Os direitos LGBT sob o governo Bolsonaro
Mobilizando valores associados à defesa da família tradicional, à heterossexualidade compulsória e a uma visão de mundo religiosa, as bandeiras do presidente eleito refletem o êxito de um pânico moral há tempos alimentado e que coloca em linha de tiro, precisamente, a comunidade LGBT
O Brasil é comumente representado como um país que não apenas tolera, mas também proclama e até mesmo valoriza suas diversidades. Prevalece, no senso comum e em alguns saberes especializados, a narrativa autocomplacente de uma nação paradisíaca construída pelas misturas e diferenças.
Afinal, a maior instituição brasileira, apesar de todas as crises que insistem em nos assolar, segue sendo o Carnaval. E não qualquer um, mas o melhor do mundo. Imaginamo-nos um povo avesso a distâncias. Carnavalizamos nossos desejos e identidades. Mulheres se vestem de homens e homens se fantasiam de mulheres enquanto dura a festa momesca. Aqui, do lado de baixo da linha do Equador, não há pudor ou pecado e as fronteiras morais são meio borradas. Tanto é assim que realizamos anualmente a maior Parada do Orgulho LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) do mundo, na cidade de São Paulo.
Ainda que encarnem parte significativa daquilo que construímos como nossa verdade, tais discursos têm também por consequência o apagamento de hierarquias e exclusões que estruturam e atravessam nossas experiências sexuais, afetivas e identitárias. Basta lembrar, para colocar em perspectiva essa “ideologia de gênero” idílica, que, apenas em 2018, de acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), contabilizou-se o assassinato de 420 pessoas LGBT por crimes de ódio. Essa cifra, que nos coloca no topo dos rankings internacionais de países que mais matam LGBTs, é certamente subestimada. Isso porque o Brasil não conta, até hoje, com um sistema oficial e estatal de denúncia.
O ano de 2018 parece ter contribuído com um novo ingrediente para esse cenário LGBTfóbico: a ascensão meteórica e a vitória, nas eleições presidenciais, de Jair Bolsonaro.
Velho conhecido das minorias sexuais e de gênero, Bolsonaro sempre foi tido como um político de nicho bastante específico, com quase trinta anos de atuação parlamentar dedicada a sustentar posições extremistas. Dotado de uma forma de atuar caricata, sempre à margem do centro do poder e com uma expressão pública irrelevante até muito recentemente, ele conseguiu se viabilizar como a principal alternativa eleitoral.
A eleição de Bolsonaro, em uma campanha baseada em discurso de ódio com fake news, tem despertado diversas análises, ainda inconclusivas. Certamente há variáveis explicativas que vão desde a violência estrutural naturalizada na formação da sociedade brasileira até o colapso institucional da Nova República, passando pelo antipetismo alimentado pela mídia e por setores do Judiciário em uma cruzada – um tanto seletiva – contra a corrupção nos últimos anos. Todos esses fatores são decisivos, mas uma dimensão sobre a emergência da variante tupiniquim do conservadorismo atual ainda é negligenciada no debate público: sua íntima associação com uma política moral e sexual.
Mobilizando valores associados à defesa da família tradicional, à heterossexualidade compulsória e a uma visão de mundo religiosa, as bandeiras do presidente eleito refletem o êxito de um pânico moral há tempos alimentado e que coloca em linha de tiro, precisamente, a comunidade LGBT.
Um dos alvos privilegiados dos ataques verbais de Bolsonaro antes mesmo de ele ser eleito já eram os homossexuais. “Ter filho gay é falta de porrada” e afirmações afins abundam nas intervenções públicas do ex-deputado. São declarações que colocam em xeque, sem nenhum pudor, o direito de existir de um segmento da população, além de respaldar os já alarmantes índices de violência letal contra LGBTs.
Não à toa, o resultado eleitoral despertou uma severa apreensão da população LGBT em relação aos possíveis resultados dessa vitória. Homossexuais correram aos cartórios para registrar casamentos; pessoas trans fizeram o mesmo para retificar seus documentos. Tudo com receio de que os poucos direitos existentes fossem imediatamente revogados com a mudança na Presidência.
Vale lembrar que o campo das políticas públicas concebidas e implementadas pelo Poder Executivo nos diferentes níveis federativos tem sido uma arena privilegiada para os avanços na garantia dos direitos LGBT. Isso se deve a uma marcante omissão do Poder Legislativo em torno da matéria, sobretudo por conta da hegemonia de uma bancada fundamentalista religiosa, ainda mais fortalecida sob o governo Bolsonaro, com capacidade de veto em temas moralmente sensíveis. É sintomático, nesse sentido, que até hoje não tenha havido, no Congresso Nacional, a aprovação de uma única lei específica em favor dos direitos LGBT.
Outra arena privilegiada na trajetória da cidadania sexual é o Poder Judiciário. Em um momento de progressiva judicialização da vida social e vocacionado para uma atuação contramajoritária na proteção dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, o sistema de justiça tem sido encarregado cada vez mais da tarefa de fazer avançar os direitos LGBT. Exemplo disso é que os primeiros casos de reconhecimento jurídico da união formada por casais homossexuais aconteceram, por decisões judiciais inovadoras, em meados dos anos 1990. Isso não se deu sem resistência, considerando o caráter conservador dos membros do elitizado e corporativo Judiciário brasileiro. Instâncias superiores frequentemente revogaram os efeitos de decisões de juízes progressistas.
Essa batalha jurisprudencial só se resolveu com a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida em maio de 2011, quando, em uma ação de alcance abstrato e maior amplitude, foi reconhecida a união estável homoafetiva. Diante da resistência de certos cartórios para formalizarem os pedidos mesmo após a referida decisão do STF, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 175, que determinou não apenas o dever dos tabeliões de celebração da união estável, mas também do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Mais recentemente, em março de 2018, foi julgado procedente no STF, por maioria, o direito à identidade de gênero das pessoas trans (travestis, mulheres e homens transexuais), possibilitando a alteração de prenome e sexo em seus registros civis diretamente nos cartórios, sem necessidade de laudo médico, autorização judicial ou cirurgia de redesignação sexual, como se vinha exigindo até então.
Tais garantias de casamento homoafetivo e de mudança de prenome e sexo inserem o Brasil em uma seleta e pequena lista de países que asseguram, ao menos oficialmente, os principais direitos de orientação sexual e identidade de gênero. Com efeito, além da luta contra a violência e o preconceito, essas foram as reivindicações que constituíram as principais bandeiras desse movimento social nas últimas décadas.
No entanto, a centralidade das políticas públicas e das decisões judiciais, diante da inexistência de lei em sentido formal, confere certas particularidades ao processo brasileiro de cidadanização LGBT. Em primeiro lugar, pode-se destacar que há uma precariedade e uma fragilidade nas políticas de diversidade, pois a alteração de uma decisão do Judiciário ou de uma norma do Executivo é mais simples e fácil de ocorrer do que a mudança de uma lei em sentido formal, que demanda uma maioria parlamentar, além de estar sujeita a controle judicial. Ademais, nota-se certa inconsistência e falta de regularidade na atuação estatal, pois as políticas públicas se modificam a depender do chefe do Executivo ou dos membros das pastas responsáveis pela implementação, comprometendo sua continuidade e efetividade.
Desse modo, há uma precariedade congênita aos direitos LGBT no país. Some-se a isso a constatação de que todo direito é, por definição, frágil, fruto de luta política em torno de disputas de valores e sentidos. É, assim, uma construção social e histórica que pode abrir margem para avanços em sua consolidação ou para sua total revogação. Não há direito adquirido que seja eterno e imutável.
Dito isso, é também importante destacar que há distintos graus de formalização e de efetividade para os direitos reconhecidos em uma comunidade. O que designamos aqui por direitos LGBT, como já apontado, tem por origem e fundamento decisões judiciais ou políticas públicas, havendo uma inegável precariedade nessa situação.
Tanto é assim que o movimento LGBT não deixou de reivindicar que fossem aprovadas leis no Congresso para dar maior segurança. Por outro lado, abundam iniciativas em sentido contrário, buscando revogar as poucas garantias à população LGBT. Contudo, não tiveram êxito nessa cruzada moral porque nunca conseguiram maioria efetivamente comprometida no Legislativo e sabem, também, que uma lei dessa natureza não encontraria respaldo no Executivo e no Judiciário.
No entanto, agora esses projetos poderão ser ressuscitados, votados e aprovados no Congresso. E Bolsonaro, que foi eleito com o apoio dessa base de conservadorismo moral, poderá dar a força que faltava para que essas propostas saiam do campo da ameaça para a realidade.
Há risco de revogação desses direitos e de vários outros em um governo que, potencialmente, coloca-se como contrário aos direitos fundamentais de algumas categorias de cidadãos. Mas não creio que isso esteja num horizonte tão imediato. É justificado o receio, mas é preciso tomar cuidado com o modo como se mobilizam o medo e o alarmismo, pois a estratégia do bolsonarismo é justamente forjar subjetividades amedrontadas e acuadas.
Qualquer medida ou projeto de lei que atentem contra os direitos LGBT poderão ser questionados perante o STF, que fará o controle de constitucionalidade. Também podem ser questionados perante a Comissão e até na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já têm posição consolidada na defesa dos direitos de livre orientação sexual e identidade de gênero.
Diante desse cenário, devemos levar a sério o conjunto de mais de uma centena de agressões e provocações homofóbicas proferidas pelo presidente? Ou podemos acreditar no mantra “as instituições estão funcionando perfeitamente no país”, agarrando-nos à esperança de que as convicções pessoais e os impulsos homofóbicos do presidente serão enfraquecidos e neutralizados por um sistema de justiça vigilante e comprometido com os direitos humanos?
Independentemente das respostas que tenhamos para essas questões, é provável que se agrave a violência social contra LGBTs, como já vem ocorrendo desde o contexto pré-eleitoral e mesmo com a provável criminalização da LGBTfobia pelo STF. Também é bastante factível que haja retrocessos nos campos em que o Executivo tem maior protagonismo e autonomia para a implementação de políticas públicas, como saúde, cultura e educação, como já temos visto. Já em relação aos direitos reconhecidos pelo STF, a tendência é que haja maior grau de constrangimento institucional para qualquer agenda regressiva que o Executivo tente impor. A Suprema Corte não poderá permanecer indiferente diante de tentativas de boicote às suas decisões, sob pena de perda de sua autoridade e legitimidade. Além disso, certamente haverá resistência articulada do movimento LGBT à tentativa de retirada de direitos.
Ao menos desde os trabalhos do filósofo Michel Foucault,1 o poder, no campo da sexualidade, deixa de ser visto apenas como interdição e proibição para ser entendido também como algo positivo e produtivo. O poder não apenas reprime e silencia, mas também estimula e até compele a profusão de determinados discursos sobre a sexualidade, pautando padrões de normalidade e, portanto, de exclusão, ainda mais quando menos permeável às pressões democráticas.
Nesse sentido, mesmo que não haja mudanças formais na garantia dos direitos, o maior estrago na esfera pública já está feito. De um período em que buscávamos formas de assegurar mais cidadania e maior reconhecimento, retrocedemos para uma discussão infantilizada nas eleições baseada em mentiras como “mamadeiras eróticas” e “kit gay”. A contaminação do debate público sobre gênero e sexualidade por um obscurantismo perverso já produziu consequências no imaginário brasileiro que dificilmente serão revertidas a curto prazo.
Assim, pode-se esperar, nos próximos anos, que se acentuará a dimensão moral dos conflitos políticos, com investidas constantes da base governista no sentido de revogar direitos e ampliar restrições a formas de vida e de uniões que desafiem o padrão. O bolsonarismo dependerá dessa polarização para sua sobrevivência, pois se construiu e se fortaleceu com base no pânico moral que os setores conservadores vinham cultivando contra os avanços das minorias sexuais. Mesmo que não sejam investidas exitosas que se convertam em leis, seu efeito social será bastante concreto.
Isso porque essas conquistas jurídicas da cidadania sexual, mesmo que precárias na forma, são substancialmente o reflexo de mudanças culturais profundas na sociedade brasileira. As lutas do movimento feminista a partir de 1975 e do movimento LGBT desde 1978, ambos surgidos no período da liberalização da ditadura, produziram mudanças significativas nos padrões de família e na gramática moral vigentes. Os sentidos atribuídos aos corpos, os papéis sociais de gênero, os desejos afetivo-sexuais, as estruturas familiares e as relações de parentesco foram disputados e ressignificados com a progressiva politização do privado operada pela contestação cultural e dos costumes. Os códigos morais foram-se alterando significativamente. O padrão hegemônico de virilidade e de masculinidade deu lugar a uma pluralidade de formas de vivência e identidade nos campos do gênero e da sexualidade, que se constituíram como esferas da liberdade e da autonomia humanas, não mais apenas da reprodução da espécie como destino biológico.
É evidente que transformações de tal maneira estruturais gerariam uma reação com nível semelhante de intensidade e força, que tem sido caracterizada, aqui e em outros lugares do mundo, como backlash. Daí ser mais adequado falar em reação do que em ofensiva conservadora. Talvez a maior ingenuidade e fraqueza dos movimentos ligados a essas causas tenha sido justamente não se preparar para administrar a reação que estavam a produzir com suas demandas.
Renan Quinalha é professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
1 Michel Foucault, História da sexualidade: a vontade de saber, Graal, Rio de Janeiro, 1985.