O triunfo do estilo paranoico
Trump finalmente se tornou bilionário não em decorrência de seu talento como homem de negócios, mas graças ao reality show. Ao mesmo tempo produtor e astro dos programas The Apprentice [O aprendiz] e depois The Celebrity Apprentice [O aprendiz celebridades], ele fez entrevistas de emprego com candidatos e confiou-lhes missões, sem deixar de humilhá-los.Ibrahim Warde
As ambições presidenciais de Donald Trump não datam de ontem. Em 1988, o incorporador imobiliário já tinha tentado se tornar concorrente de George H. Bush. Ele postulou em seguida, na perspectiva da eleição de 2000, a investidura pelo Partido da Reforma, o qual havia servido de plataforma para Ross Perot, o primeiro “bilionário populista” a se lançar na arena pwolítica.1 Em 1992, em decorrência de uma campanha que tinha como eixo os perigos do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (Nafta), este último havia arrebanhado 19% dos votos, impedindo a reeleição do presidente Bush diante do candidato democrata Bill Clinton. Em cada uma dessas tentativas, Trump se empenhou em colocar seus talentos de homem de negócios a serviço de um governo a que faltavam reformas radicais.
As convicções daquele que, em 20 de janeiro próximo, se tornará o 45º presidente dos Estados Unidos, no entanto, continuavam indefinidas. Por muito tempo inscrito nas listas eleitorais como democrata, ele só se tornou republicano em 2009. Em sua efêmera batalha pela indicação desse partido em 2012, ele se impôs como o porta-bandeira daqueles que contestavam a legitimidade do primeiro presidente negro da história norte-americana, alegando que Barack Hussein Obama não teria nascido nos Estados Unidos. O presidente acabou por tornar público na íntegra seu registro de nascimento, mas as provas fornecidas não foram suficientes para pôr fim a essa polêmica alimentada pela imposição de uma “indústria da fantasia”.
Dinesh D’Souza, nascido na Índia e naturalizado norte-americano, é um dos ideólogos dessa direita obcecada pelos perigos da imigração. Ele não cessou de produzir livros e documentários2 destinados a semear a dúvida sobre a “americanidade”, se não sobre o patriotismo, de Obama. Descrevendo o presidente como herdeiro dos sonhos anticolonialistas do pai, originário do Quênia, ele conclui que “a América é governada em função dos sonhos de um membro da tribo Luo do Quênia”. Enfurecido contra os Estados Unidos, Obama procuraria por todos os meios enfraquecer o país, contraindo dívidas para ele e amputando sua influência internacional. Um público apreciável se alimenta avidamente dessas informações.
Como explicar a persistência dessas crenças? A estagnação do poder de compra, a precariedade do emprego, a imigração e o multiculturalismo, a impunidade dos responsáveis pela crise financeira, sem falar das muitas disfunções do sistema, criaram um sentimento difuso de inquietação, propício àquilo que Richard Hofstadter chamou em 1964 de “estilo paranoico em política”. Segundo o historiador, “a vida política norte-americana com frequência serviu de válvula de escape para mentes animadas por um intenso sentimento de ira, [porque ela] age também como uma caixa de ressonância das identidades, dos valores, dos temores e das aspirações de cada um; ela é uma arena onde são projetados sentimentos e impulsos que têm muito pouca relação com as questões manifestas”.3 Daí a expressão grandiloquente e apocalíptica, e a obsessão da conspiração.
É nessa onda mal compreendida das elites que Trump escolheu surfar. Ele se beneficiou para isso de uma transformação em profundidade do universo midiático e do discurso político. Antes, a maior parte dos norte-americanos recebia suas informações cotidianas por meio de uma das três grandes redes de televisão (ABC, CBS e NBC). Um centrismo de boa qualidade se impunha, ainda mais porque a “doutrina do equilíbrio” (fairness doctrine) criava, até sua revogação em 1987, certo número de regras. Em troca do direito de emitir, esperava-se que o audiovisual se mostrasse “honesto, equitativo e imparcial” e se empenhasse em difundir diferentes pontos de vista. O movimento de desregulamentação ampliado por Ronald Reagan e as transformações tecnológicas fizeram o resto: a generalização da TV a cabo, do satélite e sobretudo da internet fez romper os diques que havia muito tempo tinham enquadrado o debate político. Sob o efeito da degradação do conjunto do mundo midiático, as fronteiras entre fatos e opiniões e entre informação e diversão não mais se aplicam.
A criação em 1996 da Fox News marcou uma virada. A rede de informação 24 horas fez sua glória com os escândalos que iriam marcar o segundo mandato de Clinton, em particular o caso Monica Lewinsky e a batalha pela destituição do presidente. A fórmula, que erigia o debate político como esporte de combate, alcançou sucesso espetacular. Com seu sensacionalismo, seus comentários de impacto e sua insistência em temas reacionários, a rede rapidamente se tornou a vaca leiteira do império midiático de Rupert Murdoch. Seu criador, Roger Ailes, não era jornalista, mas um estrategista político, especializado em golpes baixos, que tinha feito sua iniciação com Richard Nixon em 1968. Seu público preferido: os “pequenos brancos empobrecidos” cheios de raiva. A Fox News contribuiu para expurgar o lado republicano de seus últimos moderados e deslocar o universo midiático para a direita.
Se a rede mostrou o caminho, as publicações que dizem pertencer à Alt-Right, ou alternative right (“direita alternativa”), foram ainda mais longe no excesso e no descomedimento.4 Não é de surpreender que os propósitos de Trump não tenham deixado de seduzi-los. Foi justamente uma das figuras de proa dessa “mídia da sarjeta”, Stephen Bannon – ex-dirigente da Breitbart News, o site de informações que exibe sem complexo seu “nacionalismo branco” tingido de racismo, mas também de homofobia, misoginia, antissemitismo e islamofobia –, que o candidato republicano escolheu em agosto de 2016 para relançar sua campanha e depois, uma vez eleito, para ser seu diretor de estratégia. Bannon havia sido descrito por Andrew Breitbart, o criador do site, falecido em 2012, como o “Leni Riefenstahl5 do Tea Party”. Bannon prefere se comparar a Lenin: “Ele queria destruir o Estado, e é esse meu objetivo. Eu quero colocar tudo abaixo e destruir o establishment, ou seja, o Partido Democrata, o Partido Republicano e a imprensa conservadora tradicional”.6
A imprensa dita respeitável prossegue em seu declínio, enquanto a mídia sensacionalista, perfeitamente adaptada ao estilo paranoico, ganha cada vez mais terreno. Já Trump deve sua notoriedade e quem sabe sua carreira aos tabloides. Como explica seu biógrafo David Cay Johnston, ele sempre leu “religiosamente” essa imprensa, da qual conhece todas as engrenagens.7 Ele próprio liga para os jornalistas se fazendo passar por um empregado de suas empresas chamado John Baron ou John Miller e lhes oferece furos jornalísticos sobre seus sucessos profissionais ou suas conquistas femininas. Troca de favores: os artigos sobre o magnata turbinam as vendas, enquanto ele se beneficia de uma publicidade gratuita. Na eleição presidencial de 2016, a National Enquirer, revista especializada nas “fofocas quentes sobre as celebridades”, o defendeu abertamente, recusando-se a publicar artigos que pudessem prejudicá-lo.8
Compreende-se melhor nessas condições que Trump tenha conseguido manter uma imagem de rei Midas que transformava o chumbo em ouro enquanto seus negócios periclitavam. Ele chegou a envolver os bancos pedindo-lhes que não registrassem nos registros públicos as hipotecas que lhe concediam. Em 1990, eles se deram conta de que o valor líquido de Trump estava negativo: suas dívidas excediam seus ativos em US$ 300 milhões.9
O glamour veiculado pelos tabloides apresenta também a vantagem de ocultar os aspectos menos reluzentes de sua carreira. Foi o tristemente célebre Roy Cohn, braço direito do senador Joseph McCarthy durante a “caça às bruxas” anticomunista dos anos 1950, que guiou seus primeiros passos no universo sórdido do setor imobiliário nova-iorquino. Trump foi seduzido pela brutalidade desse conselheiro desonesto para quem os fins sempre justificavam os meios. Mais que um mentor, o advogado, falecido em 1986, foi para ele uma espécie de segundo pai, e o caráter implacável de seus métodos o marcou. Adepto de artimanhas legais, atento aos detalhes, ambicioso, Trump seguiu um percurso judiciário fora das normas. Estima-se que ele esteve implicado ao longo dos últimos trinta anos, como queixoso ou como acusado, em mais de 3,5 mil processos.10
Trump finalmente se tornou bilionário não em decorrência de seu talento como homem de negócios, mas graças ao reality show. Ao mesmo tempo produtor e astro dos programas The Apprentice [O aprendiz] e depois The Celebrity Apprentice [O aprendiz celebridades], ele fez entrevistas de emprego com candidatos e confiou-lhes missões, sem deixar de humilhá-los. Dominando maravilhosamente esse tipo de programa, ele sabe trabalhar com as expectativas e os medos do público. O ápice do processo reflete o método Trump. Neles se vê o magnata dizer ao perdedor, impiedosamente: “You’re fired!” (Você está despedido!”). O programa é sucesso em todo o planeta. A fórmula foi adaptada mundo afora. O homem de negócios embolsa os royalties, e a “marca Trump”, quer esteja associada a imóveis ou a produtos diversos, lucra com isso.
Tony Schwartz, autor da “autobiografia” de Trump The Art of the Deal [no Brasil, A arte da negociação], forjou um oximoro, “a hipérbole verídica”, que o presidente eleito tomou para si. As adaptações em relação à realidade constituem desde então apenas uma “forma inocente de exagero” que constitui um “meio eficaz de se colocar à frente”. É preciso saber provocar controvérsias “porque elas geram vendas. Mesmo um artigo crítico, que pode ser agressivo de um ponto de vista pessoal, eventualmente se mostrará muito proveitoso para seus negócios”.11 Ao longo dos próximos quatro anos, não vão faltar controvérsias.
Ibrahim Warde é professor associado da Fletcher School of Lawand Diplomacy, Tufts University (Massachusetts).