O uso medicinal da maconha é um passo para o fim da guerra às drogas?
A descriminalização das drogas a partir do enfoque de famílias que têm o seu acesso aos medicamentos restringido, tendo o seu direito à saúde evidentemente violado, é uma forma de chamar atenção para as consequências trágicas da atual política de drogas
No dia 28 de novembro, a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado aprovou o projeto de lei que permite o cultivo da cannabis sativa, planta que dá origem à maconha, para uso pessoal terapêutico, desde que haja prescrição médica. Para ser aprovado, o projeto de lei ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes de ser votado no plenário do Senado e posteriormente ser encaminhado para a Câmara dos Deputados para apreciação.
Desde 2015, o canabidiol não consta mais na lista de medicamentos proscritos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Esse foi o primeiro passo para que a substância pudesse ser comercializada como medicamento no Brasil. Em 2016, a Anvisa autorizou a prescrição e manipulação de medicamentos a base de cannabis e, em 2017, a cannabis sativa foi incluída na lista de plantas medicinais. No mesmo ano, foi aprovado o registro do primeiro remédio à base de maconha no Brasil, o Mevatyl, indicado para pessoas adultas portadoras de esclerose múltipla.
O primeiro registro do uso da cannabis como medicamento é de 2.700 a.C., na China antiga. No ocidente, esse uso foi popularizado na segunda metade do século 19, mas perdeu força com a criação de novos medicamentos e, posteriormente, com a implementação de leis restritivas e a ascensão da guerra às drogas.
No fim do século 20, as investigações sobre o uso terapêutico da planta ganharam visibilidade com a descoberta do sistema endocanabinoide, sistema de regulação neurológica que influencia uma série de processos biológicos, como o sono, a memória, a dor, o apetite, reações alérgicas e imunes, entre outras.
Hoje, entre as condições mais usadas para tratamento com a maconha estão: dores crônicas, espasmos musculares de esclerose múltipla, náusea e vômito (durante a quimioterapia), doença de Parkinson, convulsões epiléticas, doença de Crohn, dores articulares, dependência de opióides ou de crack.
Apesar dessas descobertas, ainda existe uma grande dificuldade na obtenção de dados e realização de pesquisas com a substância, que advêm do controle e proibição exercidos pela maioria dos países. Assim, muitos usos e potenciais da cannabis ainda não foram explorados.
No Brasil, o uso de drogas sem autorização para consumo pessoal, seja medicinal ou recreativo, ainda é criminalizado, conforme o artigo 28, da atual Lei de Drogas. Entretanto, já existem decisões judiciais que autorizam o cultivo da maconha para fins de tratamento médico. O documentário “Ilegal”, dirigido por Tarso Araújo e Raphael Erichsen, traz um retrato do tema, a partir da história de uma mãe de classe média, branca, de uma família tradicional, que luta para ter acesso ao medicamento para a sua filha, que tem epilepsia.
Tratar da descriminalização das drogas a partir do enfoque de famílias que têm o seu acesso aos medicamentos restringido, tendo o seu direito à saúde evidentemente violado, é uma forma de chamar atenção para as consequências trágicas da atual política de drogas.
Entretanto, devemos ressaltar que essa é apenas uma das faces do problema. Apesar do avanço da pauta do uso medicinal da maconha no Brasil, ainda muito pouco se discute sobre as famílias pobres e negras que vivem no ambiente do tráfico, sofrendo diretamente as consequências da chamada guerra às drogas.
Podemos afirmar, a partir dos 21 anos de acúmulo em pesquisas sobre políticas anti-drogas do Instituto Terra Trabalho e Cidadania, que a flexibilização da política de drogas não necessariamente implica em redução do encarceramento. Em 2016, o Projeto Gênero e Drogas lançou o infográfico “Política de Drogas e Encarceramento, um panorama América-Europa”. A pesquisa aponta que, dos 36 países analisados que flexibilizaram de alguma forma a política de drogas, 22 tiveram aumento da população encarcerada.
Na maior parte dessas legislações, havia a regulamentação do uso, mas em quase nenhuma havia a regulamentação do comércio de drogas. Esse resultado demonstra que a criminalização desse comércio é uma escolha política de criminalização do trabalho da parte mais vulnerável da população, e com a descriminalização apenas do uso medicinal ou recreativo de alguma substância específica, esse público não é atingido.
Nesse sentido, o ITTC entende que a política de drogas brasileira deve ser reformada estruturalmente para abranger a regulamentação do uso, produção e comércio de todas as drogas. Isso porque a legalização do cultivo da maconha medicinal, apesar de ser um incontestável avanço, ainda é insuficiente para alterar a atual realidade brasileira, em que os crimes relacionados ao tráfico de drogas são os que mais levam as pessoas à prisão. Uma política de drogas efetiva também passa por inserir essas pessoas no comércio legal, reparando as exclusões e violências vivenciadas pela guerra às drogas.
*Fernanda Nunes é advogada e pesquisadora do Projeto Gênero e Drogas, do ITTC.