ONU, seduzida pelo setor privado
Criado em 2010, o site Business.un.org estimula a constituição de parcerias entre as Nações Unidas e companhias privadas. Se a meta fixada é o financiamento dos objetivos da ONU, a mistura de gêneros se revela às vezes duvidosa. Além dos possíveis desvios, o que está em questão é a pauperização das agências da entidadeChloé Maurel
Com o estímulo das dificuldades orçamentárias, a cooperação da ONU com o setor privado intensifica-se, numa total falta de transparência. Já em 1995 o secretário-geral da organização, na época Boutros Boutros-Ghali, expressava no Fórum Econômico Mundial de Davos o desejo de “envolver as empresas multinacionais mais estreitamente com as decisões internacionais”.
Seu sucessor, Kofi Annan, seguiu alegremente pelo mesmo caminho, lançando em julho de 2000 o Pacto Global (Global Compact) das Nações Unidas, inspirado por John Ruggie, da Universidade Harvard.1 O projeto qualificava as empresas como “parceiras privilegiadas do desenvolvimento”, bastando apenas que se comprometessem com dez princípios baseados nos direitos humanos.2 O relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos intitulado “Negócios e direitos humanos: um relatório de progresso” (2000) chegava a afirmar que negócios e direitos humanos se reforçam mutuamente.
Porém, tal ligação com o mundo empresarial não consta nem da Carta das Nações Unidas nem da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não existe nenhum quadro jurídico claro para o Pacto Global, que hoje reúne mais de 7 mil empresas de cerca de 130 países. É verdade que um dispositivo de sanção foi criado, chegando mesmo a eliminar, em 2008, mais de seiscentas empresas que não fizeram sua comunicação de progresso na aplicação dos dez princípios do pacto.3 Mas não há qualquer mecanismo rigoroso que permita fiscalizar o cumprimento desses compromissos, e os parceiros têm apenas a obrigação de publicar um relatório anual. E podem, sob a aprovação do Escritório do Pacto Global, utilizar o logotipo do Pacto Global.
Tamanha mistura de estações dificulta a adoção de normas eficazes relativas à responsabilidade social das empresas – ambição surgida nos anos 1970, quando estouraram escândalos como o envolvimento da empresa de telefonia norte-americana ITT no golpe de Estado de 1973 no Chile. Nesse espírito, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) conseguiu aprovar em 1977 uma “Declaração tripartite de princípios sobre empresas multinacionais e política social”, que, no entanto, não tinha poder de obrigar a nada.
Alfabetização por mensagens de texto
Essas preocupações parecem muito distantes. Além do Pacto Global, desenvolvem-se parcerias entre as agências da ONU e empresas. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) colabora com a gigante francesa de cosméticos L’Oréal para premiar mulheres cientistas; com a Daimler AG, por meio do programa Mondialogo, que promove o “diálogo intercultural”; com a Samsung, para a proteção do patrimônio cultural material; com a Microsoft, em um programa de desenvolvimento econômico e social mundial; com a Procter & Gamble, que, em troca do fornecimento de absorventes íntimos para que jovens africanas possam ir à escola o ano todo, pode colocar o logotipo da Unesco em seus produtos…
Graças a esses acordos, a Unesco obtém os fundos necessários à realização de diversos programas, num momento em que seu orçamento ordinário está privado da contribuição dos Estados Unidos e do Reino Unido, insatisfeitos com a integração da Palestina à organização em 2011. Em um desses acordos, a Nokia fornece telefones celulares a populações africanas que acabam de ser alfabetizadas. Para remediar a falta de materiais de leitura, a Unesco envia mensagens de texto pelos celulares, com exercícios que os alunos devem também responder através de mensagens, como conta Elspeth McOmish, funcionário da Unesco. A eficácia da operação não está comprovada, mas parece que pelo menos a Nokia está conseguindo escoar seus modelos antigos.
E a tendência também se estende a outras agências. Desde o início de seu mandato à frente da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1998, Gro Harlem Brundtland promoveu a aproximação com laboratórios privados. Durante a crise causada pelo vírus H1N1 em 2009-2010, a OMS seguiu os conselhos de seu Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas (Sage − Strategic Advisory Group of Experts), cujos membros têm, quase todos, estreitos laços financeiros com a indústria farmacêutica. Além disso, representantes dos laboratórios participam como “observadores” das reuniões do Sage. O alerta de pandemia lançado pela OMS permitiu às grandes empresas do setor obter entre US$ 7,5 bilhões e US$ 10 bilhões de lucros.4 Além da gestão da gripe A, há muitas outras áreas em que a OMS atualmente trabalha em estreita ligação com a indústria farmacêutica, particularmente na luta contra a aids,5 o que inevitavelmente traz conflitos de interesses.
Por meio dessas várias parcerias – que podem chegar a uma verdadeira terceirização de setores inteiros de seus programas a empresas – e do recurso generalizado a especialistas ligados ao setor privado, não estaria a ONU em vias de “privatização”, e com o apoio das grandes potências?6
Chloé Maurel é doutora em História Contemporânea e autora de Histoire de l’Unesco – Les frente premières années (1945 -1974) / {História da Unesco – Os primeiros 30 anos}, L’Harmattan, Paris, 2010.