O retorno do verde oliva no Brasil, Argentina e Uruguai
O cone sul está indo a passos largos em direção à tragédia: aumento da violência, precarização dos direitos, concentração da riqueza e violação sistemática dos direitos humanos. A presença das Forças Armadas está começando a ser parte dos discursos dos políticos num cenário próximo de explosão social.
Depois da maré rosa, hoje estamos diante expansão da maré verde oliva. Ou seja, passamos dos governos progressistas na região, com políticas inclusivas e políticas econômicas heterodoxas, a governos que estabelecem políticas conservadoras, impopulares e vigiadas pelas forças armadas. Nesta nova maré verde oliva, os maiores perdedores são os setores mais vulneráveis da sociedade e os direitos humanos em geral. A retomada da dependência latino-americana, de cima para baixo.
Com o golpe de estado de 2016 no Brasil, a participação das forças armadas foi aumentando. Essa participação nas diferentes arenas do cenário nacional foi se consolidando no processo. Desde a participação simbólica dos discursos que colocam as forças como guardiãs da democracia (uma ironia sem fim), passando pela atuação na última greve dos caminhoneiros, até a intervenção na segurança pública como no caso de Rio de Janeiro. Nas próximas eleições, desde nossa compreensão estética e restrita, constam a presença de militares como candidatos a diferentes cargos eletivos, sendo pelo menos 71 deles do Exército, da Marinha e da Aeronáutica[1].
O golpe no Brasil não foi o primeiro na região, tanto Honduras (2009) como Paraguai (2012), entre outros, tinham sofrido os seus em anos anteriores. Mas o caso brasileiro, pela importância regional, teve um impacto profundo nos países vizinhos. Vale salientar que tanto Argentina como Uruguai são os dois únicos países da região que tem um limite da utilização das forças armadas. E isso parece estar em pleno processo de mudança.
Argentina: seguindo o Gigante
Mauricio Macri alcançou o poder no final de 2015 colocando um ponto final à experiência liderada pelo Kirchnerismo por mais de uma década. Desde sua assunção, Macri e seu partido político Cambiemos estabeleceram um novo norte na área dos direitos humanos e da segurança pública. Os retrocessos existentes nesta matéria se apresentam por aumento da repressão, violência institucional, prisões políticas, execuções, esvaziamento institucional e uma nova política de segurança pública. Neste sentido, num contexto de aumento de desemprego, minúsculo crescimento econômico, uma rejeitada volta à dependência financeira internacional com o novo pacto com o Fundo Monetário internacional, os problemas sociais se multiplicaram, e com eles, a imagem do presidente se desplumou não conhecendo limite nem chão.
Nesse cenário, nos últimos dias o presidente Macri anunciou sua intenção de que as Forças Armadas realizem tarefas na segurança interior. Durante a celebração do Dia do Exército, Mauricio Macri declarou: “Precisamos que as Forças Armadas dediquem maiores esforços na cooperação com outras áreas do Estado, fornecendo apoio logístico às forças de segurança para cuidar dos argentinos frente às ameaças e desafios atuais”.
Mas os desejos do Macri tem uma série de problemas. Em primeiro lugar, desde a redemocratização a Argentina tem um norte sobre o tema: o controle político civil, a separação entre segurança interna e defesa, e a proibição de que as Forças Armadas intervenham em assuntos internos. Como indica o recente informe do CELS[2], existem três leis que são fundamentais: a de Defesa Nacional de 1988, a da segurança interior de 1991 e o decreto regulamentar 727/06. Com esse complexo normativo, o país estabeleceu desde a redemocratização a arquitetura legal e institucional democrática nesta área, todas sancionadas por diferentes presidentes. Como indica o mesmo informe: “Envolver as Forças Armadas na segurança interna é desprofissionalizá-las e colocar em risco seu governo civil e seus direitos humanos.”
O governo pretende passar um novo decreto em substituição do 727/06. Esse permitiria que as forças interviessem na segurança interna e respondessem ante ameaças externas mesmo que não sejam realizadas por um Estado, como o caso do terrorismo. Mas já existiram outras ações nessa direção. No ano 2016, as Forças Aéreas foram autorizadas a permitir que a aviação militar interceptasse aviões com planos de voôs não autorizados que sobrevoassem o espaço aéreo nacional, obrigando-os a pousar.
Na resolução 3314 das Nações Unidas se estabeleceu de forma direta: agressão é o uso de força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com a Carta da ONU.
Na Comissão Interamericana de direitos humanos, tendo em consideração o caso brasileiro, e em reação à denúncia apresentada por organizações de direitos humanos que denunciam violações da Intervenção Federal Militar no Rio de Janeiro em maio deste ano, a relatora para o Brasil da Comissão Interamericana, Antônia Urrejola declarou: “usar Forças Armadas em ações da segurança pública não é razoável, considerando que militares têm formação e missão distintas dos agentes policiais”[3] [4].
Desta forma, o governo argentino fragiliza as fronteiras entre segurança e defesa, debilita a condução civil das forças armadas e aumenta a autonomia das forças no cenário nacional. Num contexto de empobrecimento, aumento da violência e erosão da economia argentina, o horizonte está cheio de violência e violações aos direitos humanos, enfraquecendo ainda mais as instituições democráticas.
Segundo o deputado Agustín Rossi, o novo alinhamento da política de segurança nacional está de acordo com o Comando Sul dos Estados Unidos, que envolvem as Forças Armadas na luta contra o narcotráfico. Salienta-se, que em nenhuma região onde se envolveram as Forças Armadas no combate ao narcotráfico o resultado foi positivo. Em geral o efeito é exatamente contrário: aumento de violência de forma maciça. O caso mexicano é sem sombra de dúvidas o maior exemplo: depois de uma década, com a incorporação das Forças Armadas na política de segurança, violência, morte e desaparições se multiplicaram. O México, que há onze anos está no combate contra as drogas, passou a ser um país mais violento que países em guerra como Afeganistão o Iêmen[5]. E nessa lista fazem parte outros países como Brasil, Colômbia, entre outros.
A titular das Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, considerou que o anúncio de Macri “é muito perigoso, querem voltar à teoria do inimigo interno. Eles querem um país sujeito ao medo, porque isso paralisa, mas eles não tiveram sucesso”[6]. Enfim, depois de 35 anos do restabelecimento da democracia, pareceria que o país ainda não tem alcançado uma solução adequada na forma e alcances da atuação das Forças Armadas em tempo de paz. Num complicado momento econômico, onde existe um nítido horizonte de protesto e explosão social, como indica o sociólogo Ernesto López: “o governo quer tornar questão social em um assunto policial”.
Uruguai: entre a militarização policial e o policiação militar
O Uruguai não escapa à tendência regional de procurar fórmulas de endurecimento punitivo e militarização policial para resolver problemas de segurança pública. Os últimos anos testemunharam um aumento no poder de vigilância e coerção das forças policiais na sociedade do país. Há novos equipamentos, mais recursos e disponibilidade de tecnologias de informática introduzidas para uso exclusivo do Ministério do Interior (MI). Como o Big Brother, centenas de câmeras HD estão sendo implantadas em diferentes bairros da capital, bem como em outras cidades e vilas do território nacional.[7]
A aquisição pelo MI do software de espionagem informático “El Guardián“, que desde 21 de dezembro de 2016 permite o monitoramento de cerca de 800 telefones celulares, 200 linhas telefônicas fixas e cerca de 100 e-mails simultaneamente, proporciona capacidades inéditas ao corpo policial[8]. Entre as novidades está o sistema de georreferenciamento do crime e a análise estatística do Compstats, adquirida em 2015 num acordo com a polícia de Nova York. Para piorar, o Uruguai é o país com a maior taxa de policiais da região, 809 por 100 mil habitantes, e novas forças policiais especializadas foram criadas para atender a novos contextos criminais. Em março de 2017, o país também atingiu a maior taxa de privação de liberdade em sua história, estando no top 30 de países com mais reclusos por 100 mil habitantes[9].
Mas, mesmo assim, a insegurança[10] repercute na agenda social e política, e não são poucas as pessoas que veem uma oportunidade de tirar beneficio político com o tema. Os discursos pedindo mais “mão dura” e endurecimento de sentenças vão crescendo, de forma inversamente proporcional ao menor tempo que resta para as eleições.
Alguns atores políticos estão dando impulso à possibilidade de uma intervenção militar em ações que, pela Constituição, correspondem à polícia. É o caso do senador e líder de uma linha do Partido Nacional, Jorge Larrañaga, que sob o lema de “viver sem medo“, está coletando assinaturas para poder realizar um plebiscito para modificar a constituição “por mais segurança“. De um modo geral, a iniciativa do legislador propõe a criação de uma Guarda Nacional composta por militares, com autorização para realizar incursões noturnas, revisão da detenção permanente e reafirmação do cumprimento das penalidades.
O oficialismo reconhece a necessidade de melhorar na matéria de segurança, que é uma reivindicação da sociedade. Mas a posição da Frente Ampla é clara: “Reafirmar que a questão é resolvida com o agravamento das penas, com a presença dos militares para as ruas e o aumento da repressão parece uma solução terrível”. E o presidente da Frente Ampla, Javier Miranda agregou: “São manifestações típicas da direita mais conservadora”. Por sua vez, o deputado comunista Gerardo Núñez indicou: “Parece incrível que ainda tenhamos que lutar contra a ideia de que militarizar as ruas é a solução para um problema.” Com os militares, a violência aumentará em vez de diminuir. O próprio Presidente Tabaré Vázquez declarou que: “as Forças Armadas têm uma função estabelecida pela Constituição da República que é cuidar da soberania do país e da integridade territorial”[11], descartando a atuação militar na segurança interna.
Enquanto isso, na oposição, as opiniões estão divididas. É o ano pré-eleitoral no Uruguai e a agenda de segurança pública ganha força. A “insegurança” é o tema de tendências de vários pré-candidatos, tanto a nível partidário como nas diferentes linhas internas de cada um deles, mas existem diversidade nas abordagens[12].
A campanha do plebiscito pode perfeitamente ser lida como um ato pré-eleitoral de Larrañaga, com a intenção de aumentar sua visibilidade e participação eleitoral; embora o jogo possa sair caro. Vale a pena recordar a iniciativa punitiva pré-eleitoral de Pedro Bordaberry (ex-candidato presidencial do Partido Colorado). Nas eleições anteriores, ele promoveu o plebiscito para penalizar adolescentes como adultos a partir dos 16 anos de idade. Isso também foi proposto como uma medida para “melhorar” a segurança pública. O que poderia ter sido uma iniciativa motriz para aumentar seu voto nas eleições nacionais, acabou não sendo. Embora a iniciativa tenha perdido a disputa, o resultado do plebiscito não foi tão assimétrico. Paradoxalmente, em termos do fluxo de votos presidenciais, foi um golpe que fez mergulhar os colorados na pior eleição de seu candidato à presidência da República na história[13].
Uma particularidade do processo: ex-militares uruguaios, da mesma forma que no Brasil, procuram ingressar em partidos conservadores para disputar eleições. Recentemente foi criado por ex-militares o movimento político Unidos Podemos, de caráter nacional.
Horizonte
O cone sul está indo a passos agigantados em direção à tragédia: aumento da violência, precarização dos direitos, concentração da riqueza e violação sistemática dos direitos humanos. O Brasil, líder regional, está na frente com um governo ilegal e ilegítimo, aplicando o retrocesso em todas suas formas. Na Argentina, com o governo de Mauricio Macri, apesar da legalidade, o processo de erosão da legitimidade vai crescendo. Políticas de retrocessos inspiradas no Brasil estão sendo aplicadas. E a presença das Forças Armadas está começando a ser parte dos discursos dos políticos num cenário próximo de explosão social. No Uruguai, com os vizinhos em pleno retrocesso, estão começando a sentir os efeitos. As Forças Armadas também aparecem dentro do discurso dos políticos, mas ainda num estágio inicial. Mas da mesma forma que no Brasil, militares uruguaios tentaram candidaturas para disputar nas próximas eleições. Com o pleito se aproximando nos três países, estas novas características parecem se acentuar, e a presença verde oliva, nas diferentes modalidades e âmbitos, parece voltar a ser parte de um cenário regional.
A presença da influencia militar dos Estados Unidos também é uma particularidade do processo na região, Exemplo disso é a recente entrada da Colômbia na categoria “sócio global” da OTAN. Outro caso dos efeitos negativos dessa influência militar sobre questões de segurança interna é a “guerra contra o narcotráfico” no México. Essa guerra gerou mais de 70 mil mortes, alterando a integridade, liberdade e segurança de milhões de pessoas[14]. Como acontece no México e no Brasil, a militarização da polícia ou diretamente a intervenção do exército na segurança interna é apenas uma medida sensacionalista, aumentando as violações dos direitos humanos, especialmente nos mais vulneráveis: crianças e adolescentes pobres.[15]. Enfim, a maré verde oliva em processo de expansão nos diferentes âmbitos do cenário nacional e regional.
*Andrés del Río é doutor em Ciência Politica pelo IEAP-UERJ, e professor adjunto da Universidade Federal Fluminense UFF; Mauricio Vazquez é Lic. em RR.II, Mestrando em Estudos Contemporâneos de América Latina e integrante do Instituto de Estudios Legales y Sociales del Uruguay IELSUR.