Os governos e as ruas
A polarização do último ano de governo Dilma perdura. Mesmo se houvesse pauta comum, o fosso que separou famílias, amigos, colegas de trabalho em dois continentes políticos é profundo. Alguém será capaz de lançar uma ponte?
Na Avenida Paulista, em 15 de março, os músicos tocaram o trecho “Fortuna”, de Carmina Burana, e um coro de milhares de vozes entoou “Fo-ra, Te-mer, Fo-ra, Te-mer”, na mesma cadência. O governo pós-impeachment começou sob protestos como esse, que prolongaram campanhas anteriores.
Tanto o “Fora, Dilma” como o “Não vai ter golpe” decorreram dos megaprotestos de 2013. Lá, em germe, estava o que se desdobrou em grandes ciclos de mobilização, que puxam o país em direções opostas.
O de junho de 2013 foi uma colcha de retalhos de movimentos que se condensavam em três setores dominantes na mobilização. Os autonomeados “autonomistas”, como o Movimento Passe Livre, trouxeram dos movimentos por justiça global as novidades: estilo performático de ativismo, ação direta e negação da liderança política. Outro setor, chamemos de “socialista”, era o que dominara as ruas dos anos da redemocratização à eleição de Lula: movimentos, sindicatos e partidos com suas bandeiras vermelhas, tônica redistributiva e liderança centralizada. Esses campos, à esquerda do governo, pediam por mais e melhores políticas públicas e expansão de direitos. O terceiro setor era o dos manifestantes com pouca experiência de ativismo, críticos das políticas sociais petistas e do sistema político como um todo. O nacionalismo os unia, por isso “patriotas”. Cartazes e pinturas faciais retomavam a simbologia do Diretas Já e do “Fora, Collor”, do qual herdaram também a agenda “a ética na política”.
No segundo ciclo, de 2014, os patriotas ganharam a hegemonia das ruas. Avolumaram-se e se diferenciaram em grupos liberais, conservadores e reacionários. Sua agenda do Estado mínimo se adensou com moralismo, autoritarismo e ataque a minorias. E a crítica, antes difusa “aos políticos”, confluiu para um foco, o impeachment de Dilma.
Em março de 2015 começou o terceiro ciclo, que recuperou agentes e agendas de 2013, mas em mobilizações sucessivas e em oposição entre si. O setor patriota criou a Aliança Nacional dos Movimentos Democráticos, com apoio do empresariado, cujos eventos difundiram uma retórica da moralização pública (anticorrupção) e do moralismo (pátria, religião, família). Ao antipetismo somou-se a heroicização do juiz Moro. Seus grandes eventos em São Paulo em 2016 (a depender da fonte, entre 500 mil e 1,4 milhão de participantes, em 13 de março, e entre 215 mil e 800 mil, em 17 de abril) mantiveram por fulcro o anti-Dilma.
Nesse ciclo, os outros setores inverteram posições entre si. O socialista, que desde 2013 via ameaçada sua supremacia tanto pelas inovações dos autonomistas como pela força dos patriotas, recuperou protagonismo na campanha anti-impeachment. Sindicatos, movimentos e pequenos partidos nessa linha investiram em atos disruptivos do cotidiano das cidades (bloqueios, ocupações, acampamentos) e do sossego da família Temer (eventos à sua porta no Alto de Pinheiros). As coalizões Frente Povo sem Medo e Frente Brasil Popular, com apoio da base do PT e de sindicatos, especialmente a CUT, assumiram a liderança e produziram o evento mais volumoso de defesa do governo petista em São Paulo, em 18 de março de 2016, que teve entre 95 mil e 800 mil participantes, conforme a fonte.
Assim, socialistas encorparam, autonomistas encolheram. Mas não sumiram. Houve uma soma de pautas: estado de direito, direitos sociais, demandas identitárias, de gênero, e outras na mesma direção. O cerne, contudo, tornou-se reativo: anti-impeachment, antiajuste fiscal, anti-Cunha.
O muro metálico, erguido na Esplanada pouco antes da votação do impeachment, solidificou a polarização entre anti-PT e antigolpe. As grades, como as ruas, expressaram o racha do país.
O governo pós-impeachment nasceu nesse terreno movediço: uma sociedade mobilizada e dividida. E sem base de apoio. Muitos foram às ruas derrubar o PT, não elevar o PMDB a mandatário. Isso se escancarou, por exemplo, na abertura das Olimpíadas, quando Temer foi tão vaiado quanto Dilma tinha sido na Copa do Mundo.
Com a troca de governo, o volume e a frequência das manifestações diminuíram. Coisa comum em ciclos de protesto. Ao pico de participação se segue a ressaca dos cidadãos, que voltam à rotina (e ao Facebook), e os ativistas profissionais retomam o controle das ruas.
Os patriotas se recolheram até que o novo governo, tentando estancar a Lava Jato, esclarecesse que sua pauta não era a da moralidade pública. Em reação, MBL e Vem Pra Rua organizaram, em 4 de dezembro de 2016, manifestações em 83 cidades, reunindo cerca de 200 mil pessoas em São Paulo. Atraíram de liberais a reacionários: ativistas antiaborto, pró-governo militar e outros. No dia 26 de março [após o fechamento desta edição], insistiriam na defesa da Lava Jato e contra o “acordão” para fugir dela.
Já os anti-impeachment, com CUT e as frentes Povo sem Medo e Brasil Popular na liderança, se reaglutinaram no “Fora, Temer”. Essa foi a toada desde o início da interinidade do vice como presidente em protestos de médio porte como os de 10 de junho e 31 de julho de 2016, e mesmo naqueles com pauta distinta, como nos ocorridos no Dia Internacional da Mulher. Mas no segundo semestre de 2016 a mobilização desinflou: poucos eventos tiveram mais que 15 mil participantes em São Paulo (por exemplo, em 29 e 31 de agosto e 7 de setembro). Há pouco, em 15 de março de 2017, esboçou-se uma reação, com grandes atos nas capitais, sobretudo em São Paulo, onde Lula discursou. A Paulista se tingiu de vermelho. O “anti” se consolidou como sufixo desse lado do espectro político: agenda negativa, de resistência às reformas trabalhista e da Previdência.
Assim, até agora, a luta política das ruas segue cindida em dois campos, mas ambos perderam capacidade de arregimentação. Os atos são menores e menos impactantes.
No interior de cada campo, houve realinhamentos. O setor patriota se diferenciou em grupos mais liberais e reacionários, com um conservadorismo tradicional de permeio. Vem Pra Rua e MBL competem para liderar o anseio compartilhado por reforma política. Do outro lado, a diferenciação de 2013 entre socialistas e autonomistas esmaeceu.
No entanto, a polarização do último ano de governo Dilma perdura. Mesmo se houvesse pauta comum, o fosso que separou famílias, amigos, colegas de trabalho em dois continentes políticos é profundo. Alguém será capaz de lançar uma ponte?
Os partidos, sim, tentam a travessia. Em 2013, muitos se diziam apartidários. Agora, a cena é outra. O campo patriota namora com o sistema político – vide o paulistano vereador Fernando Holiday. Já a mobilização de esquerda se reaproximou do PT. Investiu no velho líder (a presença de Lula nos atos o atesta), em vez de apostar num novo saído das ruas, como Guilherme Boulos.
Dos dois lados, a mobilização foi incapaz de gerar partidos novos à maneira do Podemos e do Ciudadanos, na Espanha. E o estrago que a Lava Jato vem fazendo nos partidos põe águano moinho dos candidatos “não políticos”. Deu certo com Doria, pode funcionar para Moro e similares.
*Angela Alonso é professora de Sociologia da USP e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap); Hellen Guicheney é doutoranda do Departamento de Ciência Política da USP e filiada ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e ao Cebrap; e Rafael de Souza é doutorando do Departamento de Sociologia da USP e filiado ao Cebrap.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}