O que o Brasil quer virar?
Perguntar “o que estamos virando” se tornou lugar comum, mas, para a maioria do país, o passado não foi muito melhor
“O que estamos virando?”
Desde que a pandemia de covid-19 se adaptou às várias desigualdades brasileiras e iniciou seu rastro (também desigual) de morte, essa tem sido uma pergunta comum diante da passividade geral em meio à contagem de óbitos. Ela parece ecoar da boca de boa parte da intelectualidade para se espraiar, como se uma resposta fosse possível, entre as bases da oposição explícita ao bolsonarismo e ao seu produto – o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe de governo.
No dia em que Manaus ficou sem oxigênio, algumas semanas atrás, a pergunta pareceu ganhar ainda mais legitimidade: o que estamos virando ao aceitar que um pedaço do país experimente uma das formas mais primitivas de morrer: a por asfixia?
No entanto, temos usado o “o que estamos virando” em muitas outras ocasiões do Brasil recente. Ele já serviu para indagar quando um secretário de Estado gravou um vídeo metaforizando e encenando um discurso de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista, ou quando a morte de um homem dentro de um supermercado foi encoberta com caixas de cerveja e guarda-sóis ou ainda quando, meses depois, outro homem (negro) foi espancado até a morte em um supermercado de Porto Alegre.
Perguntar “o que estamos virando”, no entanto, parece supor duas coisas: a primeira – e mais importante delas – é que, ao fazê-la, se afirma ao mesmo tempo que, por algum momento, o Brasil não foi o que é hoje. Assim, está se tornando um país diferente do que aquele que existiu no passado. O verbo no gerúndio sugere, aliás, que é um processo em curso, do qual nós somos atores e espectadores na mesma intensidade.

A segunda coisa, que depende da primeira, é que a pergunta também traz dentro de si uma acusação moral. A potência da pergunta está também em deixar no ar que houve um momento de ruptura, em que a violência explícita, direta, primitiva, livre, assim como a morte crua, exibida, escancarada, deixaram de ser um problema moral para entrarem no rol das nossas coisas cotidianas. Estaríamos esvaziando aquele episódio definitivo da vida, que é quando ela acaba – transformando os significados sociais e individuais do luto, da finitude, da memória e da ausência.
No entanto, o que o “o que estamos virando” demonstra, de fato, é que – como diz o professor Luiz Antônio Simas – o Brasil que faz essa pergunta ainda não se encontrou com o Brasil que sempre a vivenciou. Assim, ao olhar para si, ele permite-se encontrar uma metamorfose, uma transformação em pleno acontecimento, imagina mesmo uma beleza que se perdeu subitamente, um destino inevitável que, por algum motivo ainda não explicado, desviou de rota.
Talvez uma explicação seja que essa pergunta surja principalmente das classes letradas dos centros expandidos urbanos, aquelas para quem a violência cotidiana e a morte em sua face mais clara – o cadáver exposto – são mais uma notícia da televisão no fim de tarde, um relato que chega pela boca indireta de alguém, a potência da fala do crime, um artigo científico, o medo da rua solitária ou até mesmo um encontro singular, em algum momento da vida, com a experiência violenta.
Fato é que a pergunta não é historicamente válida. O Brasil não está virando esse país para o qual a morte não é um problema moral, nem está se transformando em uma sociedade que adapta as várias espécies de violência ao seu cotidiano, e muito menos está em um processo de enfraquecimento do coletivo.
O Brasil, para a imensa maioria dos brasileiros, sempre foi isso: um lugar onde o homo bolsonarus não é exceção, mas a regra.
Isso não significa definir o “brasileiro médio”, simpático e preconceituoso, carismático e violento na mesma medida, assim como não é uma forma categórica de afirmar o que é o Brasil, mas é olhar para suas bases fundacionais e suas consequências – desde a escravidão, a partir do século XVI, à pandemia de covid-19 agora. Então, o que se vê é uma passividade histórica, logo rotineira, com o acontecimento da morte (dependendo, claro, de quem morre). Essa postura parece ter ficado entranhada nas nossas relações, se tornou uma dessas “coisas nossas” em meio ao mundo moderno, cujas sociedades se amparam justamente na reprodução da vida.
Assim, a história do Brasil – das violências do período escravocrata à pandemia, dos regimes militares que terminaram aos que permanecem, das desigualdades sociais e todos seus produtos, dos racismos estruturais e cotidianos – é também um pouco da história da afirmação desta pergunta, não de sua interrogação.
É por isso que somos um país que chora pouco seus mortos. Mais do que isso, que esquece que eles morreram. É também por isso que a morte aqui sequer é o fim definitivo da violência sobre um corpo, e que ambas seguem encontrando formas de se expressar: é o cádaver de uma mulher arrastado pelo asfalto por uma viatura policial, o corpo do mendigo estendido em uma padaria em Ipanema, os restos de um ambulante que o trem passa por cima, as cabeças dos detentos no esgoto da penitenciária, as crianças empilhadas embaixo de uma igreja e agora, é uma cidade inteira sem oxigênio.
Talvez a pergunta correta seja: o que queremos virar?
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do departamento de Sociologia da USP.