O que tanques de guerra e veto de absorventes têm em comum?
Longe de se tratar de tema lateral para a compreensão dos rumos políticos do país, a negativa para a distribuição gratuita de absorventes explicita, mais uma vez, cruéis assimetrias de poder que hierarquizam sangues, corpos, pessoas
Em 6 de outubro, uma mensagem da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Secretaria-Geral da Presidência da República, endereçada ao presidente do Senado Federal, oficializou o veto parcial ao Projeto de Lei n.4.968, de 2019, que instituiria o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, alterando a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, ao determinar que cestas básicas distribuídas no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) deveriam conter o absorvente higiênico feminino como item essencial.
Ainda que o veto possa ser derrubado no Senado, o debate sobre o Programa merece atenção redobrada. Longe de se tratar de tema lateral para a compreensão dos rumos políticos do país, a negativa para a distribuição gratuita de absorventes explicita, mais uma vez, cruéis assimetrias de poder que hierarquizam sangues, corpos, pessoas. No texto oficial, o veto foi atrelado à “contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade”, envolvendo posicionamentos dos Ministérios da Economia, da Saúde, da Educação e da Cidadania, esmiuçando artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal, da Lei de Diretrizes Orçamentárias, argumentando que “os absorventes higiênicos não se enquadram nos insumos padronizados pelo Sistema Único de Saúde” e que “ao estipular as beneficiárias específicas, a medida não se adequaria ao princípio da universalidade, da integralidade e da equidade no acesso à saúde do Sistema Único de Saúde”.
Sabemos que quem aparece no papel como “beneficiárias específicas” são aquelas que historicamente tiveram seus direitos violados neste país: “estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino”; “mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema”; “mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal”; e “mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa”. Não coincidentemente, essas são as pessoas que insistem em estar de pé, esses são os corpos que se recusam a servir ao projeto genocida que está em curso no país. Trata-se de parte considerável da população negra, que reside nas favelas e periferias brasileiras. Historicamente criminalizadas, perseguidas, violentadas.
Mulheres que são enxergadas nesse projeto político genocida como mais um tipo de inimigo que precisa ser eliminado, alocada do lado oposto do “homem de bem” merecedor de direitos. Trata-se de um projeto político genocida que se alimenta de qualquer forma de entendimento de mundo afinada ao projeto de poder branco heterocispatriarcal e militar. Esse projeto político deve eliminar de seus cálculos o sangue menstrual tanto quanto precisa derramar no chão da favela o sangue dos corpos periféricos indesejáveis. A militarização está a serviço desse projeto político que elimina corpos femininos ou feminizados – elimina porque são desobedientes, corpos que se recusam a cumprir destinos forjados pelas moralidades dos binarismos estabelecidos.
O corpo que menstrua foi construído como um corpo que deve servir ao projeto político dos Estados nacionais gerando “homens de bem”. Uma vez que o “homem de bem” é necessariamente o homem branco, heterossexual, cisgênero e morador do “asfalto” (como se diz no Rio de Janeiro), gerar corpos diferentes desses é desobedecer. Gestar, criar, alimentar qualquer corpo que não seja esse é um ato de desobediência, essa mulher não serve a esse projeto genocida – ao contrário, ela ameaça esse projeto. É preciso chamar atenção, ainda, para o fato de que homens trans também menstruam – e, no Brasil, não são poucos os homens trans que se enquadrariam nas classificações das “beneficiárias específicas” vetadas.
Vetos em nome de uma constituição diariamente editada para propósitos necropolíticos: não à toa uma das primeiras iniciativas do governo federal quando essa família (também chamada de familícia) chegou a Brasília foi a flexibilização da posse de armas. Ampliam-se as possibilidades de eliminação de corpos indesejáveis. Em 2019, 124 pessoas transgênero foram assassinadas no Brasil segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra); no mesmo ano, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública informam que 3.739 mulheres foram assassinadas, dentre esses casos, 1.314 foram registrados como feminicídio. O número sobe para 3.913 homicídios de mulheres em 2020, sendo que duas em cada três dessas mulheres eram negras (dados do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública). Tanto mulheres que resistem anônimas nas periferias ou mulheres que passam a ocupar lugares políticos de destaque a partir de suas trajetórias e vivências nessas mesmas periferias – todas essas mulheres são, portanto, transformadas em alvo.

Se, em 2007, o então governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, afirmou que as mulheres negras moradoras de favelas eram fábricas de produzir marginais, com o passar dos anos essa lógica se atualiza – uma lógica racista de Estado que se alimenta do binarismo bélico/patriarcal para separar, classificar, enquadrar inimigos e aliados. Lógica necessariamente misógina, necessariamente lgbtfóbica. Quanto mais entrelaçadas as violências, maiores são nossos desafios na luta contra violações de direitos – e o atual contexto político está impregnado desses entrelaçamentos. Desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil têm sido amplamente noticiadas declarações do chefe do Executivo federal marcadas pela conexão entre seu desdém em relação às mortes e sua homofobia. Na mesma lista de “Não sou coveiro” (quando perguntado sobre o número de mortes por Covid-19, em frente ao Palácio do Planalto) aparece a declaração “Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?” (durante inauguração de trecho da Ferrovia Norte-Sul, em São Simão, GO).
Merece ser lembrada também aquela do “país de maricas”: “Lamento os mortos, lamento, mas todos nós vamos morrer um dia. […] Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas” (durante cerimônia oficial de lançamento de um programa de turismo, no Palácio do Planalto). Diante desse combo discursivo alimentado por escárnio, machismo e lgbtfobia, para além do desdém em relação às mortes de populações consideradas indesejadas, segue em curso o incentivo institucional à eliminação de determinados corpos, através da racionalidade binária de Estado, que “divide para conquistar”, organizando diagramas de humanidade, classificando pessoas, esquadrinhando territórios.
Enquanto os homens de terno, gravata, colarinho branco e máscaras no queixo apostam em tanques de guerra para blindar seu sistema imunológico, são solidificadas informações sobre quem mais morre no Brasil: homens negros são as principais vítimas da Covid-19, da mesma maneira como sempre foram as maiores vítimas da violência policial. O binarismo bélico que atualiza os duplos eu/outro; aliado/inimigo produz uma espécie de fusão entre eu-aliado que praticamente aloca como outro-inimigo tudo e todos que não são “sua imagem e semelhança”. Assim se entrelaçam – sob o manto ufanista – racismo, machismo, lgbtfobia, misoginia e capacitismo. Enquanto os homens de blusa amarela ou estampas camufladas estufaram seu peito macho alfa no último 7 de setembro, jovens estudantes decidiram criticar o governo com seu próprio veneno: levaram um pênis inflável verde e amarelo pra Avenida Paulista.
Tão parte do repertório imagético/político bolsonarista, apenas à noite algumas mídias noticiaram tratar-se de trollagem. Afinal, o “pirocão da Paulista”, como ficou conhecido, combinava demais com aquele exército verde e amarelo, com os gestos de arminha com as mãos para posar na foto, com os textos dos cartazes exigindo “intervenção federal” e “destituição de todos os ministros do STF”. Lembremos sempre que os pedidos de “faxina geral nos três poderes” saem das mesmas casas brancas que legitimam a faxina étnica que segue em curso nessas terras desde 1500, das mesmas casas brancas que repudiaram o queer museu e que acreditam em mamadeira de piroca.
A lógica militarizada é tão heteronormativa quanto racista. Sigamos com nossos corpos desobedientes, dissidentes, indesejáveis nas ruas todas, todes e todos que menstruamos e que sabemos que o fim do mundo é aqui e agora.
Juliana Farias é antropóloga, pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial da FGV Direito SP e do CIDADES/UERJ.