Os evangélicos sul-coreanos na arena política
Bastante conectados aos conservadores norte-americanos e defensores de um anticomunismo feroz, os evangélicos sul-coreanos foram desorientados pelo encontro, em junho de 2019, do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com seu colega norte-coreano, Kim Jong-un
Na primavera de 2020, quando a pandemia de Covid-19 ameaçava se espalhar pela Coreia do Sul, os evangélicos conservadores continuaram com suas reuniões diárias, exigindo a renúncia do governo e se recusando a substituir as cerimônias religiosas presenciais pelos cultos on-line. Ao contrário dos budistas e dos católicos, eles consideraram que estava em curso um ataque à “liberdade de religião” e aproveitaram para lançar uma ofensiva contra o presidente Moon Jae-in, acusado de ser “subordinado à China socialista” (onde o vírus surgiu), com a intenção de recuperar o terreno perdido entre a população.
No outono de 2016, a sociedade sul-coreana viu-se cindida em dois campos. De um lado, manifestantes carregando velas acesas exigiam o impeachment da presidenta Park Geun-hye; de outro, manifestantes brandindo a Taegeukgi, a bandeira nacional, faziam a contramobilização, na qual as igrejas protestantes tiveram um papel central. O confronto terminou com a vitória esmagadora do movimento das velas, do qual participaram 17 milhões de cidadãos,1 e culminou na renúncia de Park, em 10 de março de 2017, que foi julgada e presa. Em maio seguinte, Moon Jae-in, que personificava o espírito das vigílias à luz de velas, foi eleito presidente da República.
Apesar de seu baixo quórum, as manifestações Taegeukgi continuaram. Porém a espetacular reaproximação com a Coreia do Norte após os Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang, em fevereiro de 2018, causou grande turbulência. Ainda mais porque Donald Trump – eleito graças ao apoio dos protestantes conservadores dos Estados Unidos – teve um papel determinante para essa reaproximação. O movimento conservador recuperou a confiança com a chegada de Hwang Kyo-ahn à liderança do Partido da Liberdade da Coreia (PLC, que sucedeu ao partido Saenuri, da ex-presidente Park), em fevereiro de 2019. Com esse feroz anticomunista, último primeiro-ministro de Park, as igrejas protestantes viram-se então como as forças motrizes da direita radical. Que azar: após a derrota de seu partido nas eleições legislativas de 15 de abril, Hwang teve de renunciar.
Progressistas eram maioria
Por muito tempo, os evangélicos conservadores da Coreia do Sul optaram por se manter longe das questões sociais e do debate político, mas, há trinta anos, começaram a intervir nas questões sociais e então a se imiscuir nos assuntos políticos.
No início do século XX, a sociedade sul-coreana passou a viver uma competição feroz entre religiões, embora haja uma porcentagem excepcionalmente alta de pessoas que declaram não ter religião (mais da metade da população). Em 1945, quando o país se libertou da ocupação japonesa, ele tinha 100 mil protestantes, apenas 0,5% da população. Mas esse número cresceu rapidamente na década de 1950, sobretudo durante a Guerra da Coreia (1950-1953), a ponto de torná-los a segunda maior comunidade religiosa do país, logo após os budistas. Em 2015, os protestantes coreanos eram 9.676.000, de acordo com o serviço nacional de estatísticas da Coreia, o equivalente a 19,7% da população. Já a proporção daqueles que não declaram filiação religiosa passou de 49,6% em 1995 para 46,9% em 2005, antes de subir para 56,1% em 2015. Atualmente, a Igreja protestante sul-coreana administra seis canais de televisão, 109 universidades, 631 escolas primárias e secundárias e 196 estabelecimentos médicos. Ela possui 259 associações.2
Sua presença também chegou ao Parlamento, onde a porcentagem de eleitos dessa denominação oscilou entre 31% e 41% nas últimas duas décadas. Além disso, as igrejas protestantes sul-coreanas têm um papel cada vez mais visível no cenário internacional. Seus missionários começaram a atuar ali na década de 1980 e hoje são mais numerosos que os dos Estados Unidos. Em 2009, eram 20 mil; dez anos depois, 30 mil. No início da década de 1990, quase metade das cinquenta maiores igrejas protestantes do mundo (em número de fiéis) eram sul-coreanas.
Durante o período colonial (1905-1945), sob a influência dos missionários vindos dos Estados Unidos, grande parte dos protestantes tornou-se conservadora, até fundamentalista. A partir da década de 1950, ocorreu uma série de cismas. O conservadorismo teológico combinou-se com o conservadorismo político, e o progressismo teológico com o progressismo político. No final desse processo, no início dos anos 1970, os progressistas representavam menos de 20% do conjunto dos protestantes.3 Eles se juntaram ao Conselho Nacional de Igrejas da Coreia (The National Council of Churches in Korea, NCCK) para estimular o movimento pela democracia e derrubar a ditadura. Por causa desse ativismo, até o final dos anos 1980 a imagem dominante do protestantismo no país era bastante progressista. O envolvimento de alguns evangélicos em movimentos sociais fortaleceu ainda mais essa reputação.
No entanto, no final de 1989, os protestantes conservadores, até então dispersos, reuniram-se sob a égide do Conselho Cristão da Coreia (Christian Council of Korea, CCK), que renunciou à antiga doutrina que separava a Igreja do mundo secular. Desde o início, o CCK superou claramente o NCCK em número de fiéis e em recursos. Tanto que, no meio da década de 1990, aproveitando as dificuldades financeiras do NCCK, o CCK assumiu o controle e sufocou seu espírito. A partir dos anos 2000, as igrejas protestantes tornaram-se conservadoras, sem, no entanto, adentrar a arena política (em julho de 2020, o CCK tinha 55 igrejas, contra nove da NCCK).
Além disso, em janeiro de 2003, as forças lideradas pelo CCK realizaram duas vigílias de oração na praça da prefeitura de Seul, com a participação de dezenas de milhares de fiéis. Em seguida, em colaboração com grupos de direita, organizou no início de março um encontro com a presença de mais de 100 mil pessoas – uma estreia espetacular no cenário político, saudada com entusiasmo pelos partidos e organizações sociais reacionários.
Alguns militantes de direita formaram um Partido Protestante; outros conservadores criaram o grupo Nova Direita Protestante. Em cinco anos, de 2003 a 2008, eles tiveram um sucesso significativo. Afirmando-se na oposição, atrapalharam a maioria das grandes reformas do governo democrata (2003-2008) de Roh Moo-hyun – chamado, assim como seu antecessor, de “esquerdista pró-Coreia do Norte”. Após uma intensa campanha, ajudaram a eleger Lee Myung-bak, um ancião da megachurch (megaigreja) de Seul (mais de 2 mil fiéis), como presidente da República (2008-2013), abrindo o caminho para uma era de conservadorismo. Na década de 2010, diversas ONGs protestantes de ultradireita foram criadas. A maioria de seus membros são jovens treinados para se tornarem bravos “guerreiros da internet”. As igrejas evangélicas sul-coreanas se destacam pelo ardor militante e pela agressividade. Alguns se envolveram inclusive em manipulação política, recebendo secretamente o apoio de serviços de inteligência do Estado ou produzindo e disseminando informações falsas, especialmente durante as campanhas eleitorais.
Seus eixos políticos são bastante simples: preservar e reforçar o anticomunismo, os sentimentos pró-Estados Unidos e a hostilidade à Coreia do Norte; impedir a adoção de leis, decretos ou políticas que garantam os direitos de minorias sexuais, muçulmanos, objetores de consciência, migrantes e refugiados; recriar uma tendência favorável ao regime que apoiam, especialmente durante as eleições; proteger e promover os interesses das igrejas no que diz respeito à gestão das escolas e instituições de proteção social, à tributação do clero etc.
Se o anticomunismo já fazia parte da doutrina social do protestantismo sul-coreano na década de 1930, em 2013 a direita inventou um personagem que vai além: o “homossexual esquerdista pró-Coreia do Norte”. Ele se baseia na ideia de que muitas minorias sexuais são de esquerda, ou de que a esquerda se alinha com as concepções dessas minorias. Após o sequestro, em julho-agosto de 2017, de 23 missionários protestantes no Afeganistão e o assassinato de dois deles, outra teoria conspiratória apareceu: a “islamização da Coreia do Sul”, graças à aliança entre muçulmanos e “esquerdistas” – isto é, governos de centro e todos aqueles que não são de direita. A tese não se relaciona à influência do islã na sociedade sul-coreana – extremamente marginal, já que o país tem 150 mil muçulmanos em uma população de mais de 51 milhões de habitantes –, porém se liga à teologia messiânica do protestantismo sul-coreano.
Este último não deixou de lado sua obsessão pela Coreia do Norte. Desde meados da década de 1990, a direita protestante prepara a “conquista do Norte pela evangelização”, prevendo, em caso de colapso do regime – seu maior desejo –, a criação de mais de 10 mil igrejas em dez anos. Missionários são enviados para a fronteira sino-norte-coreana, e não é raro que grupos de desertores norte-coreanos, apoiados por partidários da direita protestante, enviem folhetos de propaganda criticando o regime de Pyongyang em grandes balões perto da fronteira.
Essa militância próxima do militarismo baseia-se em diversas dinâmicas religiosas, transmitidas para muitas pessoas pela Igreja protestante conservadora norte-americana, sobretudo nos anos 1990 e 2000: a visão de um mundo dividido entre “nós” e “os terroristas”, o conceito de guerra espiritual, a fé escatológica fundada no pré-milenarismo – doutrina que afirma que Jesus retornará à terra, matará Satanás e reinará por mil anos.
Isso permite oferecer aos crentes uma identidade de guerreiros de Deus, com a previsão da chegada do anticristo e seu domínio do mundo, ou seja, a luta final entre o Bem e o Mal.4 Da mesma forma, o retorno do povo judeu a Jerusalém é visto como um sinal do fim dos tempos. Isso explica por que as manifestações da direita sul-coreana, desde 2017, costumam exibir a bandeira de Israel ao lado da Taegeukgi e, às vezes, das listras e estrelas norte-americanas. Até o ano passado, não era raro ver pastores recitando orações em inglês ou enviando mensagens de gratidão ao presidente dos Estados Unidos, que se empenhava em derrubar o regime norte-coreano. Em abril de 2003, em resposta a essas orações, o comandante em chefe das forças norte-americanas, Leon J. LaPorte, visitou o pastor David Yonggi Cho, fundador da Igreja Yoido (Yoido Full Gospel Church) e um dos mais poderosos líderes da direita protestante sul-coreana. Em agosto do mesmo ano, o presidente George W. Bush festejou, em uma carta ao CCK, “o espírito de amizade entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos durante as grandes vigílias de oração realizadas em Seul”.5

Para os evangélicos sul-coreanos, os Estados Unidos são ao mesmo tempo a “pátria da fé”, que evangelizou e civilizou o povo (mais de 87% dos missionários protestantes que vieram para a Coreia entre 1893 e 1983 eram norte-americanos), os salvadores do país – o que por si só já merece elogios e gratidão – e os salvadores do mundo. Desse modo, consideram necessário tomar o país como exemplo e com ele manter, a qualquer custo, estreitas relações de cooperação. Segundo uma mentalidade religiosa e colonial que estabelece uma relação hierárquica com os Estados Unidos, o povo norte-americano é um “povo eleito”. Em compensação, para a direita protestante dos Estados Unidos, o protestantismo sul-coreano tem um valor periférico.
Esse desequilíbrio não impediu que as relações se consolidassem. Existem mais de 4 mil igrejas protestantes sul-coreanas nos Estados Unidos, que efetivamente garantem uma geminação doutrinária. Visitas e reuniões mútuas são frequentemente organizadas. Pessoas formadas em escolas teológicas conservadoras norte-americanas ocupam cargos importantes na Coreia do Sul, como pastores ou professores em grandes igrejas ou em seminários de direita. Por meio desse pessoal familiarizado com os métodos norte-americanos, foram difundidas teologias como o fundamentalismo, o apocalipse pré-milenarista e a guerra espiritual. Não admira que os evangélicos dos dois países pareçam irmãos gêmeos: forte participação eleitoral, coalizão com forças políticas de direita, anticomunismo, discriminação contra homossexuais, rejeição de refugiados e imigrantes, posições pró-Israel e antimuçulmanas etc. Isso sem falar no apoio à pena de morte, que as diferencia de outras igrejas ocidentais.
No entanto, existem algumas questões políticas que a direita protestante sul-coreana aborda com menos frequência e com menos paixão do que sua contraparte do outro lado do Pacífico, como o direito ao aborto, a pesquisa com células-tronco embrionárias, as drogas, a pornografia e o feminismo. A direita protestante sul-coreana não participa do debate sobre o ensino do criacionismo ou sobre a oração nas escolas públicas. E, enquanto os militantes dos Estados Unidos privilegiam a luta contra o islã após os ataques do 11 de Setembro, os sul-coreanos continuam obcecados pelo confronto com o vizinho do Norte.
Sabotagem dos acordos de paz
É compreensível que o histórico encontro entre Moon Jae-in, Kim Jong-un e Donald Trump em Panmunjom, no dia 30 de junho de 2018, tenha provocado certo constrangimento em suas fileiras. Embora tenham saudado a iniciativa, eles logo alertaram contra o que chamam de “oferta de paz enganosa de Pyongyang”. Como escreve Park Chansoo, colunista do diário de centro-esquerda Hankyoreh: “Os conservadores do Sul devem se sentir traídos, pois esperavam que Trump adotasse medidas de retaliação contra a Coreia do Norte”.6 Park se pergunta se a direita protestante não buscará escolher – assim como alguns intelectuais de extrema direita, que pedem aos conservadores uma linha política menos dependente dos Estados Unidos – uma doutrina que não dependa de Trump ou da direita protestante norte-americana.
Por enquanto, porém, o encontro de Panmunjom serviu para nada mais além de fotos – o que é ótimo para a campanha eleitoral de Trump: nenhum progresso significativo foi feito nas relações entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, ou mesmo entre as duas Coreias. A atmosfera de exaltação e esperança que reinava na península pouco a pouco se dissipa, para grande deleite da direita protestante coreana. O sentimento de traição que ela experimentou em relação a Trump foi transformado em alívio. Em outubro de 2019, o pastor Jeon Kwang-hoon, presidente do CCK, lançou um Movimento de Luta Nacional pela Renúncia do Presidente Moon, instalando tendas em frente à Casa Azul, o palácio presidencial, onde reúne com frequência milhares de pessoas, ao que chama de “assembleias do Eterno no deserto”. No entanto, após o surgimento de vários casos de Covid-19, a opinião pública tornou-se cada vez mais desfavorável a essas manifestações. As autoridades de Seul aproveitaram para encerrar a ocupação do local. Preso e depois libertado sob fiança em abril, o pastor não desistiu e, junto com a direita, retomou sua cruzada ideológica contra os três grupos de inimigos identificados nas últimas décadas: os partidos e organizações à esquerda, os hereges (o que inclui todas as outras religiões) e os homossexuais.
Após o fracasso nas eleições legislativas de abril, a direita evangélica retomou sua campanha de balões de propaganda contra a Coreia do Norte. E com ainda mais zelo, já que Trump e os conservadores norte-americanos não mostram nenhuma disposição para negociar com Pyongyang. Em junho de 2020, entidades como os Combatentes pela Coreia do Norte Livre (Fighters for Free North Korea), uma organização de desertores norte-coreanos que vivem em Sul, e o grupo protestante Voz dos Mártires da Coreia (The Voice of the Martyrs Korea) lançaram panfletos de propaganda do outro lado da fronteira, apesar da opinião pública extremamente desfavorável a esse tipo de provocação. A campanha provocou o furor de Pyongyang, que a usou de pretexto para demolir o gabinete de ligação Norte-Sul criado após o encontro em Panmunjom.7
A direita protestante parece acreditar que essas ações agressivas não apenas se conformam com sua doutrina, mas também servem para manter seu impacto e presença política. No entanto, parece claro que o futuro de todas as igrejas protestantes coreanas está obscurecido por essa política de ódio que apenas reforça seu isolamento social.
Kang In-Cheol é professor da Universidade Hanshin (Coreia do Sul) e autor de Protestantismo coreano e anticomunismo (em coreano), Jungsim, Seul, 2007.
1 Ler Sun Ilk-kwon, “‘Révolution des bougies’ à Séoul” [Em Seul, a “Revolução das Velas”], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.
2 “Religião na Coreia – 2018”, relatório do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo (em coreano), Seul, 2018.
3 Kang In-Cheol, Resistência e rendição: regimes militares e religião (em coreano), Hanshin University Press, Osan, 2013.
4 Ler Ibrahim Warde, “Il ne peut y avoir de paix avant l’avènement du Messie” [Não pode haver paz antes da chegada do Messias], Le Monde Diplomatique, set. 2002.
5 Carta publicada no site do CCK, 2003.
6 Park Chansoo, “Do conservadorismo pró-Estados Unidos ao conservadorismo pró-Japão” (em coreano), Hankyoreh, Seul, 11 jul. 2019.
7 Ler Martine Bulard e Sun Ilk-kwon, “La politique du rayon de soleil” [A política do raio de sol], Le Monde Diplomatique, jun. 2018.