O vírus que o Brasil não conseguiu eliminar
As circunstâncias atuais impostas pela pandemia têm colocado as mulheres à mercê de seu agressor
A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) tem alterado a rotina de grande parte das pessoas. Com o avanço da doença, a partir da transmissão comunitária, medidas de contenção social foram adotadas pelos governos como forma de combate à Covid-19. Entretanto, tais recomendações vêm causando severas repercussões negativas para uma parcela específica e significativa da sociedade: as mulheres.
Nesse cenário de fragilidade, um dos efeitos materializados pelo isolamento social, decorrente da pandemia, é o crescimento dos casos de violência contra a mulher que resultam, inclusive, no alargamento exponencial do feminicídio. Para muitas mulheres, as medidas emergenciais necessárias na luta contra o coronavírus aumentam o trabalho doméstico e criam uma série de restrições de movimento, limitações financeiras e insegurança generalizada. Estas, por sua vez, resultam no encorajamento dos abusadores, aumentando, sobremaneira, o risco de violência contra a mulher.
O machismo mata mulheres todos os dias. São mães, tias, amigas, vizinhas, colegas, pretas, brancas, famosas ou anônimas, não importam as características, mas sim, o gênero. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública destaca que em março e abril ocorreram 143 feminicídios (assassinato de uma mulher cometido por causa da identidade de gênero da vítima), um crescimento de 22,2% em relação a 2019.
Os estados em que o feminicídio mais cresceu foram o Acre (onde passou de um para quatro), o Maranhão (de seis para dezesseis vítimas) e o Mato Grosso (seis para quinze). Os números caíram em apenas três estados: Espírito Santo (-50%), Rio de Janeiro (-55,6%) e Minas Gerais (-22,7%).
Um dos fatores que explica essa situação é a convivência mais próxima dos agressores que, diante desse novo contexto, podem mais facilmente impedir a mulher de se dirigir a uma delegacia ou a outros locais que prestam socorro às vítimas, como centros de referência especializados, ou, inclusive, de acessar canais alternativos de denúncia, como telefone ou aplicativos.
Pandemia potencializa o que já existia
A ONU Mulheres divulgou em abril o relatório À sombra da pandemia: violência contra mulheres e meninas e Covid-19. O documento aponta que o aumento da violência contra a mulher é mundial. No Brasil não é diferente. O país ocupa o quinto lugar no ranking nesse tipo de violência.
O secretário-geral da ONU, Antônio Gutierrez, afirmou que “para muitas mulheres e meninas, a ameaça é maior onde deviam estar mais seguras, em suas próprias casas”. Mesmo antes, as estatísticas já mostravam que um terço das mulheres em todo o mundo sofre ou sofreu alguma forma de violência em suas vidas. De acordo com Gutierrez, algumas medidas precisam ser adotadas pelos governos. Dentre elas estão o aumento nos investimentos para serviços online, de forma a garantir que os sistemas judiciais continuem levando os agressores ao tribunal; e a instalação de avisos de emergências em farmácias e supermercados para que as mulheres busquem apoio sem alertar os agressores.
Em abril, quando o isolamento social imposto pela pandemia já durava mais de um mês, a quantidade de denúncias de violência contra a mulher recebidas no canal 180 deu um salto: cresceu quase 40% em relação ao mesmo mês de 2019, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDH). Porém, apesar do volume de denúncias, o aumento da violência doméstica ainda escapa das estatísticas dos órgãos de segurança pública.
A subnotificação é mais um drama da violência doméstica durante a quarentena. Ainda segundo o relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um aumento de 431% dos relatos de brigas – por vizinhos – nas redes sociais, entre fevereiro e abril. A importância da notificação é clara: ela insere-se como uma das estratégias primordiais para ampliar a visibilidade do fenômeno da violência, assegurando, assim, o planejamento e a implementação de políticas públicas de vigilância e assistência integral às vítimas.
Durante uma entrevista coletiva em abril, o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom, solicitou que o enfrentamento à violência doméstica fosse prioridade no mundo. “Pedimos que os países considerem os serviços de combate à violência doméstica como essencial, um serviço que deve continuar funcionando durante a resposta à Covid-19”, afirmou.
No Brasil, desde 2015, os programas de proteção à mulher sofrem com o descaso do governo federal. O orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi reduzido de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões, de acordo com levantamento do O Estado de S. Paulo. Entre esses anos, os pagamentos para atendimento às mulheres em situação de violência diminuíram de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil.
De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), nos primeiros meses deste ano, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos gastou apenas 0,13% dos R$ 400 milhões disponíveis no orçamento autorizado para 2020.
Problemática requer postura
Em 2020, especialmente, as vozes femininas ficaram mais potentes, diante da crise humanitária. O 8 de Março da pandemia se voltou às suas raízes históricas na luta das mulheres por direitos, por igualdade, e pela vida. Diante de um governo autoritário que retira os direitos e fortalece a banalização da agressão contra a mulher, é necessário, mais do que nunca que as mulheres se coloquem na linha de frente da resistência. A luta para a mudança de valores e comportamentos é diária, por isso se torna tão válido o enfrentamento aos padrões machistas e patriarcais que insultam, ferem e matam as mulheres.
A violência doméstica é uma das maiores violações dos direitos humanos. No Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) representou um grande avanço e deu coragem para as mulheres realizarem a denúncia. Mas nunca coibiu as agressões. Hoje, quatorze anos depois de sua criação, mulheres continuam sendo agredidas, violentadas e mortas todos os dias. As circunstâncias atuais impostas pela pandemia têm colocado as mulheres à mercê de seu agressor. Por isso, é preciso urgência para combater esse comportamento violento a portas fechadas.
Tanto a ONU Mulheres como a OMS e organizações feministas defendem que, durante a pandemia, a solução não é pôr fim ao isolamento social, mas, sim, manter ativos os serviços de proteção à mulher, aumentar o investimento em serviços online, declarar abrigos como serviços essenciais e oferecer suporte às ONGs locais que combatem a violência doméstica. E nesse sentido, é essencial o apoio financeiro às mulheres, tendo em vista que o impacto econômico da pandemia pode criar barreiras adicionais para uma vítima deixar o seu agressor. A luta é de todas e todos.
Wendel Limeira é graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba com habilitação em Rádio e Televisão.
Anne Nunes é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba e pós-graduada em Comunicação e Marketing Político.