O risco de colocar a ideologia à frente da ciência
A pulga da divergência ideológica se instalou atrás de algumas orelhas. O fato da gestão Doria não ter incorporado legislações que já existem ao seu Programa de Metas deixou a impressão de que apenas as diretrizes com as quais a Prefeitura concordar serão cumpridas.
Dezenas de organizações da sociedade civil se dispuseram a acompanhar (e tentar contribuir com) a elaboração do Programa de Metas que orientará a gestão da maior cidade da América do Sul até a virada da década em temas diretamente relacionados ao maior desafio da humanidade neste século: o aquecimento global. Uma análise minuciosa das contribuições que a Prefeitura recebeu e do resultado final apresentado em julho pela gestão levou a duas constatações igualmente preocupantes. A primeira: embora tenha sido eleito com a promessa de ser um gestor moderno, o prefeito de São Paulo, João Doria ignora os riscos e as oportunidades apresentadas pelas mudanças do clima. A segunda: seu programa de metas simplesmente passa por cima de leis, planos e programas em vigor, em um claro desvio da governança pública.
São Paulo foi uma das primeiras cidades do Brasil a ter uma Lei de Mudanças do Clima. O tema faz parte de seu Plano Diretor. O Brasil integra o Acordo de Paris, firmado ao final de 2015, sancionado pela presidência no ano seguinte e que entrou em vigor em novembro de 2016. Nada disso foi suficiente para que o programa trouxesse avanços em transporte público, resíduos sólidos, energia renovável e áreas verdes – quatro temas com impactos diretos sobre as causas do aquecimento global. Pelo contrário: o que a atual gestão entrega à cidade é um festival de retrocessos.
As metas relacionadas ao transporte público não respeitam o Plano de Mobilidade, aprovado em 2015 após longa consulta com a sociedade e que determina a construção de 150km de corredores, 110km de faixas e 16 novos terminais de ônibus até 2020. Na versão final do Programa de Metas, o compromisso é de apenas 72km de novos corredores de ônibus e dois terminais, mas nenhuma nova faixa exclusiva. A meta de redução de emissões da frota de ônibus de São Paulo, por sua vez, é muito inferior ao que estabelece a Lei Municipal do Clima, de 2009, e a gestão sequer apresentou como pretende alcançar essa redução.
Se em mobilidade a situação é crítica, as metas para outros assuntos relacionados às mudanças do clima são ainda mais pífias. Apesar de citar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) das Nações Unidas, a versão final do Programa de Metas não trouxe nenhum conteúdo relacionado à geração de energia limpa; nem mesmo a promessa eleitoral de adotar energia renovável na iluminação pública, contida no Programa de Governo de João Doria, foi incorporada. O Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, aprovado em 2014, também é ignorado no que diz respeito à inclusão de catadores e catadoras de recicláveis e não traz qualquer compromisso com o aumento dos índices de reciclagem e compostagem na cidade.
Por fim, surpreende a meta de apenas 200 mil novas árvores a serem plantadas na cidade nos próximos quatro anos. Qualquer pessoa sabe que as áreas verdes são fundamentais para que a cidade deixe de ser a ilha de calor na qual se tornou, com sérias consequências para a saúde e a qualidade de vida dos cidadãos. Mas, com esse número tímido, muitas regiões da cidade continuarão com cobertura vegetal bem abaixo das diretrizes da Organização Mundial da Saúde, impactando não só o bem-estar da população como também os cofres públicos, que sofrem a cada enchente que poderia ter sido evitada se tivéssemos mais árvores e menos áreas impermeáveis.
A cidade vive um momento único: temos diversos planos setoriais vigentes e todos foram construídos com ampla participação da sociedade. Por que, então, ignorá-los?
A pulga da divergência ideológica se instalou atrás de algumas orelhas. O fato da gestão Doria não ter incorporado legislações que já existem ao seu Programa de Metas deixou a impressão de que apenas as diretrizes com as quais a Prefeitura concordar serão cumpridas. Mas esse não é um luxo ao qual podemos nos dar. O aquecimento global já é uma realidade e a cada ano, o planeta bate um novo recorde de temperatura. Ela já subiu um grau, sendo que a meta de todos os governos é manter esse aumento dentro do limite de dois graus em relação aos níveis pré-industriais. Há consenso entre os cientistas que o aumento da temperatura é causado pelos gases de efeito estufa liberados pela ação humana e segundo o Programa de Meio Ambiente da ONU, 70% deles são gerados em cidades. Estamos claramente correndo contra o tempo. As decisões de gestores como o prefeito João Doria são fundamentais para a segurança da humanidade e não podem ser guiadas simplesmente pela polarização política e ideológica.
Gabriela Vuolo é representante do projeto Cidade dos Sonhos e membro do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte da cidade de São Paulo.