Onde o bolsonarismo comprou, mas não levou
Longe de querer transformar a hierarquia, o plano bolsonarista prometeu mudar seus protagonistas – mas nem isso cumpriu
No Brasil, dois sistemas de relações sociais se encontram e invariavelmente se chocam diariamente nos nossos vários cotidianos: o primeiro, dos indivíduos, é aquele em que reina a lei, a regra impessoal, a formalidade igualitária entre sujeitos de inspiração republicana, em que o que há é sempre a pura aplicação da norma. O segundo, das pessoas, se justapõe ao primeiro pela sua pessoalidade, pela relevância das interações preservadas, pelas redes de contatos que, uma vez acionados, podem decidir a quem e como a lei do primeiro sistema deve ser acionada.
Esse argumento, construído pelo antropólogo Roberto DaMatta, em seu clássico Carnavais, Malandros e Heróis, de 1977, é uma elaboração mais original do que aquele de inspiração marxiana que sustenta que, no Brasil, o Estado não é só um instrumento de poder sob as mãos das classes dominantes em meio a luta que elas protagonizam, mas também é um patrimônio inequívoco dessas mesmas elites. O que se sobressai na análise de DaMatta é, sobretudo, uma mirada em direção às relações sociais do dia a dia, para além das instituições, ao modo como — na contramão daquela ideia de que a sociedade é reflexo do Estado —, o Estado é quem reflete a sociedade.
Daí, para o antropólogo, a importância de observar o divórcio que a vida social brasileira estabeleceu entre sociedade e Estado, de forma que todos os nossos problemas sociais sejam vistos como inevitavelmente possíveis de serem resolvidos pela intervenção estatal – e só por ela.

O sistemas dos indivíduos atravessa as categorias econômicas de análise, porque não se trata apenas daqueles mais pobres, sem nenhuma relação para salvá-los da regra estrita, mas de uma grande faixa de gente que vai dos empregados formalizados às classes médias suburbanas, dos trabalhadores informais — inscritos na lógica da “viração” — aos profissionais liberais desempregados, dos entregadores de comida por aplicativo, passando pelos universitários sub-assalariados das grandes cidades e chegando até aos pequenos produtores rurais e às classes precarizadas do interior do Brasil.
Já as pessoas, neste argumento, são mais fáceis de identificar, porque são elas que expressam demandas sociais por “respeito” ou “honra” em qualquer conflito cotidiano, assim como são as que, quando diante de supostos indivíduos, assumem-se portadores de privilégios que consideram incontornáveis, e não demoram a fazer valê-los alçando alguma relação pessoalizada dentro da regra formal – quando não elas próprias acionam a lei, pelas posições que ocupam, ao seu juízo particular.
Em meio à pandemia, não foram poucos os exemplos de pessoas (ou indivíduos momentaneamente dispondo-se como pessoas) que demonstraram na prática o argumento dos dois sistemas. Os mais acabados talvez tenham sido o daquela mulher que, vendo seu marido ser chamado de “cidadão” (o sujeito específico da impessoalidade) por um agente público em meio a uma situação de aplicação da norma de restrição de circulação, só pode responder: “Cidadão, não, engenheiro civil!”. O outro é mais recente: o desembargador caiçara que, pego em uma praia de Santos sem máscara, não apenas xingou o guarda que lhe advertia como ameaçou seu emprego por meio de uma relação pessoalizada (com o secretário de segurança do município).
Nas palavras de DaMatta, tudo se passa no Brasil de forma que “de um lado temos a ênfase numa lei universal (cujo sujeito é o indivíduo), sendo apresentada como igual para todos; e, de outro, temos a resposta indignada de alguém que é uma pessoa e exige uma curvatura especial da lei”.
A demanda bolsonarista
A análise de DaMatta, para além de sua atualidade escandalosa, permite compreender uma faceta particular do bolsonarismo como um fenômeno histórico e social germinada no meio de camadas de indivíduos cujo projeto não era individualizar o sistema, o que significaria democratizá-lo, mas justamente pessoalizá-lo ainda mais — só que para o benefício deles.
A demanda política do bolsonarismo, antes do seu principal produto ser alçado, adaptado e ascender à presidência do país, era pela inserção destas vastas franjas de indivíduos nas relações pessoalizadas que eles percebiam como tais, mas que, sentindo-se ou situando-se, de fato, fora delas, almejaram integrar-se às relações ao invés de modificar o sistema para destruí-as. Visto por essa ótica, o projeto eleitoral de Bolsonaro era mesmo o mais atraente, por não propor uma mudança estrutural, mas justamente em modificar os protagonistas da estrutura — e não à toa o próprio presidente incorpora seu projeto ao colecionar episódios e discursos em que exalta e reforça, seja na ironia ou na prática, a pessoa que é.
De certa forma, o plano foi bem sucedido. O bolsonarismo significou, para seus protagonistas, a chegada violenta ao discurso social de toda uma percepção de mundo que, acusando o sistema de relações pessoais reinante até então, propôs outro da mesma estirpe para ocupar o seu lugar, em um jogo cuja grande transformação era da ordem dos protagonistas, não da estrutura. É, de forma sucinta, o que está também na base do argumento “olavista” da dominância da esquerda liberal sobre as narrativas culturais do nosso tempo, substituídas que devem ser, para ele, pelas da direita. É assim, então, que às liberdades individuais o projeto bolsonarista prevê o controle dos corpos, à laicidade do Estado, o “Deus acima de todos” e, enfim, ao conhecimento produzido e distribuído pelos dispositivos científicos, o retorno à uma lógica pessoal em que a informação se torna relevante não por sua evidência, mas por quem é a pessoa a quem se deve acreditar.
Por outro lado, porém — e os bolsonaristas ainda não se deram conta disso (ou jamais vão admiti-lo) —, o plano de integrar as relações pessoalizadas, estabelecer contatos, aplicar, enfim, a lei sobre outros indivíduos e, mais do que isso, manter os outros indivíduos sob o mesmo regime de individualidade, não foi totalmente realizado. Da promessa de se tornarem pessoas, que Bolsonaro expressava antes de se eleger, o que ficou foi uma suposta dominância sobre as pautas chamadas vulgarmente de “costumes”, que obviamente não foram suficientes para pessoalizar os bolsonaristas – apesar de terem acirrado o conflito com pautas mais alinhadas à esquerda liberal.
No limite, muitos daqueles que queriam deixar de ser indivíduos e se tornarem pessoas ainda permanecem individualizados nas relações que travam em seus cotidianos, seja com o próprio Estado (nas suas demandas sociais e políticas) ou com outras pessoas que não perderam a condição. E, então, o equívoco deles está em supor que uma estrutura historicamente hierarquizante brasileira poderia ser modificada a partir de sua base em tão pouco tempo e após uma única mudança institucional.
Eis um dos dilemas do bolsonarismo e do seu produto hoje: diante da possibilidade de colocar novos protagonistas dentro do sistema de relações pessoais, individualizando os demais, o que Bolsonaro fez foi, na verdade, pessoalizar ainda mais os seus (os filhos, os amigos, os conhecidos, os contatos etc.). Se tornou apenas um exemplo definitivo, o projeto acabado do sujeito que os seus apoiadores almejaram ser um dia. Ainda que sua vitória eleitoral tenha significado, para essas camadas, a percepção de que suas demandas também haviam sido vitoriosas, e que a estrutura das relações pessoais passaria por uma grande substituição, o que de fato aconteceu foi a continuidade de um sistema que sempre funcionou muito bem no Brasil.
Aquele em que as pessoas querem, cada vez mais, ser pessoas, nunca indivíduos.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do departamento de Sociologia da USP.