Orçamento diante da crise
A proposta orçamentária para o próximo ano contempla despesas primárias de R$ 750 bilhões, excluídos os juros. Mas em função das prováveis perdas que virão com a crise econômica, a União pode cortar até R$ 19 bilhões em investimentos e nos reajustes salariais do funcionalismoAmir Khair
A crise internacional poderá trazer consequências importantes para o setor público brasileiro. Em especial para a União, que arrecada 70% de todos os tributos, e para os Estados e municípios, que recebem 17% desse montante por determinação constitucional. Caso haja queda na arrecadação, todos os níveis do governo serão prejudicados.
A crise atual teve origem nos Estados Unidos, com o rompimento da bolha imobiliária criada pela abundância de créditos sem as devidas garantias, impactando toda uma extensa cadeia de títulos dos mercados financeiros, dentro e fora daquele país. Boa parte dos títulos emitidos, assim como as instituições que operavam esses créditos, era bem avaliada pelas agências de classificação de risco, o que evidenciou a precariedade dessas análises.
O preço dos imóveis começou a despencar, e seus titulares, que tomaram empréstimos dando como garantia a hipoteca do imóvel, tornaram-se inadimplentes e optaram por devolvê-los – uma vez que o valor do imóvel ficou abaixo do valor da hipoteca – ou foram obrigados a fazê-lo por imposição dos credores.
Consequentemente, as instituições financeiras começaram a sofrer problemas de liquidez e confiança. Muitas quebraram, provocando sérios danos ao sistema financeiro norte-americano. Buscando atenuá-los, o então governo George W. Bush adotou medidas de socorro pontuais, que se mostraram insuficientes.
Na sequência, por problemas domésticos e pelo impacto decorrente da interconexão globalizada entre os sistemas financeiros, a crise de liquidez e de confiança foi se espalhando por diversos países da Europa e da Ásia, impondo aos governos uma articulação em busca de soluções.
Retração econômica
O debate travado entre essas nações revelou a falência das soluções de mercado, tornando imperativa uma forte interferência dos Estados por meio de políticas contracíclicas, que reduziram os juros e destinaram recursos públicos para compra de ações dos principais bancos e seguradoras. Em alguns países, a iniciativa significou a aquisição de uma parte dos créditos “podres” e a ajuda direta a algumas grandes corporações do setor produtivo.
Após injeção de muitos trilhões de dólares, os mercados financeiros mais relevantes parecem estar sendo controlados, mas o pânico gerado, a desconfiança e a perda de riqueza financeira por boa parte dos agentes econômicos ocasionaram a retração na oferta de crédito e na disposição para compras e investimentos, levando à segunda fase da crise, qual seja, a dos reflexos na economia real: derrubada generalizada de preços, estreitamento do comércio internacional e retração econômica, com ameaças de deflação – consequências observadas especialmente nos Estados Unidos, na Europa e no Japão.
O fato é que a crise, inicialmente de natureza financeira, alcançou também o setor produtivo, instalando-se em quase toda a economia mundial. Os países emergentes foram atingidos com menor intensidade, pois parecem ter maior capacidade de defesa. Nos anos anteriores, eles acumularam reservas internacionais elevadas, além de, em muitos casos, terem efetuado ajustes macroeconômicos importantes e estabelecido estratégias de desenvolvimento econômico com foco também nos seus mercados internos, em expansão. Assim, enquanto nos últimos cinco anos os países desenvolvidos cresceram a taxas anuais de 2%, os emergentes chegaram a 7%.
E, no entanto, até nestes últimos já se observam impactos na redução da oferta de crédito, estreitamento do mercado externo e forte queda no preço das commodities – que para muitos constituem a fonte principal de exportações. Como resposta, esses países também demonstram uma tendência à adoção de políticas contracíclicas, para manter em bom nível o mercado interno de consumo.
O Brasil apresenta algumas vantagens. Seu sistema financeiro é saudável, tem autossuficiência energética, amplo leque de matérias-primas básicas e, especialmente, de água e alimentos, ocupando posição de destaque internacional na agricultura e pecuária.
Recentemente, desenvolveu uma diversificação territorial nas exportações, reduzindo a participação dos Estados Unidos e da Europa e elevando o comércio com a Ásia, América Latina, Oriente Médio e África, regiões que experimentam vigoroso crescimento econômico. Além disso, tem folga para redução da taxa de juros e para utilização dos depósitos compulsórios dos bancos no Banco Central.
Entretanto, caso a crise internacional impacte o ritmo do crescimento econômico do país, isso pode afetar as finanças públicas.
Em períodos de ascensão econômica, a arrecadação do setor público tende a crescer acima da média da economia geral, fixada pelo Produto Interno Bruto (PIB). O motivo é que o lucro das empresas e a massa salarial evoluem mais do que o PIB. Verifica-se também a redução da inadimplência e da sonegação no pagamento dos tributos, pois as condições financeiras dos contribuintes são melhores.
O inverso ocorre quando há redução no crescimento econômico. Cai a arrecadação e aumenta a demanda por educação, saúde e assistência social. Há uma procura maior pelo seguro-desemprego, e as aposentadorias do Regime Geral podem ser antecipadas.
Assim, os municípios sofrem com a diminuição da arrecadação própria e com a queda das transferências de recursos da União e dos Estados, recursos esses que representam em média 70% de sua receita.
Os Estados, por sua vez, são afetados por meio do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), responsável por cerca de 80% da arrecadação.
>A redução de tributos também prejudica a União, que é pressionada ainda por municípios e Estados a fazer transferências voluntárias (não obrigatórias pela Constituição). Além disso, diante de crises como esta, as despesas tendem a aumentar com as políticas fiscais contracíclicas.
O principal gasto da União é com o Regime Geral da Previdência Social, que segue parâmetros definidos até 2010 para garantir o crescimento real do salário mínimo. O dispêndio com pessoal, porém, deve ser elevado além do planejado devido a alguns acordos salariais já definidos. Há ainda o pagamento dos juros, que depende da política monetária – esta com o foco no controle da inflação, sob metas estabelecidas.
Perspectivas
A proposta orçamentária para 2009 contempla despesas primárias de R$ 750 bilhões, excluídos os juros. O governo federal calcula que deverá perder, em relação às previsões originais, R$ 10 bilhões em arrecadação de tributos federais e R$ 5 bilhões em royalties e participações especiais provenientes da exploração de petróleo – esta última redução devido à queda do preço do barril, previsto em US$ 120 em 2009.
A proposta orçamentária previu expansão de 4,5% para o PIB em 2009, com expectativa de arrecadação de R$ 662 bilhões. Mas, segundo o governo, a expansão do PIB deve ser reduzida para 3,8%. Diante de prováveis perdas, a União pode cortar até R$ 19 bilhões em investimentos e nos reajustes salariais do funcionalismo, ainda não transformados em lei. No entanto, deverá manter os R$ 21 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos programas sociais.
De qualquer forma, deve ficar claro que o Brasil tem instrumentos para ajudar no enfrentamento da crise. Em primeiro lugar, a política monetária poderia acompanhar o padrão e a tendência das taxas básicas de juros dos países emergentes, em média de 5% ao ano, o que ajudaria a destravar o crédito e reduzir as taxas de juros ao tomador final, estimulando o consumo, o investimento e a produção. Teoricamente, uma queda gradual dos atuais 13,75% para 5% possibilitaria uma economia de cerca de R$ 100 bilhões por ano para o governo federal, abrindo espaço para políticas contracíclicas mais potentes e beneficiando a redução da dívida líquida do setor público. Esse gradualismo deve ponderar a estrutura de ativos e passivos do sistema financeiro e as necessidades do balanço de pagamentos do país.
A gestão de receitas e despesas poderia ser aprimorada. No caso das receitas, a implantação gradual da nota fiscal eletrônica, da escrituração eletrônica e de cadastros integrados contribuirá para a redução da sonegação e a simplificação do sistema tributário. A desoneração tributária para as micro e pequenas empresas e, especialmente, para as pessoas de renda média e baixa constituirá poderoso instrumento fomentador do desenvolvimento, com consequências para a geração de empregos e redução da informalidade.
No caso das despesas, a gestão das compras por pregão eletrônico e presencial e dos contratos com terceiros trará reduções significativas nas despesas públicas, com melhoria na qualidade e na quantidade de serviços, compras e obras.
Por fim, é preciso considerar que as questões sociais não podem ser agudizadas em decorrência de políticas de enfrentamento da crise econômica. Certamente, a opção por investimentos em políticas sociais e ambientais favorecerá o desenvolvimento com democracia e justiça social.
Em síntese, desde que a crise internacional não apresente novos desdobramentos de amplitude e profundidade inesperados, há espaço para que o Brasil consiga, mantendo o foco na questão social, enfrentá-la com sucesso e com um nível satisfatório de crescimento. Para tanto, é imprescindível pragmatismo e realismo econômicos, com atenção nos principais indicadores macro e microeconômicos e no aperfeiçoamento dos instrumentos regulatórios e de monitoramento dos mercados externo e interno.
Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela FGV. Foi secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo, consultor do BID e presidente da Abrasf. É consultor na área fiscal, orçamentária e tributária.