Os liberais diante da crise
O futuro do livre mercado e as acusações sobre o modelo como causa da instabilidade econômica inquietam os liberais, que recorrem a variadas justificativas. Uns responsabilizam o Estado, outros culpam setores não devidamente desregulamentados e há ainda os que afirmam que a crise prova a eficácia dos mecanismos atuais
O vigor das convicções ideológicas se mede por sua capacidade de resistir às respostas duras da realidade. Armados de seu sistema lógico, os liberais franceses não parecem tão desconcertados pela crise quanto poderíamos imaginar. “Deixem os liberais fora dessa crise, não se trata de um fracasso das teorias liberais, nem mesmo de seus mecanismos”, pede Alain Madelin, antigo líder do liberalismo político. “O liberalismo constitui o melhor antídoto contra o entusiasmo dos impulsos coletivos e o melhor guia para reconstruir o capitalismo do século XXI”, assegura, por sua vez, Nicolas Baverez, economista e historiador, que conclui com audácia: “O liberalismo não é, então, a causa, mas a solução para a crise do capitalismo globalizado”.
“O mercado está do avesso”, admite Patrick Devedjian, um dos raros homens políticos franceses que reivindicam a etiqueta liberal. Ministro da Implementação do Plano de Recuperação, cargo criado por Nicolas Sarkozy após o colapso financeiro global, Devedjian parece bem posicionado para medir a amplitude da crise que sacode a França. A recessão se instala, a desconfiança se espalha e o Estado corre com sua maca por todos os lados. Mas nossos liberais não entregam as armas. Alguns deles não veem nem mesmo o que poderia realmente os afligir na tormenta atual. “Crise sempre existiu”, filosofa Philippe Manière. O diretor do Instituto Montaigne, think tank liberal muito ativo, lembra que o capitalismo purga seus desequilíbrios através de crises periódicas e é preciso, sabiamente, se resignar.
Para outros, a crise prova a eficácia dos mercados. “Todos os mecanismos liberais são colocados em ação”, se diverte Gerard Longuet. O senador da União por um Movimento Popular (UMP) lembra que assistimos às variações de juros, da cotação das moedas e dos preços de bens e serviços, que sofrem “ajustes perfeitamente liberais”. Segundo Longuet, os preços simplesmente se manifestam “com a emotividade dos mercados”.
Guardiões da fé
Sabine Herold entoa a mesma música com ainda mais entusiasmo: “A crise é a prova de que o mercado se regula”. A presidente da Alternativa Liberal, pequeno partido ultraliberal francês, se satisfaz porque “o mercado sanciona o fato de correr riscos excessivos”. O mesmo pensamento é levado ao extremo pelo economista Jean-Jacques Rosa. Reclamando sobre a baixa dos preços das ações, ele estima que “a propriedade deve, então, se transferir do domínio privado para os Estados, baseado em uma simples base de cálculo econômico e nas preferências ideológicas imutáveis”. Os guardiões da fé liberal não teriam motivo para serem perturbados pelo rápido intervencionismo público. “A estatização parcial dos bancos não anuncia o fim do capitalismo, nem a volta real da estatização”, acrescenta Rosa. “O fato responde simplesmente ao cálculo econômico racional de diversos tipos de investidores que se ajustam baseados num novo equilíbrio de propriedade [temporária].”
É preciso, no entanto, encontrar uma explicação para a violenta crise que quase afundou o sistema financeiro mundial. E ir além da irritação provocada pelos questionamentos do liberalismo, como o de Jean-Michels Fourgous, deputado da UMP que fulmina contra “a cultura antiliberal primária que influencia as explicações para a crise”. Sendo o ataque a melhor defesa, uma primeira resposta consiste em tentar colocar sobre o Estado a responsabilidade pelas infelicidades do presente.
O economista Pascal Salin também não hesita em apontar o dedo. “[Vivemos] a derrota de um Estado não suficientemente liberal”, diz. Como os liberais mais ardentes, ele questiona vivamente a Reserva Federal americana (o Fed): “A causa essencial dessa crise vem, com efeito, da extraordinária variação da política monetária americana nos últimos anos. Durante todo o período de juros baixos e de crédito fácil, o mundo ficou submerso em liquidez”. Os estabelecimentos financeiros teriam incitado a cessão de “crédito a devedores cada vez menos confiáveis”, criando as condições para a aparição de uma “bolha financeira” que acabou estourando. A conclusão do economista liberal não poderia ser outra: “Devemos parar, então, o processo feito injustamente contra o capitalismo e devemos procurar, ao contrário, um meio de liberar os mercados financeiros da influência estatal”.
Os procuradores liberais têm ainda o prazer sinistro de observar que a crise financeira explodiu primeiro em um setor que não estava precisamente desregulamentado. “Não existe mercado mais pervertido pelas intervenções do Estado que este do crédito hipotecário nos Estados Unidos”, afirma Vicent Benard. O presidente do Instituto Hayek de Bruxelas lembra que Fannie Mae “foi, no início, uma agência governamental, criada em 1938, pela administração Roosevelt, para emitir obrigações com juros baixos, em função da sua garantia federal, as quais alimentavam de liquidez um mercado de empréstimos imobiliários a juros reduzidos, acessíveis às famílias menos favorecidas”. Apesar de Fannie Mae ter sido privatizada em 1968 e desde então estar competindo com Freddie Mac, Bénard reforça que, “mesmo sendo oficialmente privados, os dois estabelecimentos foram sempre considerados como beneficiários de uma garantia implícita do Tesouro americano pelo fato de estarem sob a tutela pública e desempenharem um papel social”.
O economista questiona as políticas públicas que visam a aumentar a “taxa dos proprietários de habitação entre as populações de baixa renda e especialmente as minorias”. Tais políticas teriam conduzido essas instituições a correrem riscos não considerados. Conclusão: “Querendo acelerar artificialmente o que a economia livre realizava no seu ritmo, foi o Estado ora regulador, ora legislador, que levou à irresponsabilidade os atores da cadeia de crédito e provocou uma crise financeira grave, deixando à beira da falência várias famílias que pretendia ajudar”.
Bolha especulativa
Não passa pela cabeça desses economistas a possibilidade de que o desequilíbrio entre as remunerações do trabalho e do capital tenham incitado o endividamento excessivo das famílias… Essas hipóteses, além disso, não levam em conta o comportamento de agentes privados, que conscientemente se aproveitaram do inchaço da bolha especulativa antes de serem levados por ela.
Como explicação para a crise, os liberais se contentam em atacar as fraquezas da natureza humana. “Todo mundo tinha antecipado a explosão da bolha especulativa, mas ninguém segurou a batata quente”, diagnostica Mani&
egrave;re. O egoísmo generalizado impedia que o jogo terminasse.
Desde então, os liberais dirigem seus olhares para as causas técnicas da crise econômica. “Não é a desregulamentação, mas o fracasso da regulamentação que está sendo questionado”, afirma Hervé Novelli, liberal convicto e secretário de Estado encarregado do Comércio. “Trata-se de uma crise nascida de uma má regulamentação”, desdenha Madelin.Para ele, os efeitos perversos de certas regulamentações bancárias teriam agravado a crise. “Novas normas contábeis obrigaram os bancos e as empresas a darem em seus balanços um valor a seus ativos, que corresponde a cada instante ao preço que eles poderiam ser vendidos, se fosse preciso fazê-lo”, lembra. Aqui está quem valoriza os balanços em período de alta dos ativos, mas que os desvaloriza em épocas de crise, atitude que tem pesadas consequências por causa de outra norma, a Bâle II. Instituída em 2004, ela obriga os bancos franceses a conservarem em fundos próprios uma fração de seus compromissos. “Quando a crise chega e seus ativos se desvalorizam, os bancos não podem mais emprestar”, lastima Manière.
No entanto, nada disso teria acontecido se o sistema financeiro tivesse gerenciado corretamente seus riscos. Os liberais reconhecem que houve aqui um mau uso dos novos produtos financeiros . Eles sabem que os mecanismos sutis da emissão de títulos permitem ao sistema bancário transformar seus créditos em títulos financeiros. O fato é que, baseada em modelos matemáticos sofisticados, a composição desses títulos é cada vez mais nebulosa e, no lugar de diluir o risco, esses mecanismos acabaram por generalizá-lo. “Tinha alguma coisa estragada na pizza que contaminou todo o resto”, resume Manière. “Compramos e vendemos sem saber o quê”, sorri Devedjian.
“Não é o produto em si que está em questão, mas sua má utilização”, explica Baverez. “A situação se descontrola a partir do momento em que o crédito, de forma autônoma, nutre por si só o crédito e quando os pobres são procurados para que tomem dinheiro emprestado”.
“Existe nisso uma responsabilidade total do liberalismo, que supõe controles quando os produtos da emissão de títulos, frutos da imaginação criadora em matéria financeira, escapam às normas”, admite Longuet. Para o antigo ministro da Indústria, “a emissão de títulos torna-se perigosa quando os resultados procurados são amplamente superiores ao crescimento a longo prazo”.
Mas como explicar tal propensão a maximizar seus ganhos sem considerar as realidades econômicas? Os liberais se mantêm de pé criticando a assimetria das remunerações no setor financeiro. “Os traders tinham interesse em incitar os riscos excessivos”, nota Manière. “Eles estavam estreitamente associados aos ganhos, mas não ficavam por perto para assumir os riscos”. Rosa faz a mesma análise: “Os traders não dividem pessoalmente as perdas, simplesmente os ganhos. A sanção para eles se limita a um reenvio à empresa”. Segundo esse economista, o mesmo pensamento vale para todo o sistema bancário e financeiro: “As incitações para os bancos e as instituições financeiras correrem muitos riscos são parecidas com aquelas dos traders, particularmente com relação a essas que são muito grandes para poder escapar”. E os bancos centrais e seus diversos reguladores lhes serviram abusivamente de garantias a todo risco.
Se acrescentarmos a falha das agências de notação, frequentemente parciais, tudo estava posicionado para que uma crise maior se deflagrasse. O risco era tão grande que os desequilíbrios financeiros mundiais geravam imensa liquidez. Os excedentes asiáticos correspondiam aos déficits americanos. Esses mecanismos eram, todavia, conhecidos. A crise atual não merece, então, um mea culpa por parte dos defensores do capitalismo neoliberal? Alan Greenspan, que há muito tempo era considerado um verdadeiro guru, soltou esta surpreendente confissão, no dia 23 de outubro de 2008, diante do Congresso americano: “Aqueles entre nós, entre os quais eu me incluo, que acreditaram no interesse das instituições financeiras em proteger os capitais dos acionários, estão estupefatos”. Greenspan dirigiu o Fed de 1987 a 2006 e se confessou “muito ferido” ao constatar que o sistema continha um “vício”.
Os liberais, de qualquer forma, não se aprofundam muito em suas análises. Diretor da revista Commentaire, Jean-Claude Casanova se lastima apenas pela “confiança excessiva nos agentes econômicos e nos técnicos modernos das finanças”. “Foi um erro crer na autorregulação dos mercados. Essa autorregulação não é um princípio liberal, mas neoliberal talvez”, resume Baverez. Para Devedjian, a causa da crise atual “não é o liberalismo, mas sim a anarquia. Não se trata de liberalismo, mas sim do mercantilismo selvagem, o que lembra o comércio de escravos africanos”.
Hérold parece ser a única a lamentar que o Estado seja forçado a socorrer banqueiros em perigo. “Eles jogaram e perderam, deveriam ser deixados à própria sorte”, diz, concordando“com Olivier Besancenot quando ele lastima essa socialização das perdas depois da privatização dos lucros”.
O estado é o bombeiro
A maior parte dos liberais, porém, se alegra com a intervenção estatal. “Somente ela pode regular as catástrofes naturais, e esta é uma delas”, defende Fourgous. “Ninguém mais além do Estado pode assegurar a confiança, é o seu dever”, ressalta Casanova. “Salvar os bancos é verdadeiramente da responsabilidade do Estado”, dispara ainda Manière. “Encontramos o Estado com o benefício da estabilidade que lhe é próprio”, acrescenta Longuet. Madelin chega até mesmo a recriminar a potência pública por ter reagido muito tarde: “Era necessário nacionalizar as perdas de subprimes e isolar os ativos contaminados desde meados de 2007”.
Mas, atenção! O Estado não deve se aproveitar dessas tristes circunstâncias para se instalar no coração do sistema econômico. “Os Estados são como os bombeiros, que devem apagar o fogo e voltar para seus postos”, adverte Manière.
Os liberais sabem, no entanto, que as coisas não serão assim tão simples. O espetacular salvamento público do sistema bancário virou as representações políticas do avesso. “Difícil dizer ‘não’ aos desempregados e aos agricultores quando abrimos tanto a carteira para os banqueiros”, se aflige Bénard. “A demanda do Estado aumentará apenas para fazer face ao desemprego”, analisa mais se
renamente Casanova.
Alain-Gerard Slama está inquieto. “Com a crise vai se desenvolver na opinião pública um estado de espírito credor”. O intelectual da direita republicana ressalta que “a extensão do Estado corresponde à demanda social”, pois a crise atiça as necessidades de segurança e de proteção.
O espectro de um novo New Deal atormenta certos espíritos. O economista ultraliberal Jacques Garello espera o pior de Barack Obama. “Como nos anos 1930, veremos se generalizar a proteção social e o grande sonho de uma seguridade social à moda francesa.”
Os liberais moderados parecem evidentemente menos inquietos. Baverez distingue cuidadosamente as situações de Washington e de Paris: “Os Estados Unidos devem imperativamente lançar um New Deal para modernizar suas infraestruturas e aumentar os impostos, especialmente para os ricos, considerando o imposto retido na fonte de 34%. Bem diferente é a situação da França, em que as despesas públicas e o imposto retido na fonte atingem 54% e 44,4 % do PIB”.
Um fato parece, todavia, certo: o trem das reformas liberais na França está parado. “Não é possível manter um discurso protetor e continuar simultaneamente com reformas liberais”, lastima Slama. Uma constatação partilhada com Herold: “As reformas liberais são mais necessárias que nunca, mas vão se tornar impossíveis”.
Sobre esse ponto, a plasticidade pragmática de Sarkozy tranquiliza os liberais. Os ultras, que nunca consideraram o atual chefe de Estado como um dos seus, se mostram particularmente horrorizados por seu novo discurso. “Ele escolheu um plano keynesiano e socialista, já que o New Deal e o retorno do Estado são as ideias da moda – e nosso presidente segue sempre a moda com atenção e talento”, rosna Garello.
O futuro do livre mercado inquieta os liberais. Baverez constata que o sistema mundial “tornou-se instável” e que “nós estamos bem no fim do ciclo da idade de ouro e da globalização”. Slama antecipa que o debate público nos próximos anos será em torno do protecionismo. “Em época de recessão, a sensibilidade protecionista aumenta sempre”, acrescenta Casanova, que aposta, entretanto, na resistência dos produtores dos países emergentes e nos consumidores dos países ricos, que teriam interesse no livre mercado.
No fim, a opinião que reúne mais adeptos é de que a esfera liberal está em crise e que, longe de ser o início de uma revolução dos modos de pensamento, esta seria apenas uma fase ruim. “Se o capitalismo sair ileso dessa crise”, prevê Baverez, “ele saberá inventar novas regulamentações”.
“Creio que o Estado vai voltar ao lugar onde estava antes de Breton Woods e que vai novamente controlar a esfera financeira, mas não vamos voltar ao Welfare State”, confia Devejdian.Rosa exprime bem o otimismo congênito dos liberais: “Nós estamos sempre na idade da abundância de informação e da descentralização e é improvável que os Estados retomem o poder e se estendam sobre amplas frentes nos próximos anos. Um retorno ao socialismo é ainda menos crível. Uma crise não é suficiente, por si só, para inverter o curso de uma evolução já tão profundamente arraigada”.
Os adversários dos liberais, por outro lado, acreditam que os rumos do vento da história já mudaram. A crise atual abre um período de instabilidade dos equilíbrios ideológicos, mas o resultado dessa nova batalha de ideias não está escrito em lugar nenhum. Os liberais não estão, de qualquer forma, dispostos a depor suas armas.
*Eric Dupin é jornalista.