O silencioso exílio dos iraquianos na Síria
Tradicionais “esquecidos” das guerras, os refugiados e deslocados são quase 5 milhões no Iraque desde 2003. A reação internacional, diante desse tipo de crise, não parece muito apropriada. Vizinhos como a Síria acolhem a maioria, mas sua capacidade de gerenciar essas populações tem limite
Vendedores de chá pelas ruas, padarias fabricando samoun,1 placas de restaurantes oferecendo especialidades regionais iraquianas, tudo isso agora faz parte da paisagem de Jaramana ou Saida Zainab, nos arredores de Damasco, onde o sotaque iraquiano domina em alguns cafés. Os táxis estacionados nas estações de ônibus de Bagdá, Mosul e Basra lembram que o êxodo de iraquianos se prolonga, embora a situação no país pareça estar melhorando.
“Devido à insegurança, tivemos de deixar Mosul, em 2004, e buscar abrigo em Qamishli [cidade síria perto da fronteira com o Iraque]. Ficamos lá seis meses, durante os quais eu ia e voltava para tocar minha empresa de construção. Voltamos a viver em Mosul no início de 2005, quando a segurança melhorou. Em fevereiro de 2006, fomos forçados a partir, dessa vez definitivamente, e nos instalamos perto de Damasco. Com o dinheiro que ganhei depois de vender tudo, consegui emigrar para a Suécia com minha esposa em julho de 2006.” Essa história de um pequeno empresário que hoje vive na Europa não é isolada. Muitos iraquianos deixaram seu país na esperança de voltar em breve, tentando manter, quando possível, uma atividade econômica.
Os refugiados tentam reconstruir uma vida normal em Damasco, mas, como suas economias vão encolhendo, as dificuldades aparecem. É o que mostra o percurso de Abu Jaber, um alfaiate de 50 anos que deixou Bagdá no fim de julho de 2006. Ele mora num subúrbio de Damasco com a esposa e quatro filhos. “Um dos meus filhos trabalhava como motorista no Ministério do Petróleo, o que lhe rendeu ameaças de morte depois de 2003. Em Bagdá, eu me sustentava e tinha uma alfaiataria com vinte máquinas de costura. Precisei abandonar a cidade às pressas e só consegui vender uma parte dos meus bens. Cheguei aqui com US$ 4 mil. Por muito tempo pensei em ir para a Jordânia, onde tenho amigos, mas preferi a Síria, pois as condições de recepção são melhores. […] Hoje alugo um apartamento por 20 mil libras sírias [R$ 650]. Após um período de desemprego e emprego precário, consegui alugar uma lojinha de costura, com uma máquina, onde trabalho com a ajuda de dois dos meus filhos. Nós três juntos conseguimos ganhar 500 libras sírias por dia [R$ 16].”
Os iraquianos têm acesso ao sistema público de saúde e à escola. Mas, como todo cidadão estrangeiro na Síria, precisam de uma autorização para trabalhar, procedimento raramente realizado pelos empregadores, pois aumenta os custos. Então ficam na economia informal, com rendimentos baixos e instáveis – o que ocorre com quase metade da mão de obra síria no setor privado.2 A chegada maciça de iraquianos e a tolerância de autoridades sírias permitiram, no entanto, o desenvolvimento de uma forte atividade comercial em Damasco.
Desde 2003, a instabilidade no Iraque engendrou grandes deslocamentos: mais de 2 milhões de pessoas no interior do país, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), por sua vez, estima que um número equivalente de refugiados tenha deixado o país.3
Embora a Síria não seja signatária da Convenção de Genebra de 1951 nem do Protocolo Adicional de Nova York de 1967 – os principais instrumentos internacionais que regem o estatuto dos refugiados –, ela acolheu em seu território diversas ondas de deslocados. Algumas populações, como os palestinos que chegaram a partir de 1948, instalaram-se permanentemente; outros, como os libaneses durante o conflito em julho de 2006, encontraram ali um refúgio temporário.4 Frequentemente comparada ao êxodo de palestinos, por sua amplitude, a atual imigração iraquiana apresenta, no entanto, características particulares. Não houve êxodo maciço em uma ou duas ondas, mas um fluxo, variável no tempo, que combina saída definitiva do país para alguns e idas e voltas para outros. Outra distinção importante: os iraquianos, em sua maioria urbanos, instalam-se nas cidades, e não no campo.
A situação dos imigrantes
Não há nenhum recenseamento da população iraquiana residente na Síria. O Acnur registrou mais de 200 mil refugiados,5 mas, dada a diversidade de situações, a multiplicidade dos itinerários e a forte heterogeneidade dos migrantes, muitos não estão listados pelo comissariado da ONU. Por isso é difícil avaliar o número real, com estimativas que variam de algumas centenas de milhares a 1,5 milhão.6
O debate sobre os números, no entanto, não deve esconder que esse é um dos principais movimentos de refugiados no mundo, por sua magnitude e implicações regionais. No que concerne aos 22.115 pedidos de asilo de iraquianos apresentados aos países industrializados em 2006, são os Estados fronteiriços ao Iraque, particularmente a Síria e a Jordânia, que receberam a maioria (com a notável exceção da Suécia, que recebeu vários milhares). Na década de 1990, muitas centenas de milhares de iraquianos já estavam refugiados na Jordânia,7 e algumas dezenas de milhares, na Síria.
Até outubro de 2007, Damasco manteve as fronteiras abertas aos iraquianos, que contavam com o mesmo regime bastante flexível de entrada e estadia que os outros cidadãos árabes. Desde então, em acordo com as autoridades iraquianas, tornou-se obrigatória a obtenção de um visto “prévio à entrada no território”.
Como não há legislação específica na Síria sobre asilo (exceto no caso particular dos palestinos), os iraquianos não são considerados refugiados, submetendo-se à lei comum de entrada e estadia de estrangeiros. O Acnur oferece aos refugiados registrados no órgão um certificado temporário, válido por um ano e renovável, que teoricamente os protege do risco de deportação para o Iraque, dando acesso a alguma assistência social (contribuição alimentar e financeira; distribuição de colchões, cobertores e produtos básicos etc.) e médica, principalmente por meio da Cruz Vermelha síria, algumas instituições de caridade locais e, mais recentemente, diversas organizações estrangeiras.
A exigência de visto diminuiu significativamente o número de entradas, pois as condições para obtê-lo são muito rigorosas e reservadas a certas categorias socioprofissionais (empresários, motoristas de táxi, cientistas, estudantes e pessoas que se enquadram no caso de reagrupamento familiar). O relativo declínio da violência no Iraque também ajuda a limitar o número de partidas.
Segundo efeito dessa política de vistos prévios: a significativa redução do movimento de ida e volta entre os dois países. Proporcionalmente ao número de refugiados, os retornos parecem relativamente pequenos, tocando 40 mil pessoas desde a instauração do visto.8 É sobretudo pelas dificuldades ligadas ao custo de vida e à impossibilidade de obter um prolongamento da estadia que os iraquianos decidem voltar para seu país. De acordo com as pesquisas realizadas, a “melhora” das condições de segurança parece ter papel pouco significativo nessa decisão.9
O terceiro efeito toca as modalidades de residência. Até outubro de 2007, os iraquianos eram considerados turistas. Quando seu visto expirava, eles precisavam sair do país e voltar, para poder renová-lo. A exigência de um visto prévio torna impossível essa forma de renovação, levantando assim a questão da residência para as pessoas que entraram antes de outubro de 2007. As autoridades sírias anunciaram que apenas a infração à estadia não constituiria motivo suficiente para deportação. Segundo o Acnur, o compromisso está sendo cumprido. Alguns têm direito a uma autorização de residência temporária por um ano, como os pais de crianças que frequentam a escola na Síria ou as pessoas submetidas a tratamento médico, bem como suas famílias. Mas muitos iraquianos encontram-se em situação irregular, o que contribui para fragilizá-los.
Entre os exilados há também grupos minoritários. Eles tiveram de fugir do Iraque por causa de uma forte discriminação, como os mandeístas, ou em razão do isolamento, como alguns cristãos nestorianos ou caldeus. De acordo com as estatísticas do Acnur, embora os muçulmanos sunitas constituam a maioria dos refugiados na Síria, as minorias cristãs e mandeístas são super-representadas (15% e 4%, ainda que esses grupos sejam pouco numerosos no Iraque), em parte porque contam com redes migratórias mais eficientes, por serem mais antigas e bem estruturadas. No caso de alguns grupos, há uma antiga e importante diáspora, nos países ocidentais, que apoia os movimentos de imigração.
Se para alguns milhares de iraquianos a Síria é apenas uma etapa no percurso em direção à Europa, Estados Unidos ou Austrália, para a maior parte ela é um espaço de refúgio, onde podem tentar construir uma vida “normal”.10 Como observa um iraquiano encontrado em Damasco, “a Síria abriu as portas para nós, e então pudemos começar a viver aqui sem medo de sair de casa ou de mandar nossos filhos para a escola. Mas agora que perdemos tudo no Iraque e os países ocidentais não querem nos acolher, o que faremos aqui?”.
BOX:
OPERAÇÃO "LIBERDADE DO IRAQUE" (2003)
Países envolvidos
A coalizão dirigida pelos Estados Unidos reúne 49 países, entre eles Reino Unido, Espanha, Itália, Portugal, Dinamarca, Holanda, Japão, Filipinas, Coreia do Sul, Austrália, Colômbia etc. Os combates são dirigidos essencialmente pelas tropas norte-americanas e britânicas, uns trinta Estados participando das operações militares de segurança, os outros garantindo missões anexas (logística, saúde etc.).
Principais contingentes militares
Trezentos mil soldados, dos quais: Estados Unidos (250 mil), Reino Unido (45 mil), Austrália (2 mil) e Polônia (200).
Custo financeiro
Sessenta bilhões de dólares (oficial). Segundo os economistas Joseph Stiglitz e Linda Bilmes, os Estados Unidos teriam gasto cerca de US$ 3 trilhões.
Datas-chave
2002. 29 de janeiro. George W. Bush acusa o regime iraquiano de pertencer, com o Irã e a Coreia do Norte, ao “Eixo do Mal”.
11 de outubro. O Congresso norte-americano autoriza o recurso à força armada contra o Iraque, suspeito de possuir armas de destruição em massa.
2003. 19 de março. A França, por meio de seu ministro das Relações Estrangeiras, Dominique de Villepin, exprime à ONU sua oposição à guerra.
20 de março. Início da operação “Liberdade do Iraque”, sem o aval das Nações Unidas. Bagdá cai no dia 9 de abril. Em 1º de maio, o presidente George W. Bush declara que a “missão” foi “cumprida”.
2004. 6 de outubro. A comissão de investigação norte-americana conclui que Saddam Hussein não possuía mais armas de destruição em massa desde 1991.
2006. 5 de novembro. O ex-presidente iraquiano é condenado à morte por enforcamento pelo alto tribunal penal iraquiano. É executado no dia 30 de dezembro.
2009. Junho. O Exército norte-americano evacua as cidades. Todas as tropas estrangeiras deveriam ser retiradas até o fim de 2011.
Custo humano e material
Vítimas diretas: durante a ofensiva de março-abril de 2003, dezenas de milhares de soldados iraquianos e quase 30 mil civis perderam a vida. Total de perdas da coalizão em setembro de 2011: 4.795 mortos, dos quais 4.477 americanos e 179 britânicos.
Vítimas indiretas: centenas de milhares de mortos entre a população iraquiana (650 mil, segundo a revista médica britânica The Lancet).
Custo material: destruição de numerosas construções oficiais, vias de comunicação e pontes; sabotagem de poços de petróleo, refinarias e oleodutos; destruição de sítios arqueológicos; pilhagem do museu de Bagdá etc.
Movimentos migratórios
Segundo as Nações Unidas, cerca de 4 milhões de iraquianos (de 28 milhões) foram deslocados, e mais de 2 milhões fugiram do país, principalmente para a Síria (1,5 milhão), a Jordânia (750 mil), os países do Golfo (200 mil) e o Egito (80 mil).