Os endividados - Le Monde Diplomatique

EDITORIAL

Os endividados

por Silvio Caccia Bava
1 de agosto de 2018
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Segundo Negri e Hardt, vivemos um momento de transição nas formas de exploração capitalista: de uma ordem baseada na hegemonia do lucro (pela exploração do trabalho industrial), transitamos para uma ordem dominada pela renda, em que a dívida é um elemento central para produzir a subordinação e construir os elos de uma nova servidão

Sessenta e três milhões e seiscentos mil brasileiras e brasileiros deixaram de pagar contas que deviam e tornaram-se “ficha suja” nos serviços de proteção ao crédito.1 Esses inadimplentes são nada menos que 42% da população adulta do país. Mas não nos esqueçamos de que a questão das dívidas é maior: elas pesam não apenas sobre esses inadimplentes, mas também sobre todos aqueles que conseguem manter em dia o pagamento de suas dívidas com grandes dificuldades, mediante esforços e sacrifícios cada vez maiores.

O crescimento da inadimplência é geral, ocorre em todo o país, com destaque para a região Sudeste, que em junho acusou aumento de 9,88%, se comparado com o mesmo mês do ano anterior. Essa tendência de crescimento dos inadimplentes vem se expressando desde outubro de 2017.

Dessas dívidas, 51% são contraídas com bancos e instituições financeiras e se referem a atrasos no pagamento do cartão de crédito, do cheque especial, de financiamento e empréstimos. E foram as que mais cresceram em junho (7,62%), se comparadas a junho de 2017. A inadimplência com as contas de água e luz estão em segundo lugar, com alta de 6,69% no mesmo período. Já as contas de telefone, internet e TV por assinatura aumentaram a inadimplência em 3,57% no mesmo período.

O avanço da inadimplência é explicado pela alta taxa de desemprego, pela precarização das relações de trabalho, pela redução da renda, enfim, pelos ajustes estruturais impostos pelo neoliberalismo. A reforma trabalhista, a reforma da Previdência e o corte nas políticas de transferência de renda contribuíram para isso.

Essa situação de endividamento não é uma particularidade da realidade brasileira. Ela parece estar presente em um grande número de países, pois, desde o crédito educativo, o seguro-saúde, a hipoteca, o financiamento do carro, tudo passa a ser financiado pelos bancos e pelo sistema financeiro, tornando o endividamento uma condição geral da vida social.2

A jabuticaba brasileira são as taxas de juros cobradas do consumidor. Por exemplo, os juros cobrados quando o consumidor opta por parcelar o pagamento do débito no cartão de crédito ou não faz o pagamento na data do vencimento são de inacreditáveis 334% ao ano. Na Argentina, essa taxa do crédito rotativo é de 47,4%; no Peru, de 44,1%; e, no Chile, de 21,59%.3 Já o cheque especial fica em 324% ao ano, e o crédito pessoal, em 125,7%. Isso contra uma inflação esperada em 2018 de 4,5% ao ano.4

Assim, a tendência global de financeirização da vida como forma de controle social ganha contornos radicais no Brasil, estabelecendo uma nova categoria social, a dos endividados, com muito mais dificuldades de superar essa condição e saldar seus débitos que em qualquer outra parte do mundo. Aqui se cobram os maiores juros do planeta.

Segundo Negri e Hardt, vivemos um momento de transição nas formas de exploração capitalista: de uma ordem baseada na hegemonia do lucro (pela exploração do trabalho industrial), transitamos para uma ordem dominada pela renda, em que a dívida é um elemento central para produzir a subordinação e construir os elos de uma nova servidão.5

O trabalhador, que agora se configura como um consumidor endividado, é controlado pela dívida. Atormentado pela dívida, ele tem medo de perder o emprego, trabalha mais arduamente, não participa da defesa dos seus direitos enquanto coletividade e sujeita-se a novas modalidades de disciplina e controle em seu trabalho.

Romper esse novo padrão de servidão e afirmar para cada cidadão a condição de um ser livre, capaz de exercer plena e ativamente sua cidadania, participar com seus pares na dinâmica da política, nas decisões de interesse público, implica questionar a natureza da dívida que o sujeita e libertar-se coletivamente desse jugo.

Isso vale tanto para as dívidas pessoais quanto para as atribuídas ao conjunto da sociedade, como é a dívida pública, que no Brasil entrega para o setor financeiro, como pagamento do serviço anual dessa dívida, quase a metade de todos os impostos arrecadados. Consequentemente, essa concentração da riqueza aumenta a desigualdade social e bloqueia a melhoria da qualidade de vida de todos.

 

*Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil



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