Ofuscamentos das tensões pelo fetiche estatal na guerra da Ucrânia

ENTRE CONTOS DE FADAS E O LEVIATÃ

Ofuscamentos das tensões pelo fetiche estatal na guerra da Ucrânia

Acervo Online | Ucrânia
por Diego Pessoa Irineu de França
15 de março de 2022
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A fetichização tem predominando e até substituído a realidade na determinação das relações sociais e das visões de mundo. Estas idealizações estão longe de constituir a totalidade dos mecanismos utilizados pelos capitais – e pelos Estados nacionais como seus porta-vozes – em sua marcha expansionista

Uma ideia muito conhecida de Marx diz que, se a essência do real coincidisse com a aparência, toda investigação científica seria obsoleta. Nos últimos tempos, diante dos acirramentos das tensões que envolvem não apenas a Rússia e a Ucrânia, mas uma nítida afronta à supremacia ocidental, nunca foi tão necessário entender a complexidade do jogo de interesses nesse conflito.

O primeiro ponto é desmistificar qualquer tentativa de personificação que nos levaria ao campo nebuloso da máxima “vilão” oriental e “herói” ocidental. No jogo geopolítico, os Estados-Nações, ao se circunscreverem numa frenética competitividade internacional, assumem irrestritamente a manutenção do poderio e dos processos de acumulação dos capitais. Desse modo, a “guerra” poderia parecer estranha apenas aos observadores de um capitalismo idílico que atuaria apenas pelas vias do laissez-faire, da diplomacia e da democracia; jamais a uma concepção crítica reflexiva construída à luz da histórica concreta.

Entretanto, a fetichização tem predominando e até substituído a realidade na determinação das relações sociais e das visões de mundo. Estas idealizações estão longe de constituir a totalidade dos mecanismos utilizados pelos capitais – e pelos Estados nacionais como seus porta-vozes – em sua marcha expansionista. O Estado é essa espécie de Hidra que não só sofistica os mecanismos de reprodução capitalista, como também submete a maioria da população sob seu domínio aos frenéticos processos de concorrência do mercado, às mazelas da austeridade e da guerra.
Em seu incompleto “Para Além do Leviatã”, Mészáros elucida a compreensão sobre o Estado enquanto forma entranhada da tomada de decisão:

“[…] o Estado – desde o assim chamado despotismo oriental e dos antigos impérios até o moderno Estado Liberal – só pode ser o Leviatã que impõe seu poder estruturalmente enraizado a tomada de decisão societal. […] é preciso encontrar um modo de desenredar a humanidade de práticas arbitrárias de tomada de decisão ainda mais perigosas – potencialmente auto aniquiladoras em sentido literal – do estado Leviatã” (MÉSZÁROS, 2021, p. 49).

O filósofo húngaro aponta o risco iminente de identificar as dinâmicas autodestrutivas do capital como fossem naturais ou intrínsecas ao bem-estar do conjunto da sociedade. Por mais que o capitalismo tenha penetrado em diferentes esferas da vida, seus efeitos colaterais demonstram, aqui e alhures, seu completo compromisso com a reprodução do valor de troca, a despeito de garantir a reprodução da totalidade social. Não só a ampliação recente das desigualdades, mas o recorrente e perigoso negócio bélico sinaliza o abandono civilizatório do capital, independente do que os subterfúgios “nacionalistas” ou bem intencionados tentam parecer.

Para além de ato excepcional, a guerra é constantemente acionada como forma de reposicionamento estratégico, do combate aos adversários políticos (não importa se outrora aliados) e também como forma de absorção de capitais excedentes, seja com o financiamento da indústria bélica, seja na reconstrução do espaço destruído, isto é, opera-se a destruição criativa nos termos de Harvey (2020) ou a produção destrutiva conforme Mészáros (2015).

O que o conflito no Leste europeu parece ocultar, em meio à retórica de ataques personificados pelos monopólios da imprensa ocidental, é que a economia-política derivada de uma configuração de poder hegemonizada pelos EUA começa a ser questionada de maneira mais contundente pelos ventos asiáticos. Nesse sentido, esta guerra tem sinalizado que o poderio americano e ocidental em ditar as regras do jogo do mercado e do poder mundial ganha opositores de peso como a Rússia e a China. Desse modo, por mais que se fale das reprovações sobre a guerra, das sanções econômico-financeiras aplicadas à Rússia, dos impactos provocados no mercado mundial pelo preço do petróleo, gás natural ou trigo, pouco se tem apontado sobre o declínio geopolítico dos EUA, incapazes de ditar unilateralmente o jogo de poder, e a ascensão asiática encabeçada pela China, a qual tem na Rússia um dos principais aliados, tanto no campo econômico (como sugere a nova rota da seda) quanto no campo militar estratégico. Tal processo, longe de ser uma saída socialmente justa ou uma abolição da exploração, demarca uma reconfiguração do avanço desenfreado do capital.

guerra na ucrânia
(Foto: Pexels)

Oriente Médio

Após as guerras no Oriente Médio, parece limitado sustentar a retórica da liberdade e soberania nacionais, do combate ao inimigo iminente, na medida em que não só o financiamento de grupos e conflitos para desestabilizar Estados e derrubar governos não alinhados à Washington é uma prática muito recorrente tanto no século XX quanto no século XXI. Basta ver as tentativas na Venezuela, a invasão militar no Iraque (sem evidências de armas químicas), o apoio a tomada do poder por militares no Egito com a queda de Mubarak (retratado no filme The Square-2013), a interferência na própria Ucrânia, em 2014, destituindo um governo pró-Moscou etc.

Os que sonharam com “o fim da história” derivada do “triunfo” capitalista sobre as “ruínas soviéticas” devem acordar perplexos com Capitalismo que, sem ” antigo adversário”, tem levado a sociedade à beira do colapso, assombrando as mentes dos viventes contemporâneos com o fantasma apocalíptico da guerra.

China Mieville, em seu “Outubro”, nos dá uma boa metáfora para compreendermos os perigos da ilusão ideológica a qual todos são induzidos a se submeterem:

“Aqui, em meio à fumaça do sabiá do maldito diabo. No ruidoso reino dos demônios inferiores, eles disseram: não existe conto de fadas na terra. Eles disseram: o conto de fadas morreu. Ah, não creiam nisso, não creiam na marcha fúnebre” (MIÉVILLE, 2017, p. 91).

Em continuidade, Mieville alerta que o jornal que publicara o trecho acima não só havia mentido sobre a “morte dos contos de fadas”, mas que as classes trabalhadoras e oprimidas estavam vivendo um (talvez mais trágico).

Em busca de esperança para a maior parte da população trabalhadora que, por estarem imersa no jogo de autoilusões típicas da alienação capitalista, na sua marcha pelo poder, sacrificam as próprias vidas por um patriotismo historicamente deformado.

O cenário catastrófico contemporâneo da humanidade é análogo à metáfora da peça teatral “Formigas bebem Absinto no Armazém do Caos”[1], na qual retrata-se dois grupos de formigas divididos entre pretas e vermelhas num mesmo recipiente. Elas convivem harmonicamente até haver uma agitação repentina, intencionalmente provocada por uma “mão externa” no invólucro, de modo que imediatamente começam a se confrontar umas com as outras até a morte. Por não compreenderem a causa da agitação, transferem a culpa umas para outras. Em analogia às formigas, nos perguntamos: quem ou o que é o real responsável pelo acirramento das tensões no invólucro humano da guerra?

Há esperança? Recorramos novamente a citação de Mieville:

“Era uma vez um enorme dragão, que devorou os cidadãos mais corajosos e valorosos na neblina da loucura pelo poder. Mas um valente herói apareceu, um herói coletivo […]. Chegou na hora do fim da besta, o velho dragão vai se contorcer e morrer (MIÉVILLE, 2017, p. 91).”

O que resta para a humanidade como luz no Poço é se desvencilhar de uma concepção entranhada, a partir da qual cria-se a falsa consciência de que o Estado representaria o interesse universal das pessoas de determinado país tanto nos assuntos internos quanto externos. Esse fetiche estatal cria práticas sociais distorcidas como civis ucranianos induzidos (coagidos pela lei ou consenso) a um “patriotismo” suicida diante do poderio militar russo. Do mesmo modo, ofusca as tensões e a competitividade inerentes ao capital, que induz potências militares como a Rússia, com apoio de capitais financeirizados (alheios à pátria), a embarcarem numa aventura militar desumana sob os mesmos pretextos preventivos utilizados pelo ocidente (leia-se EUA), isto é, o combate à iminente “ameaça territorial”, “salvar vidas civis daquela nação” etc. Paradoxalmente, são sempre razões “nobres” que se encontram para matar.

O que parece óbvio é que o Ocidente sempre fez a retórica da legitimação da guerra, sendo bastante convincente enquanto as tensões estavam na periferia do sistema e que as vidas ceifadas não eram europeias. Agora entende-se essa reação do Ocidente: ele se vê no espelho através da ação bélica russa e ao invés de se reconhecer e realizar-se com sua imagem e semelhança, a repudia veementemente pois o fetiche é o que aparece e, em vez de contos de fadas e heróis, vê o Leviatã e a iminente barbárie humana da guerra que tanto alimentou.

Diego Pessoa Irineu de França é doutor em Geografia pela Unesp, professor da Educação básica de Geografia e professor substituto no curso de Geografia na UEPB. Membro da Comunidade Ecumênica e Ecológica Irmão Francisco de Assis.

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Referências Bibliográficas

MIÉVILLE, China. Outubro: História da Revolução Russa. São Paulo: Boitempo, 2017.

MÉSZÁROS, I. Para além do Leviatã: crítica ao Estado. São Paulo: Boitempo, 2021.

MÉSZÁROS, I. A Montanha que devemos conquistar. São Paulo: Boitempo, 20215.

HARVEY, D. Os Sentidos do mundo: textos essenciais. São Paulo: Boitempo, 2021.

 

[1] Peça Teatral encenada pela Cia Oxente, tendo a dramaturgia de Everaldo Vasconcelos e encenação de José Manoel Sobrinho.



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