O sorriso da Rocinha
Completam-se dois dias que estive na favela da Rocinha. Faz dois dias que penso sobre ela, faz dois dias que meu coração bate de saudades
“Participei da luta sem saber ao certo. Ainda moleque, jogava bolinhas de gude no asfalto, para que os cavalos da ditadura patinassem. E depois fugia para dentro do cinema, ver filmes de Fellini e Godard.” Aquele jovem senhor de 71 anos, karateca, desportista e ativista contava suas experiências como quem fala que foi à padaria e cruzou com algum compadre. Isso me preparava para sua mais pura história, que se confundia com a história de um lugar que eu estava em vias de conhecer.
No momento em que escrevo completam-se dois dias que estive na favela da Rocinha. Faz dois dias que penso sobre ela, faz dois dias que meu coração bate de saudades, faz dois dias que desejo voltar.
Lançar conclusões sobre o que testemunhei nesse lugar tão extraordinário seria precipitado. Não se totalizam conceitos e definições por olhares estrangeiros, parciais e limitados, como o meu. Prefiro relatar o que vi, de maneira concreta, realista e, sim, com alguma licença poética.
Em uma manhã ensolarada, mas com uma brisa fresca, própria do início do inverno, desci do metrô da estação de São Conrado. Estava acompanhado de um amigo, advogado criminalista e professor, de senso crítico profundo, dono de uma generosidade encantadora. Nós dois havíamos marcado aquele ponto de encontro com o sorridente senhor das bolinhas de gude contra a ditadura, pessoa nascida e criada na Rocinha. Logo que nos viu ele acenou, contente, ao lado de outro homem, igualmente de sorriso largo. A seguir, um terceiro componente juntou-se ao grupo, também simpático, dentes à mostra.
Naqueles segundos tivemos a certeza de que nos tornaríamos os mais novos velhos amigos. A conversa fluiu sem receios, de maneira franca. Decidimos ali mesmo o trajeto que tomaríamos e iniciamos a subida do morro em van de transporte coletivo. Entre solavancos e movimento de passageiros, em paradas intermitentes, soubemos um pouco uns dos outros e eu e meu amigo começamos então a ter a aula que tanto desejávamos. O sorriso da Rocinha começava a nos conquistar.
A subida foi por uma rua cheia de curvas bastante sinuosas, muitas em 180 graus, com um movimento frenético de pedestres, mototáxis, vans e ônibus.
Soubemos que o Juan Manuel Fangio, automobilista argentino, pentacampeão mundial de Fórmula 1, teria vencido uma corrida naquela via. Porém, o som que ouvíamos não era o ruído de um carro de corrida. Os barulhos de anúncios de comerciantes, as buzinas, arranques, caixas acústicas em vitrines e portas misturavam-se, formando ao final, quando os ouvidos se acostumaram, uma melodia quase harmoniosa.
Paramos no alto da favela. Com alguma dificuldade para pagar pelo transporte, descemos da van e seguimos caminho a pé. Eu era frequentemente alertado para os sinais do trânsito, ou ausência deles, para caminhar sobre a calçada, quando tinha espaço, para olhar para os lados etc. “Não podia sair dali atropelado”, diziam meus amigos. Poucas vezes me senti tão cuidado. Nossos anfitriões nos conduziam com tanto zelo que cheguei a me incomodar um pouco, não queria ser objeto de tanta preocupação.
Entre fotografias e acontecimentos contados sobre a origem da Rocinha, das lutas para conquistar direitos coletivos, cidadania, conhecemos o episódio da mobilização sobre a construção do metrô. Num primeiro momento não haveria ponto de parada aos pés do morro, mas, diante da força de um povo aguerrido, o governo teve que ceder e a estação de São Conrado foi concretizada.
Alguns passos mais acima e paramos em uma laje onde crianças e jovens participam de projeto de capoeira (Laje Cultural Rocinha). Assim que acessamos o topo das escadas, demos de frente com a vista deslumbrante da Cidade Maravilhosa. A Rocinha fica encravada entre as montanhas, com seus paredões de pedra e suas florestas verdejantes. No horizonte as águas do Atlântico com o brilho cristalino. Tudo abraçado por um céu de azul infinito.
Em semicírculo, os jovens capoeiristas nos aguardavam com seus instrumentos musicais, liderados pelo mestre. Novamente eu via aqueles sorrisos largos, o que se tornaria para mim a marca da Rocinha. Tivemos uma explanação da origem da capoeira, nascida na resistência dos negros escravizados contra seus algozes escravocratas. E então nos emocionamos com uma apresentação potente, que fez o coração palpitar. Que lindo projeto aquele, que lindas histórias a do mestre e seus alunos, que importância aquilo tinha para todos, tanto que, sem meias-palavras, salvava vidas. Saímos de lá com trocas de contatos, com apertos de mãos, fotos e promessas de retorno. Acompanhou-me a sensação de que se o estado investisse em iniciativas como aquela, no lugar de usar seus recursos para equipamentos de segurança pública, como viaturas e armas, com certeza não mais teríamos conflitos, violências, aprisionamentos.
Subimos mais um pouco e, com ajuda de crianças uniformizadas a caminho da escola, espertas e solícitas, chegamos a um mirante, onde novamente a vista arrebatou. Fotografei um cenário etéreo, que manteria em meus registros, para dele lembrar nas noites de tempestade.
Atingido o ápice da favela, começamos o caminho de volta, então morro abaixo. Nos carreiros e escadarias, cruzamos com moradores a ir e vir. A descida era bem íngreme, era preciso equilíbrio e agilidade do pedestre. Duas mulheres, paradas ao lado de um recuo com muito lixo e descartes, reclamavam da sujeira, dizendo-se envergonhadas. Os ambientes todos são limpos, dentro do possível. A falta de saneamento público torna árdua a tarefa de limpeza. Naquele perímetro havia efetivamente aquele lixo objeto da reclamação. Cumprimentei as duas senhoras e disse que aos meus olhos apenas pessoas maravilhosas eram vistas, como elas duas, nada mais. O sorriso outra vez veio largo.
Pouco à frente, chegamos na sede de um segundo projeto, o qual nossos anfitriões integravam (Centro Social Educação e Cultura da Rocinha). Em espaços diminutos, divididos por andares, pudemos saber sobre ensino de informática, robótica, línguas, EJA, reforço escolar, jiu-jítsu, tudo para mais de uma centena de crianças, adolescentes e jovens adultos. E mais, conhecemos o refeitório, onde todo sábado o almoço é servido, com comida boa, daquela de mãe, recheada de carinho. A origem do espaço se devia à iniciativa de dois irmãos, já sexagenários, que sempre moraram na Rocinha. Ambos nos receberam de braços abertos e nos contaram como tudo começou e como esperançavam por dias melhores. As crianças tinham um lugar para crescer, um recanto, com ludicidade e acolhimento, com felicidade. Ao nos despedirmos, novamente, faces tomadas por sorrisos preencheram as lajes e a vista. Mais uma vez prometi voltar, então num sábado, para auxiliar no almoço.
Morro abaixo, com nossos anfitriões sempre a nos apresentar moradores e nos apontar pontos históricos e relevantes do local, tivemos até a honra de parar o fluxo de mototaxistas para atravessarmos uma via.
Antes de chegar à Rocinha, tinha receio de que meu olhar ficasse apenas naquele quadrado turístico, superficial, às vezes até desrespeitador. Acho que consegui me afastar desse olhar. O que presenciei foi amor, afeto e alegria.
É certo que tristezas, dores e vulnerabilidade insistem em existir na Rocinha, o Brasil é socialmente desigual, marcado pelo racismo e pela exploração dos trabalhadores. No morro, há problemas graves de saneamento, falta de acesso à saúde, precariedade de escolas. Muitos dos jovens lá precisam sair para outras localidades para estudar. E as construções das casas e barracos, sem registros, colocam boa parte dos residentes em risco. Já a mobilidade, frente a tantas dificuldades de acesso, para uma pessoa que nasceu e cresceu em lugares estruturados como eu, parece sequer existir. Jamais esquecerei a passagem da Rua Número Um, resumida a um corredor de não mais que dois metros de largura, por onde mais de 30.000 pessoas circulam, para chegar e sair de suas casas, com sacos de cimento, televisores, geladeiras, tudo nas costas. Naquele momento, no corredor apertado, prendi a respiração, para simbolicamente deixar que o povo da Rocinha, exausto, respirasse por mim.
As políticas públicas voltadas para o coletivo, para a erradicação da pobreza, a distribuição de renda, a dignidade da pessoa humana, estão distantes das favelas. Somos culpados por ainda aceitar que condições terríveis de vida de populações inteiras, de maioria negra, oprimida e explorada, persistam em nosso país. Parece que tudo fica encerrado em órgãos de segurança, a causarem insegurança. Há que se agir, unindo-se a quem já luta por justiça social, colocando-se à disposição, isso é evidente e urgente.
Entretanto, a Rocinha resiste linda e brava. Parte dessa resistência, eu ouso pensar, é sustentada na alegria. Apesar de todo o sofrimento, lá as pessoas sentem-se pertencentes e esse pertencimento é de um local com uma vista espetacular do mar, das montanhas e do céu. Isso liberta o espírito, só pode. E espírito livre é espírito alegre, que resiste. Na Rocinha, a estética efetivamente serve à ética!
Como foi importante este dia para mim, para nós. Que coisa incrível! As sensações profundas no compartilhamento dos olhares, do tato, do olfato, dos sentimentos, transformaram-me, a Rocinha me transformou.
Fui embora levando a favela comigo, levando sua voz, sua existência, para fazê-la ressoar por onde eu passar, assim como já faço com tantas outras populações e pessoas.
E como se não bastasse, ainda recebi uma mensagem do anfitrião, que me permito colar: “My good doctor! Junho de 2023, numa ensolarada manhã de um inverno promissor fica marcada para sempre em nossa memória de, como uma visita na favela da Rocinha, resultou numa amizade infinita! Gratidão amigo! Abração fraterno no seu coração!”
Quem importa é quem caminha ao nosso lado quando anoitece. São a esses que agradecemos quando amanhece. Agradecerei sempre ao amanhecer, ao povo da Rocinha, por meio de meus novos velhos amigos, pois sei que estarão comigo ao anoitecer.
Esse é o sorriso da Rocinha.
João Marcos Buch é autor e desembargador substituto.