O reinado das agências de classificação de risco
Longe das urnas, as três principais agências de classificação de risco dão a medida da crise que sacode a Europa, orquestrando o que o então presidente da Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF) da França, Jean-Pierre Jouyet, qualificou de “ditadura de fato” dos mercados
Como adolescentes agitados, os governos contemporâneos espreitam as mudanças de humor das agências de classificação de risco. Apanágio dos países ditos “emergentes” até a recente crise financeira, atualmente essa antecipação febril toma conta de todos. Dos cerca de 160 países avaliados, apenas 15 ainda ostentam a nota mítica, o triplo A. Ora, o sistema de classificação é rico em efeitos perversos, a começar pela natureza autorrealizadora das profecias desses nostradamus modernos. Basta que eles prevejam uma crise (mesmo sem razão) para que se precipite a própria crise.
Em outubro de 2011, a agência de classificação norte-americana Moody’s anunciou que examinaria a situação econômica da França para decidir se rebaixava ou não a nota do país. Mas o elemento-surpresa veio de outra gigante do rating, a Standard & Poor’s (que cinco meses antes tinha retirado dos Estados Unidos seu triplo A), quando decidiu rebaixar, em 13 de janeiro de 2012, a nota de nove países da zona do euro. A França perdeu seu precioso triplo A, que detinha havia 36 anos.
Ao rebaixar a nota francesa, a Standard & Poor’s citou não só o crescimento anêmico e o “endividamento” do país, mas também a “rigidez” de seu mercado de trabalho. Em resumo, as agências reclamam concomitantemente crescimento, austeridade e flexibilidade do setor trabalhista: uma lógica cujas falhas, contudo, são demonstradas pela agonia da economia grega, submetida recentemente ao controle do rigor fiscal. Mas, tanto faz, isso não importa…
Adequação das políticas
Pouco antes da decisão da agência de classificação, Alain Minc, ligado a Nicolas Sarkozy [que deixou o posto de presidente francês em maio de 2012], declarava que o triplo A da França era sinônimo de “tesouro nacional”,1 sugerindo que a adequação da política do presidente (em particular o persistente plano de austeridade) às exigências do mercado era um trunfo de primeira grandeza para sua reeleição.
O então porta-voz do Partido Socialista (PS) Benoît Hamon fez uma análise diferente, num texto publicado em 2011: “Qualquer promessa de conquista social está exposta ao rebaixamento da nota de um país pelas agências de classificação de risco. É inaceitável, mas por enquanto é assim. Esse é o dilema da esquerda: combater ou trair”.2 Aparentemente, o então candidato à eleição presidencial pelo PS, François Hollande, tinha feito sua opção. Após o rebaixamento da nota francesa, ele fez do então presidente, Nicolas Sarkozy, o alvo de suas críticas, a ponto de validar a ação das agências: “É a credibilidade da estratégia aplicada desde 2007 que está sendo posta em jogo. Tal estratégia não foi coerente, não foi constante, não foi previdente e, sobretudo, não foi eficaz”.3 O então primeiro-ministro, François Fillon, fez raciocínio semelhante quando respondeu: “Seria interessante saber o que uma agência de classificação pensa de um programa [como o do PS], no qual só o que há são argumentos que defendem gastos [públicos] e alta de impostos, e, pior ainda, a volta atrás, relativamente a decisões estruturais, como a reforma da aposentadoria ou a política nuclear da França”.4
Ditadura dos mercados
O embate teve uma virtude. Revelou a lógica interna dos acontecimentos: atualmente, os programas econômicos dos dirigentes políticos europeus parecem prioritariamente destinados a seduzir os três famosos cérberos– o mítico cão vigilante – do setor financeiro [Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch Ratings], e não a população, inclusive em período eleitoral. Uma situação que Jean-Pierre Jouyet, então presidente da Autoridade dos Mercados Financeiros (e ex-secretário de Estado sob o primeiro-ministro François Fillon) da França, qualificou de “ditadura de fato dos mercados”.5
Há até pouco tempo, o poder das agências limitava-se ao mundo empresarial e das coletividades locais, a cujas emissões de títulos elas conferiam uma nota. A análise de solvibilidade dos tomadores de empréstimos e capitais é que a fundamenta. O triplo A, extremamente almejado e raramente atribuído, é concedido aos melhores tomadores e indica uma segurança de pagamento absoluta. À medida que a probabilidade de não pagamento aumenta, a nota diminui. O triplo B é sinônimo da menção “passável”, pois ainda se está – mas no limite – na categoria “investimento” (investment grade): ou seja, um investidor prudente ainda pode se aventurar. Abaixo desse patamar, já se cai na categoria de “especulação” (speculative grade), que só convém aos mais temerários, dispostos a assumir o risco em troca de um rendimento elevado. A nota D, atribuída aos títulos em defaultde pagamento, é sinônimo de pontuação zero do sistema.
Em princípio, uma boa avaliação permite emprestar a taxas mais baixas.6 Quanto mais a nota diminui, maior é a taxa de juros, pois os investidores exigem então um prêmio, o “bônus de risco”. Os títulos com classificação desfavorável (ou sem nota) são considerados “podres” (junk bonds), mesmo que seus vendedores prefiram a denominação “títulos de alto rendimento” (high yield bonds).
Em busca de uma boa nota
O procedimento de classificação tem um funcionamento mecânico e regular: o cliente apresenta seu dossiê, uma equipe de examinadores vai visitá-lo e examina suas contas detalhadamente antes de fazer um relatório interno; esse relatório é em seguida submetido a um comitê que estabelece a nota. Para alguns tipos de empresa, um bom ratingé vital. Um banco com nota desfavorável, por exemplo, fica automaticamente em posição desfavorável perante seus concorrentes mais bem avaliados, que pagam menos pelos recursos que levantam. A mesma coisa acontece com as seguradoras: na medida em que a nota atribuída reflete a capacidade de honrar os compromissos relativos aos segurados, toda e qualquer degradação provoca a desconfiança dos clientes e, dessa forma, uma queda do faturamento.
Apesar de privadas, as agências de classificação de risco recebem a fiança do poder público, o que as autoriza a definir as regras do jogo financeiro. Por um lado, a maioria dos emissores precisa obter uma nota. Por outro, alguns investidores institucionais – seguradoras, fundos de pensão, fundos de investimento e poupança – precisam investir o essencial, quando não a totalidade de seus capitais em emissões com boas notas. Além disso, as instituições financeiras que se beneficiam das melhores notas são em geral submetidas a uma regulamentação menos rigorosa.
Apesar de teoricamente aberto a todos, o mercado de classificação se resume, fundamentalmente e com exceção de setores bem precisos, a um binômio formado pela Standard & Poor’s, filial da Editora McGraw-Hill, cujas origens remontam a 1860; e pela Moody’s, filial do grupo de informação financeira Dun & Bradstreet, fundada em 1900.7 Essas duas empresas gozam de uma situação privilegiada que se anuncia de longo fôlego, já que um número sempre crescente de emissões deve ser classificado – a um valor de US$ 100 mil ou mais por emissão.
Erros de avaliação
Nos anos 1990, a Moody’s e a Standard & Poor’s foram acusadas mais de uma vez de concorrência desleal e até de chantagem por emissores que passaram a preferir as pequenas agências. A eles, as duas gigantes atribuíam então notas “não solicitadas”, em geral desfavoráveis. Evidentemente não se tratava de uma sanção, mas de um “serviço público”, permitido pela primeira emenda da Constituição norte-americana, que garante o direito à livre expressão.8 Mas nem por isso o procedimento deixava de significar: “Pague, senão…”.
Segunda crítica: as agências de classificação cometem erros graves, de consequências incalculáveis. Em 1975, às vésperas de declarar moratória, a cidade de Nova York tinha uma nota favorável, por exemplo. Mas foi, sobretudo, por ocasião do desmoronamento do sistema financeiro, em 2008 e 2009, que as agências, que não tinham previsto absolutamente nada, caíram no ridículo: as grandes instituições financeiras ainda se beneficiavam do famoso triplo A apesar de estarem à beira do precipício, a exemplo dos famosos produtos subprime, promovidos à categoria de investimentos seguros, correspondendo ao perfil mais conservador. Mas nem por isso toda essa situação ridícula acabou com as agências. Ao contrário, o episódio tornou-as mais fortes do que nunca! Na verdade, os governos corriam atrás dessas instituições financeiras, pondo sua própria solvibilidade em risco, sob o olhar atento… das agências de classificação.
Pois o verdadeiro poder dessas agências provém da classificação dos Estados. Na verdade, desde 1990 – com a crise da dívida, o minguar da ajuda externa e dos empréstimos bancários, e as receitas neoliberais das organizações internacionais no cardápio –, o essencial do financiamento externo dos Estados se fez nos mercados de renda fixa (em resumo, o endividamento mais do que o imposto). Classificar as diferentes formas de dívida soberana de um país (em moeda nacional, em divisas etc.) equivale a avaliar o país em si (as empresas privadas nele instaladas são alvo de uma classificação separada, em geral ainda mais severa). Uma avaliação desfavorável não significa só o aumento do custo do financiamento. Na hora em que os tomadores de empréstimos privados e públicos se dedicam, em escala mundial, a uma concorrência ferrenha para conseguir e atrair capital, uma nota desfavorável também pode levar ao estrangulamento financeiro de um país do qual o mercado desconfia.
Sem regulação
Se a leitura de um balanço de uma empresa anglo-saxã pode se prestar a procedimentos codificados e a análises clássicas, a classificação de um país, sobretudo em um contexto de incerteza praticamente total, é recheada de armadilhas e perigos. Somente uns poucos critérios são mensuráveis e quantificáveis, como ganho médio por habitante, aumento do PIB, inflação, dívida externa etc.; mas não a maioria dos critérios, como “boa gestão” da economia, perspectivas de longo prazo, estabilidade política etc. Mas, nesse domínio, as agências não parecem marcadas pelo signo da prudência. Assim, um país pode ter sua nota modificada de um dia para o outro ou passar à posição de “em estado de atenção”, em antecipação a um eventual rebaixamento. Esse tipo de aviso leva com frequência a uma mudança de política, com o objetivo de evitar a sanção financeira do(s) “mercado(s)”.
Extremamente preocupadas com a transparência, quando se trata do alvo das notas que atribuem, as próprias agências continuam, todavia, sendo bastante misteriosas. Seu poder exorbitante e seus abusos deveriam levar a um controle mais rigoroso de suas práticas e à procura de outro tipo de solução. Mas será que tais agências podem realmente ser controladas por outras instituições financeiras além dos governos… que elas vigiam com extrema atenção e bem de perto?