O Tratado de Pandemias e as crises humanitárias internacionais
O fracasso catastrófico da comunidade internacional durante a crise provocada pela Covid-19 em demonstrar solidariedade e a necessidade de garantir preparo para futuras pandemias induziu os 194 Estados membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) a estabelecerem um acordo, denominado Tratado de Pandemias, que inclui ações de prevenção, preparação e resposta
Na pintura O triunfo da morte (1562), de Pieter Bruegel, emerge uma cidade devastada pela peste, incendiada, semeada por suplícios e corpos sem vida, jogados ao chão arenoso, enquanto cavalga, no centro, a figura da Morte, que ceifa impiedosamente pessoas de todas as condições sociais. Ninguém se salva da peste. Nem sequer o rei, que entrega todo o seu tesouro ao cavaleiro mortal. Já Albert Camus, no livro A peste, narra a catástrofe que assola uma cidade no interior da Argélia, também causada pela peste, uma doença fatal. Na história, quando o perigo se torna iminente, muitas pessoas buscam soluções individuais, ignorando o povo. Nem todos morrem, e só alguns sentem vergonha de se salvarem sozinhos. Mas Camus usa a literatura para aventar outra questão: como reagiram as autoridades diante da terrível pandemia?
O triunfo da morte e A peste são obras de arte que, embora metafóricas, retratam períodos históricos que marcaram a humanidade. Expressam, ambas, doenças capazes de se alastrar rapidamente, além da incapacidade do Estado e da sociedade civil em conter os danos causados, mesmo que preveníveis.
O mundo vivenciou pandemias ao longo do tempo. Inúmeras, em diferentes momentos da história. A gripe espanhola surgiu em 1918 e matou cerca de 50 milhões de pessoas; a cólera, em 1817, matou centenas de milhares; a varíola assolou a humanidade durante 3 mil anos; a peste bubônica, no século XIV, matou aproximadamente 200 milhões; além de epidemias, como a da aids, que se alastram diariamente e formam um contingente de vulneráveis.
A Covid-19 não foi a primeira e, ainda assim, governos de diferentes países repetiram os erros das pandemias de outrora, não adotando medidas suficientemente eficazes. As autoridades fizeram gestão da pandemia como se fosse um fenômeno inédito, como se não existissem experiências prévias que pudessem nortear as ações de prevenção e proteção. Um déjà vu que fosse, uma medida global orientada pelos aprendizados das pestes do passado. Nada. Não à toa, morreram aproximadamente 7 milhões de pessoas pela doença em pleno século XXI, cuja atuação governamental da pandemia foi marcada por medidas muitas vezes estapafúrdias, medicamentos ineficazes, fake news, falta de insumos, vacinas e leitos hospitalares, principalmente para populações pobres, negras e indígenas. Ainda, a abissal desigualdade existente entre países gritou mais alto, e nem todos tiveram o mesmo lugar ao sol.
O fracasso catastrófico da comunidade internacional em demonstrar solidariedade e a necessidade de garantir preparo para futuras pandemias induziu os 194 Estados membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) a estabelecerem um acordo, denominado Tratado de Pandemias, que inclui ações de prevenção, preparação e resposta. No dia 1º de fevereiro de 2023, a minuta do acordo em negociação foi publicada pelo Órgão Intergovernamental de Negociação da OMS. Assim, o Tratado de Pandemias surge para enfatizar a equidade como um princípio, um indicador e um resultado para futuras crises humanitárias internacionais.[1]
O Tratado é pautado pela equidade e pelo direito à saúde, buscando salvar vidas, prevenir doenças e proteger a subsistência. Reduzir, de fato, as desigualdades internacionais. Aborda, ao longo do texto, os desafios nas esferas internacional, nacional e regional; busca reduzir o risco de futuras pandemias; induzir a cobertura universal de saúde; e garantir uma resposta pandêmica coordenada, colaborativa e baseada em evidências.
O Tratado enfatiza o respeito aos direitos humanos, à dignidade e à liberdade; a soberania de legislar em conformidade com as políticas de saúde de cada país; a equidade na prevenção, preparação, resposta e recuperação; a solidariedade para alcançar um mundo mais seguro, justo, equitativo e preparado; e transparência e responsabilidade dos Estados pelo fortalecimento dos sistemas de saúde. Ações multissetoriais devem reconhecer a interconexão entre pessoas, animais, plantas e meio ambiente, além de envolver representantes da população. Ademais, a OMS tem papel central como autoridade coordenadora do trabalho internacional em saúde.
A organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras defende que o Tratado representa o primeiro passo em direção a um acordo jurídico que regeria os Estados membros da OMS. No entanto, algumas questões estão pendentes e precisam ser abordadas à medida que a negociação avança.[2]
No Tratado, termos como “pandemia” e “produtos relacionados à pandemia” precisam ser revisados para garantir a aplicabilidade das medidas. Ainda, é necessária maior clareza e consistência, especialmente no que diz respeito à transparência, além da importância de esclarecer se as medidas são aplicáveis aos produtos médicos que utilizam patógenos com potencial pandêmico. Para alcançar equidade, os artigos que versam sobre abastecimento global, armazenamento estratégico, alocação equitativa, acesso a tecnologias e aumento da capacidade de pesquisa e desenvolvimento devem ser aprimorados, induzindo as responsabilidades dos Estados na garantia de acesso de medicamentos, vacinas e insumos com base nas necessidades de saúde das pessoas.
Em entrevista, Francisco Viegas, assessor da Campanha de Acesso a Medicamentos do Médicos Sem Fronteiras, que esteve recentemente em Genebra, conta que o Tratado traz elementos importantes para a equidade no acesso a medicamentos, mas apresenta fragilidades. Segundo ele, não são propostas que garantirão mudanças no acesso a medicamentos e insumos em uma futura crise humanitária. Há preocupação, portanto, quanto à menção de temas importantes, como transferência de tecnologia, suspensão de direitos de propriedade intelectual e compartilhamento de acesso. Esses elementos estão incluídos no Tratado como pontos importantes, mas não vinculantes ou obrigatórios, induzindo compromissos voluntários que os países podem (ou não) adotar. E esse é um problema do atual acordo.
Para Viegas, existe uma tensão entre os países do Norte e do Sul global. Os países do Norte têm garantido o acesso a insumos, tecnologias de saúde, medicamentos e vacinas. Inclusive, esse nacionalismo foi exacerbado quando países do Norte detiveram um quantitativo de vacinas cinco vezes maior ao tamanho da sua população, gerando iniquidade no acesso mundial ao imunizante. Os países no Norte possuem uma indústria farmacêutica com grande capacidade de produção e inovação. Por isso, defendem os interesses do setor privado e farmacêutico em detrimento do interesse das pessoas. Já os países do Sul global buscam acesso equitativo a medicamentos, vacinas e insumos, além de garantias quanto ao uso de patentes.
A preocupação do Médicos Sem Fronteiras é evitar que as iniquidades na distribuição de vacinas e de insumos não se repitam em uma futura pandemia. Houve uma fala recente do presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, destacando que até hoje faltam vacinas da Covid-19 em seu país. Assim, esse não é um tema superado. E, infelizmente, não é novo. Houve iniquidade na distribuição e no acesso a vacinas e insumos na epidemia de gripe aviária, em que os países que contribuíram com pesquisas ficaram no final da fila para receber o imunizante. Também não se pode aceitar a dependência tecnológica de somente um ou outro produtor de vacinas em uma futura pandemia. É preciso expandir a capacidade de produção, com inovação também no Sul global.
As lições deixadas pela pandemia da Covid-19, ainda que trágicas, precisam ser compreendidas, para que os erros cometidos no passado não se perpetuem nos tempos porvir. O Tratado de Pandemias representa um marco internacional em disputa, mas é preciso ir além, transformando diretrizes em práticas, que adentrem o cotidiano das vidas e dos serviços de saúde, que reduzam iniquidades e de fato contribuam para melhorias nas condições de saúde. É possível mudar o rumo retratado no quadro de Bruegel, mas para isso é fundamental que a questão de Camus seja melhor respondida: as autoridades precisam reagir. E o momento é agora.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.
[1] OMS, Zero draft of the WHO CA+ for the consideration of the Inter governmental Negotiating Body at its fourth meeting, 1 fev. 2023.
[2] MSF, Summary of Overall Comments and Recommendations, 2023.