de maio, a França anunciou que iria proibir as manifestações de grupos de extrema direita, segundo o ministro do interior Gérald Darmanin, visto a repercussão causada pela manifestação de cunho nazifascista em Paris, no último dia 06. Partindo pelo pressuposto de que os tribunais são competentes para permitir ou proibir esses tipos de manifestação, e que os prefeitos foram instruídos a emitirem ordens de proibição quando qualquer ativista da extrema direita solicitar autorização para se manifestar, o que causa estranheza é a passividade dos órgãos competentes da capital francesa diante dessas manifestações, diferentemente do esforço contínuo das autoridades em proibir manifestações contra o presidente Emmanuel Macron, organizado pelos sindicatos dos trabalhadores franceses, tendo em vista as reformas previdenciárias no país.
Se por um lado a premier Élisabeth Borne qualifica os atos da extrema direita como “chocantes”, mas considera que seria ilegítimo proibi-lo por perturbação da ordem pública, pelo outro assistimos a permissividade em relação ao extremismo, caindo na falácia da tolerância irrestrita. É recomendado tolerar o intolerável?
Durante o mês de março a França foi tomada por uma série de jornadas de protestos contra a reforma da Previdência adotada pelo governo liberal de Emmanuel Macron. Com grande apelo entre as massas, arrastando multidões pelas vias francesas, as manifestações começaram pacificamente, mas foram tensionadas devido à forte repressão do Estado, por intermédio da polícia parisiense.
Segundo o sindicato CGT, nos dias 7 e 23 de março, mais de 3,5 milhões de pessoas se mobilizaram nas manifestações contra as reformas de Macron, pedindo a retirada da reforma, que antecipa para 2027 a exigência de 43 anos de contribuição (um ano a mais que atualmente) e aumenta a idade mínima de aposentadoria a partir de 2030 (de 62 para 64 anos). Chama a atenção o número de detidos, segundo as autoridades nas manifestações do dia 23/03: 457. A recusa por parte de Macron em recuar com a reforma gerou a aumento das greves e a radicalização dos protestos. Todavia o mesmo tratamento não foi adotado nas manifestações de extrema direita.
O protesto neonazista contou com cerca de 600 extremistas do Comité du 9 mai, no qual os manifestantes vestidos de preto exibiam símbolos supremacistas brancos e faziam alusão a morte do militante Sebastien Deyzieu, em 1994. A inércia dos agentes franceses em conter (antes disso, permitir) tal evento provocou polêmica internacional, exigindo das autoridades um posicionamento, que acabou sendo feito tardiamente. O clima não foi apenas de permissividade, mas também de conivência, segundo líderes de esquerda.
A onda extremista na França é reflexo mundial das últimas décadas de crescimento e livre trânsito de ideais antidemocráticos, que a cada momento ganham mais adeptos e circulam livremente nas redes sociais e agora nas ruas. Não somente na Europa, mas os exemplos recentes nos EUA e no Brasil demonstram que as instituições democráticas, se não fortalecidas por seus agentes e atores, sofrerão os impasses da intolerância e do radicalismo. Sob justificativa de uma falsa liberdade de expressão, movimentos de cunho nazifascistas proliferam seus ideais e atraem jovens e adultos ao redor do mundo, pondo em perigo a verdadeira liberdade de expressão e a democracia como um todo.
Lembro do filósofo da ciência Karl Popper, que no seu livro The Open Society and Its Enemies apresenta o “Paradoxo da tolerância”. “A tolerância deve ser ilimitada?”, interpela o filósofo. A ideia desenvolvida por Popper enfatiza que no ambiente social, a tolerância de modo ilimitado leva ao desaparecimento da tolerância. O direito de proibir é justificado pela irracionalidade presente nos argumentos do intolerante, que são impostas por intermédio da força, “dos punhos e das pistolas”. Em outras palavras, não deve ser permitida a entrada nos ambientes democráticos de ideais extremistas que visam a supressão da própria democracia.
O que aconteceu em Paris seria condenado por Popper como uma perigosa contradição, uma permissividade que, com o tempo, geraria o fim de qualquer tipo de liberdade. Enquanto as reivindicações contra os avanços neoliberais no sistema previdenciário francês são tidas como “terror” e “baderna” pelo Estado, somente após a negativa repercussão na mídia internacional sobre as manifestações neonazistas houve uma posição das autoridades. “Os panelaços são aparentemente mais perigosos que os barulhos de botas militares”, afirmou o porta-voz do Partido Comunista Francês, Ian Brossat.
Por tolerar o intolerável, permitindo que adentre nossas casas e nosso cotidiano, vimos a horrível cena de um representante político exaltar torturador e expor saudosismo por um tempo de repressão.
Railson Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio) e doutorando em Política Social (UFF).