Os campos de refugiados podem decidir a guerra
Tanques, artilharia,, aviões bombardeiros. Enquanto os governos americano e paquistanês aliam-se na guerra contra a Al-Quaeda-Talibã, 1 milhão de refugiados vivem em tendas de lona escaldantes, sem água potável ou postos de saúde. A operação desligada da preocupação com a população dificilmente enfraquecerá o Talibã
Finalmente na semana passada o exército Paquistanês iniciou operações militares em grande escala no vale de Swat, na Província Fronteiriça do Nordeste (NWFP) do Paquistão, infestada de Talibãs.
Tropas regulares e paramilitares estão usando tanques, artilharia, morteiros, helicópteros armados e aviões bombardeiros, para atacar as posições do Talibã e suas unidades móveis. Todos os dias, porta-vozes militares anunciam a morte de dezenas de Talibãs, mascarando as perdas do exercito e as mortes civis.
Agencias internacionais de ajuda dão conta de meio milhão de refugiados saídos das áreas atingidas pelo conflito e se calcula que outro meio milhão virá rapidamente, conforme a luta se intensifique. Esta é a maior migração em massa na história do Paquistão, ela demanda uma enorme ajuda financeira e administrativa que, no entanto, ainda não se vislumbra.
Os mais cínicos notarão que a ação militar, adiada por muito tempo, foi lançada quando Asif Zardari, presidente do Paquistão, se encontrava em visita oficial em Washington. Ele estava negociando ajuda econômica e apoio político para seu governo junto à administração de Obama, que prometeu 1,9 bilhões de dólares em ajuda econômica, humanitária e para ações de combate ao terrorismo, além de outros 600 milhões para necessidades militares nos próximos dois anos. O governo norte americano está no meio de uma tentativa de forjar uma nova estratégia para a região e tem pressionado o exército e o governo do Paquistão para que tomem fortes medidas militares contra o Talibã.
É digno de nota que, quando o General Pervez Musharraf, líder do Paquistão entre 1999 em 2008, se dirigia a Washington para negociar ajuda militar e econômica, ele sempre oferecia algumas “migalhas” aos norte americanos na forma de um recém-capturado membro da Al-Qaeda ou alguma ação militar em pequena escala contra o Talibã, em alguma área remota.
O governo de Washington ficou muito incomodado quando, contrariando promessas, o governo de Zardari assinou um “acordo de paz” no Swat com o Talibã, em 28 de fevereiro e obteve sanção parlamentar para o acordo em março.
Conforme previsto por críticos domésticos e internacionais do acordo, ele unicamente serviu para encorajar o Talibã a se expandir nos distritos adjacentes de Buner e Baixo Dir, conseguindo novos recrutas e conquistando territórios. O avanço foi rápido em áreas a apenas 100 km da capital Islamabad e a estratégica rodovia de Karakorum, que se conecta com a China acompanhando a antiga Rota da Seda. Tanto é que surgiram temores, domésticos e internacionais, de que o governo poderia entrar em colapso e o país poderia cair numa guerra civil em grande escala, colocando em perigo o comando e controle de seu armamento nuclear estratégico.
Na semana passada, o Presidente Barack Obama, a Secretária de Estado Hilary Clinton, o Presidente do Comitê da Junta Militar Almirante Mike Mullen, o Presidente do Centcom General David Petreaus, o chefe da CIA Robert Gates, e outros medalhões do Senado e do Congresso, insistiram em dois pontos com o Presidente do Paquistão Asif Zardari e o Presidente do Afeganistão Hamid Karzai.
Novo rumo: aposta na coalizão
Primeiro, que as regras do relacionamento com os Estados Unidos mudaram, haverá uma responsabilização formal “daqui por diante” nesse relacionamento, no qual objetivos comuns serão listados e o progresso na guerra contra a Al-Quaeda-Talibã, no Afeganistão e Paquistão, será monitorado, em troca de ajuda política e econômica.
Segundo, eles tentaram inculcar um pouco de bom-senso nos dois líderes, que tem adquirido uma reputação por corrupção e má administração. Eles devem organizar as coisas em casa, implantar governança nos seus povos e, principalmente, dar a mão à oposição em casa, aos seus amigos internacionais e seus vizinhos, para enfrentar o inimigo comum, a Al-Quaeda-Talibã, que ameaça mergulhar a região na loucura, anarquia e guerra. O que começou como a guerra da Al-Quaeda-Talibã contra os Estados Unidos em 11/9 se transformou, desde então, numa guerra doméstica do Afeganistão e do Paquistão. Certamente, no Paquistão, essa obra de organizar as coisas em casa tem se materializado muito lentamente.
A “mídia livre” do Paquistão é diretamente responsável por enganar o povo e criar uma enorme onda de simpatia pelo Talibã e hostilidade para com o governo de Zardari. A poderosa mídia eletrônica é relativamente jovem, tendo se tornado uma realidade na última década. Apresenta uma inclinação para excessos de opinião e emoções, sem muita autocrítica. Ela acha que oposição, pela mera oposição, é uma atividade nobre, porque tudo o que o governo faz, por definição, é errado, hipócrita ou descabido (é claro que isto é uma ótima receita comercial).
Sua percepção religioso-nacionalista foi formada pelas campanhas de retorno ao fundamentalismo Islâmico das décadas de 80 e 90, que inundaram os livros educativos com noções de “Jihad Islâmica na Kachemira ocupada pela Índia”, assim como a teoria de ódio de “duas-nações” Hindu-Muçulmana e que invadiu o discurso lingüístico do dia-a-dia. Seu anti-Americanismo foi forjado pelas injustas políticas Americanas com relação aos Muçulmanos em geral e Paquistaneses em particular depois de 1989, quando os Estados Unidos alcançaram seus objetivos contra a União Soviética no Afeganistão e “abandonaram” o Paquistão. A partir de então, o Paquistão se tornou “o estado que sofre mais sanções no mundo”, por manter seu programa nuclear.
As guerras do Iraque e a Intifada Palestina invadiram também cada lar, graças à CNN e a televisão via satélite. Essa “mídia livre” criou uma onda de simpatia e apoio aos terroristas da Mesquita Vermelha (retratados por alguns como uma espécie de heróis medievais por desafiar os Estados Unidos e o Exercito) no coração de Islamabad, em 2007, e colocou o exercito e o governo na defensiva. Essa mídia também transformou essa guerra na “guerra dos Estados Unidos” por dizer que se os Estados Unidos se afastassem da região, o Talibã e a Al-Quaeda se evaporariam e tudo voltaria à paz. Finalmente, essa “mídia livre” amealhou apoio para todos os perigosos acordos de paz entre o Talibã e o exército, ou o governo, especialmente o último acordo realizado no Swat, em 28 de Fevereiro, que permitiu ao Talibã explorar o espaço político e o apoio público para ocupar grandes áreas da NWFP.
Felizmente, porém, três acontecimentos recentes ajudaram a mudar o rumo.
Em primeiro lu
gar, a flagelação pública de uma menina, no início de Março, no Swat, mostrada em todos os canais de televisão, e sua defesa raivosa pelos talibãs como um “ato islâmico”. Em face da resistência da opinião pública e até mesmo do religioso ulemá (clero) no resto do país, esta situação criou uma onda de revolta contra eles e expôs a chamada Sharia como um credo estreito e tribal disfarçada de Islã.
Segundo, os porta-vozes do Talibã têm insultado tudo o que é sagrado para a mídia e a sociedade civil. Eles dizem que a constituição do Paquistão, a lei, a sociedade civil, a democracia, as eleições e as liberdades pessoais e institucionais, são todas anti-Islâmicas.
De fato, as ameaças do Talibã de calar e punir a mídia de acordo com sua versão da Sharia tem enchido os jornalistas de medo e raiva. Dez jornalistas morreram nas regiões tribais, apenas no ano passado, nas mãos do Talibã ou no fogo cruzado entre eles e os militares.
Terceiro, as pessoas que estão escapando das regiões ocupadas pelo Talibã, nas Áreas Tribais de Administração Federal (FATA) e a NWFP, e inundando os campos de refugiados, também estão cheias de raiva e medo e isso não pode ser negado pela mídia. Raiva contra o governo e o exército por abandoná-las frente à ameaça do Talibã e, também por não tomarem medidas adequadas para protegê-las depois que as ações militares se iniciaram.
Pois bem, se este, então, é o momento de reavaliação dos fronts domésticos e externos no Paquistão, quais são os itens críticos de sua agenda?
Primeiro, claramente, a oposição, o governo, o exército e a mídia têm que estar do mesmo lado. Esse objetivo será conseguido em grande parte, se o maior partido de oposição, a Liga Muçulmana Paquistanesa, liderada pelo ex-primeiro-ministro Nawaz Sharif, se unir à coalizão federal de governo e concordar em compartilhar a responsabilidade “daqui por diante” na guerra contra a Al-Quaeda-Talibã.
Mas isso ainda não aconteceu. O Sr. Sharif insiste em certas emendas constitucionais com o objetivo de enfraquecer o poder do Presidente Zardari e garantir eleições no meio do mandato.
Os norte americanos estão pressionando o Sr. Sharif a juntar se a um governo de unidade, mas ele vem se esquivando. Ele propôs uma Conferência de Todos os Partidos para discutir todos os assuntos. Essa é uma receita mais para a discórdia do que para o consenso, visto que alguns pequenos partidos religiosos e anti-norte americanos se opõem a qualquer ação militar contra o Talibã.
Segundo, os Estados Unidos tem que pressionar Hamid Karzai para que este pare de se pronunciar contra o Paquistão e para que faça esforços para incorporar líderes da etnia Pashtun, moderados e pró-Paquistaneses, no seu sistema político, para que o Paquistão possa se sentir seguro na sua fronteira oeste.
Terceiro, a Índia tem que resolver suas disputas com o Paquistão com generosidade, para que se possam dissipar os receios e desconfianças deste último e ele possa se focar no seu inimigo interior, o Talibã.
Mas a Índia não tem ajudado muito, colocando pré-condições para a paz, incluindo garantias de que não haverá exportação de terrorismo do Paquistão para a Índia.
Considerando que o Paquistão é vítima do mesmo tipo de terrorismo, ele não pode dar essas garantias. Como conseqüência, o exército Paquistanês não está propenso a mover tropas da sua fronteira leste, com a Índia, para o novo teatro de operações contra o Talibã, na fronteira leste, com o Afeganistão. Tampouco haverá uma mudança na percepção da Índia, vista como uma ameaça a longo prazo, mudança que é uma pré-condição para que a segurança interna passe a ser vista como o principal assunto do estado.
Quarto, e mais crítico, é o problema do dilúvio de refugiados que terá que ser administrado ainda neste período de conflitos. O primeiro Ministro do Paquistão Yousaf Raza Gilani declarou que a operação no Swat é uma luta pela “sobrevivência do Paquistão”. Mas o Paquistão ainda poderá ser derrotado nessa luta pela crise que vem se desenvolvendo nos campos de refugiados da NWFP.
Os campos de refugiados
Quando o governo da Província pediu à população das áreas afetadas que deixasse suas casas para que o exército pudesse ter uma chance de lutar contra o Talibã sem muito dano colateral, a população concordou rapidamente. Mas a recepção que eles estão tendo nos campos de refugiados está se transformando num trauma que eles não previam.
Os campos foram organizados em várias partes, às pressas, e os relatórios não são nada animadores. Cerca de 500.000 pessoas saíram das áreas alvo, juntando-se a outras 500.000 que já tinham escapado da área de conflito anteriormente e tinham sido absorvidas em várias partes da província, inclusive nos antigos campos abandonados, utilizados pelos refugiados Afegãos no passado. Isso soma um milhão de refugiados. O governo da NWFP projeta uma figura de 1,5 milhão se a guerra no Swat se tornar uma guerra de atrito.
O governo federal só deu Rs$ 1 bilhão1 (10 milhões de Euros) ao governo da NWFP até agora. Isso não é nada. Mas o que mais falta é organização e conhecimentos especializados. Nenhuma das lições aprendidas com a experiência do terremoto de 2005, em Azad Kashmir e partes da NWFP, foram utilizadas. Nem a obtida pelo manejo dos refugiados Afegãos nos últimos 30 anos.
Os sofrimentos dos primeiros refugiados a chegar aos campos de Swabi e Mardan é patético. Vindos de áreas frias eles são afetados duramente pelo clima quente. Os campos são montados em campo aberto, contando unicamente com tendas de lona para proteger do sol de verão. Apesar das alegações dos encarregados, não há água limpa potável, que é o que os refugiados necessitam no calor escaldante ao qual não estão acostumados. As crianças são especialmente afetadas por essas novas condições, mas não existem postos de saúde ou assistência médica nos acampamentos.
Até o registro é problemático. Devido ao fato que cada família tem que obter um passe especial antes que lhes sejam fornecidas acomodações, centenas fazem fila em frente a um único homem que as registra e lhes fornece o passe. Até agora, somente 100.000 foram registradas. Só isso já representa sofrimento. Tudo isso poderia ser evitado. O planejamento das ações militares deveria ter sido acompanhado de planos detalhados para abrigar a população afetada. Mas nada diss
o aconteceu.
O assim chamado ‘“consenso nacional” contra o Talibã é, por sorte, agora, bastante abrangente para que possa definir a política. Mas o sofrimento dos campos de refugiados vai, não somente, fortalecer o Talibã, mas vai também erodir o consenso nacional. Nenhuma figura política importante visitou os campos de refugiados e a comunidade internacional ainda não se apercebeu da crítica natureza política desta tragédia humana.
*Najam Sethi é editor-chefe de Daily Times Pakistan.