Reflexões sobre o combate à Covid-19 nos EUA e no Brasil
Para Giroux, a desigualdade não é apenas o câncer do capitalismo, é sua forma de atacar o tecido social, o bem-estar social e o corpo político
A análise de Henry Giroux sobre a desigualdade na era da pandemia publicada na revista Salon é destes textos que vale a pena ler para comparar com o caso brasileiro. Para Giroux, a desigualdade não é apenas o câncer do capitalismo, é sua forma de atacar o tecido social, o bem-estar social e o corpo político porque ela “submete à violência incansavelmente trabalhadores, pessoas com deficiência, desabrigados, pobres, crianças, pessoas negras e da linha de frente em hospitais e trabalhadores de emergência e outros considerados em risco de vida com ansiedade, incerteza e, em alguns casos, morte”.(as citações do texto do autor são minha tradução pessoal). Giroux, um dos maiores críticos culturais americanos e crítico do governo de Donald Trump, embasa sua análise nas grandes obras de críticos do capitalismo atual como “Capital e ideologia”, de Thomas Piketty; “A escada quebrada”, de Keith Payne; “A grande desigualdade”, de Michael D. Yates; “Desigualdade: o que pode ser feito?” de Anthony B. Atkinson; “O preço da desigualdade” de Joseph E. Stiglitz; e “O nível de espírito” de Richard Wilkinson e Kate Pickett.
O motivo da comparação entre Brasil e Estados Unidos é que a desigualdade é um problema comum no combate à pandemia nos dois países. A desigualdade produzida pela pandemia começa quando transformamos o drama de pessoas em uma conta hospitalar, como diz Giroux nos Estados Unidos, onde pessoas estão sendo presas por não pagarem suas contas médicas: enquanto 1% da população mais rica do mundo possui o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas, a quem o autor chama de super-ricos, que pagam baixos impostos, 10 mil pessoas morrem por que não têm acesso ao serviço de saúde.
A desigualdade é econômica, racial e estrutural e o verdadeiro problema político é que é tratada como algo natural “numa era de crescente desigualdade, punição de divisões de classe, pobreza extrema, colapso de instituições democráticas e aumento do número de mortos, o capitalismo neoliberal é um espectro que precisa ser mais compreendido e desafiado. No momento histórico atual, os níveis crescentes de desigualdade não podem ser separados da formação política em que são legitimados e reproduzidos. No mínimo, o neoliberalismo e a desigualdade, com suas raízes históricas e contemporâneas e tendências antidemocráticas e autoritárias, precisam ser desnaturalizados, removidos do cálculo do senso comum e desafiados como um regime político, econômico e ideológico autoritário de gestão, controle e exclusão”, diz o autor.
A análise de Giroux se encaixa perfeitamente no caso brasileiro. A diferença da situação brasileira é a existência do SUS, que, se impede as pessoas de serem presas por não pagarem suas dívidas médicas, não as impede de morrer pelo abandono do sistema por parte do governo federal. Aqui a concentração da riqueza também é elevada. Os dados disponíveis indicam que 1 % da população mais rica tem 28% da riqueza do país. O racismo, como nos EUA, deixou de ser o problema político oculto para ser explícito: o presidente da Fundação Palmares, instituição criada para defender políticas públicas para povo negro, Sérgio Camargo, é o primeiro a assumir o preconceito com estas populações, chamando o movimento negro de “escória maldita”, afirma que a escravidão “beneficiou” os negros e retira biografias de grandes líderes negros do portal da entidade.
No Brasil a desigualdade é legitimada e produzida não apenas pelo neoliberalismo, mas pelo Estado que assume parcela importante de sua reprodução, forma como o governo Jair Bolsonaro releva suas tendências antidemocráticas contra negros.
Tanto nos Estados Unidos como no Brasil, a crise da Covid-19 está fora de controle e como afirma Giroux “fica claro que as relações iníquas de poder e riqueza se correlacionam com a perda de bens públicos, o desinvestimento em instituições essenciais para proteger a saúde pública e a concentração de riqueza nas mãos de uma elite financeira”. Enquanto no Brasil a política governamental age num sentido, as demandas da população vão em outro: em Porto Alegre, o prefeito Nelson Marchezan Jr, ao contrário de prefeitos de outras grandes capitais, não investiu em hospitais de campanha para atender seus doentes, preferindo investir em propaganda. No último dia 21 de junho, frente à necessidade de revisar as suas medidas de distanciamento pelo aumento dos casos de uso de UTI, o que ele fez? Promoveu medidas que promete serem mais rígidas, mas cheias de exceções. Seu processo de liberação das atividades comerciais foi precoce, possibilitando novos casos com a abertura de shoppings e o uso de espaços públicos que tiveram como resultado a cidade chegando ao limite da taxa de ocupação de leitos de UTI. No dia 6 de julho, o prefeito teve de ceder, determinando o fechamento de praças da cidade, além de determinar o fechamento da área azul, áreas de estacionamento no centro da cidade e do próprio mercado público para redução da circulação na cidade. É típico de governos neoliberais em pandemia, por um lado, incentivar a atividade comercial que possibilita a concentração de riqueza e de outro, deixar de investir naquilo que a população precisa, como respiradores. Só recuam quando os indicadores sinalizam a possibilidade real de entrada na bandeira preta. É o caso de Porto Alegre.
Na visão neoliberal, como aponta Giroux, a propriedade econômica é vista separada de investimento em saúde, que é visto com desdém. O prefeito de Porto Alegre, inclusive, fechou postos de atendimento de saúde nos bairros mais pobres, mas liberou por um período amplo shoppings que atendem as populações mais abastadas. A prefeitura de Porto Alegre, como sugere Giroux, “é transformada em um regime corporativo que se recusa a investir em bens sociais, como sistemas públicos de saúde, hospitais”. É um modelo de gestão que avança em direção a transformar cidadãos em vítimas da pandemia, desvalorizando o papel que tem a administração local na contratação de médicos especialistas e toda a infraestrutura necessária para conter o novo coronavírus.
Palácio do Planalto
Como a Casa Branca, o Palácio do Planalto foi incapaz de, por meio do Ministério da Saúde, rastrear a doença enquanto o vírus se espalhava por todo o país e prejudicou a divulgação de informações. Jair Bolsonaro é tão culpado quando Donald Trump pela resposta do governo a pandemia que levou ao pior desastre em ambos os países: tanto nos Estados Unidos como no Brasil, a Covid-19 teve uma face de classe e raça, pois à medida que chegava às comunidades periféricas, maiores eram as distinções entre acesso aos serviços de saúde entre ricos e pobres, brancos e negros.
O cinismo de nossas elites estava em exigir das comunidades pobres a disposição de comprar “álcool gel”, executar políticas de “distanciamento social”, sem dinheiro e morando muitas vezes em um único cômodo, como poderiam fazer isso? Atingidos pelo desemprego, muitos sequer conseguiram acessar os parcos recursos do auxílio emergencial do governo federal, nisso também se vê a diferença entre países ricos e pobres: enquanto o governo brasileiro oferece R$ 600 de auxílio, os Estados Unidos chegaram a R$ 6.295, ou seja, dez vezes mais. Giroux finaliza “o flagelo da desigualdade econômica e da desigualdade racial foram destacados como pragas que têm uma longa história nos Estados Unidos. O que inicialmente começou como uma crise médica emergiu como uma crise política e econômica, revelando um desastre ideológico ameaçador, mergulhado em violência policial e um grau punitivo de racismo.”
Tanto no Brasil como nos Estados Unidos, a pandemia explodiu as instituições econômicas ao mostrar a fraude neoliberal que é a defesa de redução do Estado. Nunca precisamos tanto dele, assumem os capitalistas, empresários e elites econômicas em uníssono esquecendo que foi a defesa do lucro e de sua fuga de obrigações, principalmente de pagar impostos, que produziu desigualdade e tirou dos pobres a possibilidade de acesso aos serviços públicos ”o capitalismo global foi interrompido, pelo menos temporariamente. O estado neoliberal fracassou diante da pandemia, expondo suas linhas de falha, revelando sua incapacidade de proteger os pobres, trabalhadores essenciais e os mais vulneráveis de níveis desproporcionais de risco e morte. A pandemia evidenciou os destroços da desigualdade estrutural, social e econômica, revelando-as em toda a sua crueldade e seus efeitos, menos como condições atemporais do que como expressão previsível de uma sociedade em que a riqueza e a alocação de poder estão concentradas em relativamente poucas mãos”, afirma Giroux.
Nos Estados Unidos, enquanto os pobres, os sem-teto, os encarcerados e os desempregados são agora vistos como uma ameaça geral à sociedade – como possíveis portadores do vírus, no Brasil a elite é responsabilizada por trazer o vírus do exterior, daí o fato de a pandemia ter se iniciado pelos bairros ricos, e após, por meio dos empregados da elite, chegou aos pobres. Em Porto Alegre, os bairros com maiores números de casos, Petrópolis e Higienópolis, são os bairros onde se fixa a elite da capital gaúcha. Por isso, nos dois países, emergiu correntes de crueldade e de colapso dos valores morais na ideologia do individualismo extremo. “Isso é óbvio na crescente demanda por parte de muitos manifestantes de reabrir a economia, contra o conselho de médicos e especialistas. As narrativas que informam essas demandas costumam dar uma guinada feia em muitos protestos em todo o país. Por exemplo, o sinal de um manifestante do Tennessee afirmava: ‘Sacrifique o fraco/reabra’. Em um protesto em Chicago, uma mulher exibiu uma placa com um slogan nazista. Manifestantes armados de extrema-direita que protestavam contra o distanciamento social em Michigan exibiam suásticas e outras insígnias nazistas. O presidente Trump se referiu a eles como ‘pessoas muito boas’. É semelhante à mesma linguagem que ele usou para defender neonazistas e nacionalistas brancos em Charlottesville”, diz Giroux em relação à realidade americana.
A descrição de Giroux serve perfeitamente para o que ocorreu no Brasil de Jair Bolsonaro: aqui também ocorrem passeatas de empresários que, em seus carros de luxo, pediam pelo retorno ao trabalho – seus trabalhadores, é claro, seriam expostos aos vírus das aglomerações do transporte coletivo. Da mesma forma, manifestantes em Brasília pediam pelo retorno do AI-5, enquanto grupos neonazistas brasileiros também começaram a participar de protestos de extrema-direita. E, nas vezes em que o presidente Jair Bolsonaro vai à claquete que o espera na saída do Palácio do Planalto, como o presidente americano, se refere às manifestações contra a democracia como manifestações de “pessoas muito boas”.
Narrativa neoliberal
A narrativa neoliberal é promovida por décadas em ambos os países. No Brasil é intolerável a desigualdade que se vê nas notícias de dezenas de pessoas que não têm atendimento médico nas regiões mais pobres do país. Com a Covid 19, as classes sociais que podem ficar em isolamento querem os serviços prestados pela classe trabalhadora, em sua maioria negros e pobres, que fazem os chamados serviços básicos funcionarem, mas também os serviços considerados dispensáveis nesse período. O uso de aplicativos ampliou a exploração de milhares de entregadores, aprofundando a desigualdade de trabalhos já marcados pela precarização: trabalhadores que recebem uma miséria por um trabalho exaustivo e tendo de trabalhar inclusive doentes. Essa não é a maior prova da falência neoliberal?
No campo do combate a pandemia ficam evidentes nos dois governos as falhas de classe. Diz Giroux: “o governo Trump em meio a uma pandemia violenta não pode mais encobrir as falhas de um estado econômico e racial que assola a sociedade. Essas falhas incluem (e esta é a lista curta) a incapacidade de fornecer testes, ventiladores e equipamentos de proteção adequados para os trabalhadores da linha de frente e de emergência, em grande parte devido à sua falta de vontade de apoiar um plano federal que proporcionaria investimentos robustos em uma assistência médica equitativa para a construção de um sistema social forte que dá valor a disposições sociais cruciais.”
A situação é similar no Brasil, onde o governo Jair Bolsonaro, em meio à pandemia, troca de ministro da saúde ao menos três vezes, é incapaz de adquirir testes em número suficiente para a população e vê suas encomendas internacionais de equipamentos de proteção individual serem cancelados pelas chineses devido as compras do governo americano e os respiradores encomendados pelo governo do Estado da Bahia “surrupiados” por ninguém menos que Donald Trump! Sem um ministro da saúde, cargo assumido interinamente por um militar, o governo brasileiro também revela sua incapacidade de gerenciar a crise e não é à toa seu interesse em manipular a divulgação de dados. “A pandemia da Covid-19 revelou os custos sociais da aceleração dos aumentos da desigualdade nos últimos 40 anos, especialmente visível em relação às práticas de sub-financiamento e discriminação dos cuidados de saúde, que são tratados como uma mercadoria que impõe uma carga financeira incapacitante a milhões de americanos que não têm seguro de saúde ou cujas políticas são esfarrapadas e muito inadequadas. Uma consequência do levante pandêmico foi o desmascaramento de um ethos neoliberal enraizado em enormes desigualdades que são incapazes de explicar o desemprego em massa, o número recorde de perdas de empregos e uma crise de saúde sem precedentes na história americana”, afirma Giroux. No Brasil, ainda que o SUS seja uma construção de valor inegável, a saúde, como nos Estados Unidos, é tratada como uma mercadoria que tem um custo que o governo deseja se desvencilhar, não podemos esquecer que o governo Jair Bolsonaro cortou 20 bilhões do orçamento da saúde.
O que Giroux afirma para os Estados Unidos serve também para o Brasil, que no início da crise do coronavírus fez uma transferência de recursos públicos para os bancos. Giroux diz que isso acontece porque o neoliberalismo se apropria das crises para seu uso, aquilo que Joseph Schumpeter denominava de “destruição criativa” e depois redefinida por David Harvey em seu livro A Condição Pós-moderna(Editora Loyola, 1992) como “destruição embutida na circulação do próprio capital”. Isso significa que o capitalismo usa a pandemia para “inventar novas maneiras de usar uma crise para sua própria vantagem. O tempo todo, permanecendo indiferente às consequências morais do capitalismo desenfreado”, seja através da “poluição da atmosfera, o desembolso de bens públicos ou através da promoção da desigualdade de renda“ conclui Giroux. Por isso se vê os esforços do ministro Paulo Guedes, mesmo durante a pandemia, de fazer passar as reformas que precarizam ainda mais os cidadãos, usando a ansiedade em massa e o medo para aprofundar a diferença entre ricos e pobres, exatamente como ocorre nos EUA, numa espécie de “pedagogia pandêmica que convence o público em geral de sua legitimidade por meio de uma enxurrada de propaganda corporativa e disseminada por diversos meios de comunicação”. E continua Giroux a sua definição da estratégia americana “a pedagogia pandêmica tenta persuadir o público em geral que é do seu interesse, e não do interesse da elite financeira dominante, de grandes corporações, de casas de investimento e os gigantescos bancos, as reformas que pleiteia para reorganizar a sociedade em torno de divisões raciais e de classe, política de dupla negociação que revela a crueldade e a ganância no coração do capitalismo neoliberal. Dada a sua ganância por lucros e o lucro das pessoas que sofrem ou morrem por serem pobres ou consideradas economicamente improdutivas, o neoliberalismo é um sistema socioeconômico totalmente destrutivo que carrega as marcas de uma ordem social monstruosa. A desigualdade aumenta a divisão social e, ao fazê-lo, piora as divisões de classe, raça e gênero.”
Imprensa e redes sociais
Ambos os governos agem no espaço público com mentiras na tentativa de desviar seu fracasso no combate à pandemia. Enquanto Donald Trump prefere manifestar-se pelo Twitter lançando afirmações que confundem a população, Jair Bolsonaro realiza lives em que aproveita para lançar gafes que repercutem na internet: ora toma leite – uma referência aos supremacistas brancos-, ora defende o uso de medicamentos sem efeito comprovado, como a cloroquina. Entretanto, entendo que, ao contrário do sugerido por Giroux, a imprensa brasileira tem-se revelado mais atuante na denúncia da desigualdade e do desemprego, o que provavelmente relaciona-se a disputa travada entre a principal rede de comunicação do país, a Rede Globo, com o candidato que ajudou a eleger e que, no entanto, taxativamente agora lhe é uma ameaça, fazendo isso mais intensamente que o jornalismo americano.
A participação da imprensa segundo Giroux, na crise econômica provocada pela pandemia, ocorre porque também estamos diante de uma crise de ideias. “Linguagem, moralidade e a incapacidade das sociedades capitalistas de resolver problemas práticos, se não essenciais, sociais e econômicos. Os direitos humanos não têm lugar neste discurso. O que deve ficar claro é que a desigualdade não é normal, a ignorância não é inocente, o poder não é benigno e a violência não é uma abstração. As desigualdades raciais e econômicas tornaram-se viscerais, severas em seus danos aos corpos humanos, mentes e senso de agência”. Ainda há um resto de dignidade na imprensa nacional que a impede de negar isso.
A demonstração do argumento de Giroux no Brasil pode ser visto na disputa ideológica entre posições de redes de comunicação em relação ao presidente Jair Bolsonaro, que vão da adesão até a mais direta oposição, mas não somente, é fundamentalmente produto do campo da luta entre a direita e a esquerda. Enquanto nos Estados Unidos, os direitos humanos tem-se revelado um alvo importante, no Brasil a ciência, intelectuais e as universidades sofrem ataques constantes, uma estratégia que se revela dominante e diversos ministros já manifestaram atitudes anti-intelectualistas e racistas, como vistas no presidente na Fundação Palmares.
A esquerda tem assumido o papel da critica a naturalização da desigualdade, da ignorância e do combate do uso da violência como forma de agir político. Mas, em ambos os países, a desigualdade se tornou visceral e comum, e por isso, a defesa de um senso comum de agência de Giroux significa aqui a adoção de uma agenda pública baseada no combate a desigualdade. O autor afirma, por exemplo, que a face da desigualdade americana é visível nas imagens das longas filas por alimentos, no empilhamento de cadáveres e caminhões refrigerados, efeitos da presença da morte na UTIs dos hospitais. Essas imagens também foram reproduzidas na pandemia brasileira. Pode-se dizer por essa razão que a imagem da tragédia americana é similar a nossa, como nas cenas dos trabalhadores de hospitais que colocam sua vida em risco e morrem ou nos apelos para que as pessoas fiquem em casa. Nos termos de Giroux, estas são “as imagens da desregulamentação, desmantelamento do estado de bem-estar social”, produto do fracasso de Donald Trump, no caso americano, e do fracasso de Jair Bolsonaro, no caso brasileiro.
No Brasil, a situação do presidente agravou-se com a prisão do ex-assessor de um e seus filhos, Fabrício Queiroz, peça chave no processo que investiga “rachadinhas” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, reforçando a imagem, como a do presidente americano, de um governo sórdido, de corporativismo familiar descarado e corrupção política.
Retardar medidas de proteção
Não nos enganemos, o capitalismo neoliberal é brutal porque até numa pandemia pressiona a política para retardar medidas de proteção à população. Isso é visível nos governos do Rio Grande do Sul, onde tanto o governador Eduardo Leite como o prefeito Nelson Marchezan Jr, ambos do PSDB, tem suas medidas de prevenção mediadas, reduzidas e flexibilizadas pela pressão do empresariado. ”Esse aparato de repressão funciona para negar aos mais vulneráveis o acesso à assistência médica, um salário digno, proteção dos trabalhadores e o desenvolvimento de fortes movimentos trabalhistas capazes de desafiar o poder corporativo, bem como a crueldade da austeridade e das políticas de direita que mutilam e matar centenas de milhares, como é evidente na atual pandemia, analisa Giroux”
Há no estado gaúcho, inclusive, casos de rebeldia entre prefeitos que não aceitam as medidas de restrição impostas pelo governador, que repetem aquilo que já se vê nos EUA. “Relações iníquas de riqueza e poder são defendidas abertamente no chamado para reabrir a economia, restringindo ou eliminando medidas de proteção que retardariam o ritmo do vírus. Mais uma vez, correm maior risco as populações consideradas descartáveis, como pessoas de cor, imigrantes sem documentos, pobres, idosos e classe trabalhadora. A desigualdade zomba do distanciamento social, especialmente para os profissionais de saúde que não possuem equipamento de proteção adequado e, mais ainda, para os migrantes, idosos, pobres e aqueles – principalmente pessoas de cor – encarcerados em prisões, prisões e centros de detenção, que falta qualquer forma de proteção e serviços médicos adequados”, pontua Giroux.
Giroux está correto ao criticar a política – porque suas ações não protegem as populações mais sacrificadas – e a economia porque ela é, ao final, quem teima em encher seus cofres enquanto produz os caixões de seus trabalhadores. Por isso o autor usa a imagem de zumbis da elite corporativa para se referir aos governantes “Crucial aqui é priorizar a saúde pública e a justiça social para todos” diz Giroux, com isso querendo dizer que são apenas as elites que têm acesso à água limpa para lavar as mãos e dinheiro para comprar máscaras. Se nossos políticos são uma espécie de zumbis, a crítica do autor é de que não passam de mortos-vivos que sugam o bem comum em nome da elite financeira.
“As noções mutuamente dependentes de justiça social e igualdade precisam ser repensadas através de uma compreensão mais ampla dos bens comuns, o que compartilhamos como serviços e recursos essenciais em uma democracia substantiva. A linguagem do neoliberalismo está esgotada e deve ser considerada inimiga da democracia e da justiça econômica, particularmente porque se apresenta como uma forma de capitalismo racial e política fascista”, complementa o autor.
O presidente Jair Bolsonaro segue a risca a receita de Donald Trump e aos poucos vai eliminando os espaços intocados pelo capitalismo neoliberal no país, auxiliando na expansão da financeirização e comercialização de tudo. Lucrar com a saúde só pode acontecer num país onde foi corrompida a ética pelo capital, que busca o lucro ilegal sobre serviços de saúde, inclusive na pandemia, cuja deterioração da saúde pública corre a passos nunca vistos.
Para Giroux, o capitalismo criou as condições para expansão do novo coronavírus e por esta razão a pandemia precisa servir para reimaginar um mundo sem o neoliberalismo predatório. “A comunidade é uma esfera pública robusta que não pode ser construída sobre os laços de medos compartilhados e o discurso do fanatismo e do ódio”, diz Giroux, o que significa que a luta para combater o vírus também é uma luta para combater o status quo, a distância entre ricos e pobres em nome de novas formas de solidariedade global.
A pandemia mostrou que a crítica social é uma questão de vida ou de morte, que exige uma luta contra a pilhagem da elite corporativa, que nega a milhões as condições humanas básicas, que cria um mundo sem justiça ou compaixão. “A desigualdade social e econômica tornou-se uma forma de violência estatal organizada que nutre as sementes da limpeza racial, supremacia branca, militarismo e uma cultura de crueldade e onde a justiça e a compaixão desaparecem – assim como a legitimidade de um sistema capitalista predatório que falha em fornecer educação de qualidade, assistência universal à saúde, empregos decentes, um salário digno e um contrato social viável”, afirma Giroux. Nossa constatação é que o capitalismo predatório brasileiro se tornou equivalente em termos de perversidade ao modelo norte-americano, já que produz uma desigualdade grotesca baseada em divisões de classe e necessidades econômicas que pervertem todas as relações humanas. Não há como criar condições para a democracia no contexto neoliberal, diz Giroux, lição que serve também para o Brasil. Enquanto milhões morrem nos EUA porque não têm seguro saúde, no Brasil a morte é produzida pela ausência de políticas públicas, de investimento em saúde pública. Em ambos, como aponta Zygmunt Bauman, sujeitos tornam-se descartáveis e os velhos são encaminhados para a exclusão terminal nos hospitais.
O problema do coronavírus não é apenas econômico, mas político. A desigualdade, tanto a norte-americana quanto a brasileira, permite a emergência de políticas draconianas que combinam com ideais fascistas. Não é apenas o caso brasileiro do grupo conhecido como “Os 300”, que em realidade, é bem menos do que isso, em suas cenas junto ao Supremo Tribunal Federal, mas de uma forma de pensar fascista das classes sociais médias e altas que vêm se fortalecendo e apoiando o presidente de forma cega. Nos Estados Unidos, o desdém pelos direitos humanos é feito ao mesmo tempo em que a proteção do poder corporativo, que termina, em ambos os casos, no “endosso mais ou menos explícito da violência contra inimigos políticos”, segundo Giroux.
Há espaços variados nos dois países de uma retórica incendiária de medo e demonização, que no Brasil é visível nas formas de violência difundidas nas redes de whatsapp contra a esquerda. Ambas as estratégias, como caracteriza Giroux para o caso americano, revelam também para o caso brasileiro, a existência de uma fantasia de controle autoritário: não é por isso que nos dois países, seus presidentes se recusam a criticar atos violentos, seja por supremacistas brancos nos EUA, sejam pelo grupo “Os 300”, no Brasil?
O que a leitura de Giroux nos mostra é que as armas neoliberais são as mesmas nos dois países: gás lacrimogêneo e balas de borracha. “Para o retorno triunfal de Trump, sua campanha decidiu que não é necessário distanciamento social. Ele queria que isso fosse um espetáculo, repleto de adoração mais barulhenta possível, não assumindo nenhuma responsabilidade por pessoas que possam ficar doentes ou, nesse caso, cair mortas”, finaliza o autor. Essa não é a mesma estratégia política de Jair Bolsonaro – esse apelo ao espetáculo político misturado com elementos fascistas?
O germe fascista presente no capital financeiro é aquele que afirma que algumas pessoas são descartáveis. Não foi esta a posição do presidente Jair Bolsonaro quando diz que algumas pessoas vão morrer, “e daí”? Essa busca de lucro a todo custo é fascista. “Por trás desse apagamento da desigualdade sistêmica, existe uma cultura maligna de crueldade, privilégio incontrolável, um modelo distópico de descartabilidade e o eco sombrio de um passado fascista. Sob Trump, o autoritarismo não aumenta mais lentamente. Agora avança a uma velocidade vertiginosa, e é usado como um distintivo de honra”, nos chama atenção Giroux.
Por essa razão, toda reação importa. Nas ruas, em manifestações, mas também na mídia e na imprensa. É a construção da contra narrativa, que luta para ocupar seu espaço. Promovida pelos órgãos, instituições e pessoas críticas, vêm emergindo no Brasil nos protestos antifascistas que estão na ordem do dia. Grupos organizam-se nas redes sociais em defesa da democracia, mostrando que é possível resistir. Análises críticas permeiam os meios de formação de opinião, uma imprensa crítica faz seu papel de questionar o poder, o capitalismo e os movimentos fascistas. Como diz Martin Luther King “quem aceita o mal sem protestar contra ele está realmente cooperando com ele.”
Jorge Barcellos é historiador, mestre e doutor em Educação pela UFRGS. É autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014) O Tribunal de Contas e a Educação Municipal (Editora Fi, 2017) e A impossibilidade do real: introdução ao pensamento de Jean Baudrillard (Editora Homo Plásticus,2018). É colaborador de Sul21, Le Monde Diplomatique Brasil, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e do Jornal O Estado de Direito. Mantém a página jorgebarcellos.pro.br.