“Os Estados poderosos se opõem à democracia”
Para o eminente lingüista americano, o presidente George W. Bush “atuou como se trabalhasse para Osama bin Laden” e fez deste governo o primeiro na história do país a se declarar “oficialmente a favor da tortura”. E o futuro não é nada animador: os dois principais candidatos à sucessão estão à direita do eleitorado
Depois de ter vivido a Guerra Fria, o 11 de Setembro, as invasões do Afeganistão e do Iraque, e de criticar duramente a multiplicação das estruturas de opressão e o “sistema neocolonial global”, Noam Chomsky segue tendo esperança: “Nosso horizonte moral se expande, apesar de ter sido obstruído por instituições e doutrinas”. E argumenta: “A guerra do Iraque é a primeira da história do imperialismo contra a qual se protestou massivamente antes mesmo que começasse”.
Contudo, o lingüista e ensaísta americano lamenta que esse progresso seja tão inconstante, lento, e até agonizante. Os retrocessos podem ser muito profundos e nocivos, como no caso da atual administração Bush, “o primeiro governo da história dos Estados Unidos oficialmente a favor da tortura”. Apesar de ter pontos em comum, especialmente na crítica às estruturas de poder, Chomsky se diferencia da desconstrução pós-moderna, do relativismo cultural e seu niilismo, tão comuns na esquerda contemporânea.
Sua paixão, forjada na moderação retórica e na racionalidade dos argumentos, gera seguidores e detratores. Há, porém, um consenso: trata-se de um incansável. Com 79 anos, tem 53 deles dedicados ao ensino da lingüística no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), mais de 100 livros publicados e 22 títulos honoris causa em universidades de todo o mundo. E os números são apenas uma dica para descobrir por que Chomsky foi definido pelo The New York Times como o mais importante intelectual vivo.
Já em seus primeiros anos como acadêmico do MIT, ele revolucionou o paradigma lingüístico que reinava na época com a teoria da gramática generativa. Socialista, autodeclarado libertário, sentiu-se na obrigação moral de se envolver no debate gerado pela guerra do Vietnã, que interpretou em American power and the new mandarins (1969). Desde então, intercala política com lingüística.
Em relação aos principais candidatos à presidência dos Estados Unidos e às possíveis conseqüências de cada gestão, ele se limita a dizer: “O pior e mais perigoso para o país e o mundo seria (John) McCain. Quanto a Obama, não tenho uma resposta clara, ainda que possivelmente a política externa de Clinton deva ser pior”. Chomsky se mostra desconfiado diante das profundas expectativas e mobilizações despertadas por Barack Obama, particularmente entre aqueles que defendem seu famoso slogan de “Mudança”: “Se a mobilização terá um efeito positivo ou negativo, vai depender da resposta à provável desilusão dos que se mobilizaram, caso Obama seja eleito. Há exemplo de ambas as reações na história recente dos Estados Unidos. Não há razões para supor que será diferente de qualquer outro tradicional democrata centrista”.
Simples e direto. Com o ardor de um jovem estudante. Assim Chomsky respondeu às perguntas da entrevista concedida por telefone, de seu escritório no MIT.
Diplomatique – Você defende a idéia de justiça universal e, ao mesmo tempo, critica as estruturas de opressão. O que diria a quem vê na ONU, na democracia e nos direitos humanos construções socioculturais através das quais as estruturas de poder ocidentais justificam sua violência sobre os demais?
Noam Chomsky – É incorreto em nível factual. Tanto a Carta das Nações Unidas como a da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos foram criadas com a participação de várias culturas e grande parte de seus pontos consensuais foi pensada contra o imperialismo ocidental. Acredito que esses direitos são aceitos pelas pessoas, mas não pelos Estados. No caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a maioria das pessoas no mundo deve estar de acordo com seu conteúdo, mas os sistemas de poder não, porque inibem suas ações. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, diferentemente de sua população, rechaça parte significativa desse texto, em especial os direitos sociais, econômicos e culturais.
Diplomatique – Sobre os conflitos em sociedades multiculturais, cujos exemplos mais dramáticos são hoje a França, a Grã-Bretanha, a Espanha e a Holanda, como se resolve a aceitação da diferença (cultural) sem comprometer os avanços desses países em matéria de direitos individuais?
Chomsky – A realidade americana é um exemplo muito extremo de sociedade multicultural. Na verdade, desde o extermínio da população indígena todos são imigrantes no país e, mesmo assim, cada nova onda de entrada foi tratada com brutalidade. Em Boston, durante a grande imigração irlandesa do final do século XIX, os restaurantes tinham cartazes em que registravam a proibição da entrada de cachorros e irlandeses. A expectativa de vida de um irlandês era de mais ou menos 15 anos. Com o tempo, eles foram assimilados pela sociedade e agora têm um papel importante. A Europa, pelo contrário, tende a ser homogênea. Por isso enfrenta inúmeros problemas ao receber ondas migratórias, especialmente de suas ex-colônias.
Diplomatique – Mas nos Estados Unidos houve uma busca pela homogeneização cultural. O problema enfrentado pelos países europeus é a tensão entre o suposto ideal democrático de respeitar os valores culturais e, ao mesmo tempo, a necessidade de fazer respeitar os direitos individuais. Tomemos o exemplo de uma família islâmica ortodoxa na França e o tratamento controverso dado às mulheres: quais medidas deveriam ser tomadas?
Chomsky– Temos o mesmo problema nos Estados Unidos. É uma pergunta difícil. Há um conflito entre os direitos do indivíduo e os direitos da cultura. Algum tempo atrás, a polícia levou sob custódia cerca de 400 jovens que faziam parte de uma comunidade mórmon no Texas. Estavam vivendo em uma comunidade poligâmica onde existiam indícios de abuso de menores, mas, do ponto de vista da cultura de onde eles irromperam, isso era algo normal. Nesses casos, é a comunidade nacional inteira que deve tomar uma decisão, mediada pelo governo. O mesmo acontece com o abuso doméstico, que para algumas famílias tradicionais é normal. As ações legais são consideradas uma intromissão em seus costumes.
Diplomatique – Contudo, a suposição que você tem de uma justiça universal orientaria aquelas situações favoráveis ao direito individual…
Chomsky– Sim. E acredito que no fundo de nossa natureza haja uma compreensão que emerge com o tempo. A história demonstra: algumas coisas que hoje consideramos aberrações eram legítimas e normais há pouco tempo, tais como escravidão,
abuso de mulheres, trabalho infantil, maus-tratos a animais…
Diplomatique – Essa ampliação ética parecia estar relacionada aos crescentes protestos globais contra a guerra do Iraque, a favor do Tibete, do intercâmbio humanitário na Colômbia, contra o egoísmo do G-8. Como você avalia esta emergente cidadania, ou consciência global, de gente preocupada com a opressão de outros seres humanos em lugares distantes do mundo?
Chomsky – É uma preocupação crescente e muito saudável. Atualmente há muito mais consciência do sofrimento e da opressão das pessoas em outras partes do mundo do que havia no passado. Isso se torna evidente ao comparar a oposição à guerra do Vietnã com a oposição à guerra do Iraque. Em geral, é dito que houve poucos protestos contra o Iraque em comparação ao Vietnã, mas isso ocorre porque nos esquecemos da história.
No período do Vietnã, os protestos eram quase inexistentes. Desenvolveram-se apenas quando a guerra havia se estendido a países vizinhos, e mais de meio milhão de americanos já lutava no Vietnã do Sul, que estava praticamente destruído. A guerra do Iraque é a primeira na história do imperialismo contra a qual se protestou massivamente antes mesmo de seu início. Hoje todos os candidatos à presidência dos Estados Unidos têm de falar sobre um plano de retirada de tropas. Quando havia 150 mil soldados no Vietnã, a retirada jamais foi insinuada. Isso reflete a crescente oposição à violência e à opressão.
Diplomatique – Você é otimista a respeito de um progresso moral global, apesar do atual fortalecimento e globalização das estruturas de opressão?
Chomsky – O progresso é lento, agoniza, é inconstante, mas é a lição que nos ensina a história. Existe um processo, vindo de vários séculos, em que ampliamos nossos horizontes morais, nos aproximando do que dita nosso sentimento moral instintivo. Isso tem sido obstruído por instituições e doutrinas, mas há uma expansão. Não quero dizer que seja uniforme, também foram dados passos para trás: o governo Bush, por exemplo, é o primeiro na história dos Estados Unidos oficialmente a favor da tortura. Agora pensemos na Argentina sob o governo militar: converteu-se em um dos lugares mais espantosos do planeta, o que implicou uma regressão muito séria.
Apesar disso, esse momento foi superado e atualmente há um progresso moral, mas que ainda está aquém do nível anterior à ditadura. Por outro lado, os Estados Unidos são um país que se fundou sobre o extermínio de sociedades indígenas. E mesmo quando meus filhos foram à escola em comunidades progressistas, seus livros glorificavam os massacres. Hoje, uma coisa semelhante é inaceitável em qualquer parte do país. É uma mudança que se deu graças ao ativismo da década de 1960, que teve um grande efeito civilizador, especialmente em relação aos direitos das minorias e das mulheres.
Diplomatique – Você disse que o racismo é hoje um obstáculo para Barack Obama. Mas o fato que um candidato afro-americano tenha sérias possibilidades de assumir a presidência pela primeira vez na história dos Estados Unidos não reflete um novo campo paradigmático, até mesmo levando em conta que competiu com uma mulher?
Chomsky– É um passo adiante. Porém, outras sociedades foram muito mais avançadas a esse respeito e já tiveram primeiras-ministras mulheres. Digamos que é um passo lento, mas significativo, dos Estados Unidos em direção à superação do racismo e do sexismo. Porém, a pressão do racismo enraizado na sociedade americana segue limitando as possibilidades de Obama.
Diplomatique – No dia seguinte aos ataques de 11 de setembro você escreveu um artigo bastante controvertido, que dizia: “Temos opções: podemos tentar compreender, ou nos negar a fazê-lo, contribuindo com a possibilidade de que o pior esteja por vir”. A opção feita por Bush é evidente, mas quais são as seqüelas dela?
Chomsky – Estou no pólo oposto em relação às idéias de Michael Scheuer, por exemplo, encarregado do programa da CIA e que tentou capturar Osama bin Laden durante anos. Contudo, sua análise foi muito precisa: assinala que George W. Bush atuou como se trabalhasse para Bin Laden. O fato é que imediatamente após o 11 de setembro, o movimento jihadi dos clérigos islâmicos radicais condenou duramente Bin Laden. Disseram que o que havia sido feito não era islâmico e citaram fatwas (pronunciamentos jurídicos islâmicos) criticando-o. Mesmo assim, Bush se encarregou de movimentar todos a favor de Osama bin Laden. Afinal, os grupos terroristas se julgam vanguardas e tentam trazer pessoas para sua causa utilizando injustiças reais, tais como as invasões do Afeganistão e, em especial, do Iraque. Um estudo recente de vários especialistas, feito com dados governamentais, estima que o terrorismo se multiplicou por sete como conseqüência da invasão do Iraque.
Diplomatique – Quais teriam sido as ações políticas concretas se os Estados Unidos tivessem tomado o outro caminho, de “tentar compreender”?
Chomsky – Um ato terrorista é um ato criminoso. E o que deve ser feito diante de um ato criminoso é identificar o responsável, prendê-lo e levá-lo a um julgamento justo. Por outro lado, se existem injustiças reais por trás desse ato, elas devem ser levadas em consideração. Se essa tivesse sido a resposta, o terrorismo estaria sendo reduzido, em vez de multiplicado. Mas isso não interessava aos Estados Unidos. Quando invadiram o Afeganistão tinham idéia se Osama bin Laden era o responsável?
Não. Tanto que oito meses depois da invasão, ao finalizar a investigação de inteligência internacional mais extensa da história, o chefe do FBI informou à imprensa que não tinha certeza acerca do responsável. Suspeitavam que o ataque havia sido tramado no Afeganistão e implementado e financiado nos Emirados Árabes Unidos e na Europa. Mas não era certo. E o bombardeio foi levado a cabo mesmo assim, sabendo que milhões de pessoas sofreriam com o desastre e a fome. Isso é um ato realmente criminoso. Mas, de fato, o terrorismo não era o mais importante. Havia outras prioridades, como a dominação mundial.
Diplomatique – Por que a ONU não chegou a uma definição de terrorismo?
Chomsky – Há uma razão muito boa. Escrevo sobre o tema desde 1981, quando a administração Reagan assumiu para declarar que o centro de sua política exterior seria a guerra contra o terror, que descreveu como a barbárie de nosso tempo, a praga da era moderna. Isso era verdade. E assim os americanos começaram a guerra contra o terror, mas o fizeram apoiando o terror. Foi o que aconteceu com os ditadores argentinos e também na América Central, onde mataram centenas de milhares de pessoas e devastaram quatro países. Isso é o terrorismo massivo de Estado. Na África, respaldaram as invasões sul-africanas aos países vizinhos, que mataram mais de um milhão de pessoas.
O mesmo o
correu em relação às incursões de Israel contra o Líbano. Se observarmos bem, eles apoiaram o terror em todo o planeta. Quando escrevo sobre terrorismo uso uma definição muito boa, que peguei no sistema legal americano. O código britânico também tem uma que vale a pena. Mas há um problema com essas definições: quando elas são aplicadas, percebemos que os Estados Unidos são um dos principais Estados terroristas. E nos últimos 25 anos houve um esforço para inventar uma definição que se restringisse ao terror que “eles” praticam contra “nós”. Portanto, alega-se que há um problema para defini-lo.
Diplomatique – Diante dessa situação onde se politiza o conceito, você crê que é preferível que a mídia utilize a palavra “terrorismo” no máximo entre aspas?
Chomsky – Deveriam usar a palavra terrorismo, mas em sua definição legítima. Dessa forma, deveriam cobrir as ações terroristas dos Estados Unidos contra a Nicarágua e sua condenação pela Corte Internacional. Ou o terrorismo massivo contra Cuba, como no caso da Operação Mongoose, no governo Kennedy. Que descrevam assim.
Diplomatique – O que você pensa sobre as “democracias exportadas” onde ganham os extremistas? Tomemos o exemplo clássico do Hamas na Palestina. Como deveríamos reagir?
Chomsky – Antes de tudo, não existem as “democracias exportadas”, é um engano. Os Estados poderosos se opõem à democracia. Em todo o mundo árabe houve uma única eleição livre: a de janeiro de 2006, na Palestina. Todos estão de acordo que foram livres e justas. Mas, do ponto de vista americano e israelense, ganharam as pessoas erradas. Como nos Estados Unidos a classe dirigente e os intelectuais desprezam a democracia, eles reagiram junto com Israel, castigando a população. Não foi só com o Hamas na Palestina, vamos pegar o exemplo da Venezuela: podem ter a opinião que quiserem sobre Chávez, mas a questão é o que pensam os venezuelanos. E os estudos de Latinobarómetro (consultoria chilena) dos últimos anos indicam a Venezuela no primeiro ou segundo lugar em aprovação do próprio governo e da democracia. É isso que pensam as pessoas. E como reagem os Estados Unidos? Respaldam um golpe militar, sansões, demonizam o presidente… O mesmo com a Bolívia. Novamente, cada um pode opinar como quiser, mas houve eleições notavelmente democráticas em dezembro de 2005, quando a maioria indígena pôde, pela primeira vez, eleger um de seus pares, Evo Morales. Isso é democracia. Quando os Estados Unidos tentam solapá-la, refletem sua visão: está tudo bem, desde que seja da nossa maneira.
Diplomatique – Suponhamos que exista um país poderoso realmente interessado em expandir a democracia. Qual seria a forma de apoiá-la em outro país?
Chomsky – É fácil. Reagir exatamente como reagimos quando os demais votam como queremos que votem: respaldar, oferecer assistência e, no caso de um país que atacamos no passado, pagar as reparações. Há uma variedade enorme de maneiras de apoiar a forma de vida escolhida pelo povo.
Diplomatique – E no caso de um governo autoritário?
Chomsky – Podemos nos opor, assim como com um governo terrorista. Mas isso não significa castigar a população.
Diplomatique – Mas oposição com ou sem intervenção?
Chomsky– Os Estados Unidos são um dos principais Estados criminosos do mundo e, ainda assim, não sou a favor de que ninguém intervenha em meu país. Não é a forma de resolver. Não existe nação alguma autorizada a fazê-lo. Sobre este tema, creio que a restrição na Carta da ONU é correta. Recentemente, uma comissão internacional de alto nível, em que participaram reconhecidas figuras americanas como Brent Scrowcroft, o conselheiro de segurança nacional de George Bush I (pai), reconfirmou a restrição presente na Carta sobre o uso da força.
Diplomatique – Sobre a América do Sul, você disse que a integração regional libertaria os países dos Estados Unidos, mas supondo que a integração avance, o problema é que dentro dela serão reproduzidos os mesmos esquemas: países maiores que querem tirar proveito dos menores. Você acredita que há um ponto final ou é simplesmente assim?
Chomsky – No momento é assim, mas tentaremos colocar um ponto final nisso, assim como tentaremos acabar com outras formas de opressão. A América Central é provavelmente irrecuperável em decorrência da destruição provocada pela administração Reagan, mas a América do Sul está enfrentando problemas graves pela primeira vez na história desde as invasões espanholas. Tradicionalmente, as sociedades sul-americanas são ilhadas, separadas entre si, dirigidas por elites mantidas à custa do sofrimento de uma grande massa pobre. Mas estão começando a encarar isso, como no caso boliviano. Até onde chegará a transformação? Os sul-americanos é que têm de determinar.
*Gaspar Segrafredo é jornalista.