Os óbices do financiamento
As dificuldades em lidar com patamares e volatilidades excessivos das variáveis macroeconômicas e a conhecida aversão ao risco do setor financeiro privado levaram a que o sistema financeiro brasileiro de longo prazo se constituísse em torno de bancos públicos
A campanha eleitoral está dando ensejo à discussão de dois modelos de financiamento do investimento na economia brasileira, em particular, na infraestrutura. Um, de fundamento liberal defendido por uma gama ampla de partidos, mas levado ao paroxismo pelo candidato Bolsonaro; o outro, de natureza desenvolvimentista suportado pelo candidato Fernando Haddad. No primeiro, a ideia força é a de que não haverá problemas ao financiamento do investimento, desde que não se estorve o funcionamento do mercado financeiro por meio do intervencionismo. No segundo, reconhece-se as dificuldades intrínsecas desta matéria em economias pouco desenvolvidas e de moeda não aceita internacionalmente como a brasileira, advogando-se pela relevância de instituições públicas.
A tese de fundo liberal encontra dois tipos de obstáculos, um institucional e outro macroeconômico. No primeiro plano, destaca-se o pouco desenvolvimento, nos seus diversos segmentos, do mercado de capitais no Brasil. O mesmo ocorre com o sistema bancário privado com pouquíssima tradição no financiamento de prazos mais longos. Ou seja, o desenvolvimento institucional toma tempo e, por isso, mesmo, se fosse viável usar essas instituições financeiras para financiar o investimento, isso demandaria um período de transição. Porém, os obstáculos de natureza macroeconômica são ainda muito mais intensos e limitadores dessa transformação.
O primeiro deles é a taxa de juros, a sua magnitude e, não menos relevante, sua volatilidade. Esse é, na verdade, o obstáculo crucial para desenvolver um sistema de financiamento de longo prazo no Brasil, pois torna o custo de capital e o risco de descasamento de prazo, inerentes ao financiamento, intoleráveis. Costuma-se argumentar que durante períodos nos quais a taxa de juros cai e permanece estável, o financiamento privado se desenvolve, como ocorreu recentemente com o aumento das debêntures incentivadas. Isso de fato é tão verdadeiro quanto fugaz, tendo sido observado nos últimos dezoito meses, mas também entre 2011 e 2013, durante períodos delimitados de baixas taxas de juros. Mesmo assim, cabe considerar que os títulos de longo prazo – na verdade, nem tão longo prazo assim, de cinco anos –, só têm a emissão viabilizada porque são incentivados, ou seja, seus compradores não pagam Imposto de Renda. Com isso, se eleva artificialmente sua remuneração para que possam competir com os títulos curtos que já pagam taxas de juros muito altas. Em resumo, a despeito de curtos períodos excepcionais, as taxas de juros continuam altas e voláteis, impossibilitando o desenvolvimento do sistema privado de financiamento de longo prazo.
O segundo aspecto refere-se à flutuação da taxa de câmbio, um elemento essencial para definir os riscos de investidores internacionais. Flutuações exacerbadas no valor do real podem implicar perda de remuneração e mesmo de capital para esses investidores. Para os investidores de longo prazo, como, por exemplo, as multinacionais industriais, esses riscos são diluídos, não só porque são de fato investidores permanentes, como também porque, em muitos casos, exportam parte da produção. Na atividade de infraestrutura, contudo, produz-se quase exclusivamente para o mercado interno em moeda local. Ademais, esses projetos têm riscos específicos, em particular os de implantação de novas capacidades, caracterizados por períodos muito longos. Possibilidades de variações significativas da taxa de câmbio tornam incertos os custos do projeto e a rentabilidade. Uma vez implantados, a rentabilidade flutua ao sabor da taxa de câmbio. Esses riscos foram magnificados recentemente pela mudança da natureza dos investidores. Boa parte deles não se constitui mais de operadores das instalações, mas de investidores de carteira (private equity funds), que têm um engajamento distinto nos projetos, valorizando liquidez elevada e rentabilidade pouco variável. Diante dessas características, a única forma de atrair volumes substanciais de investimentos externos é garanti-los contra a flutuação cambial. Note-se que em ambas as situações, para viabilizar o financiamento privado, o Estado banca parte do seu custo via renúncia fiscal ou assumindo prejuízos cambiais.
As dificuldades em lidar com patamares e volatilidades excessivos das variáveis macroeconômicas e a conhecida aversão ao risco do setor financeiro privado levaram a que o sistema financeiro brasileiro de longo prazo se constituísse em torno de bancos públicos, sobretudo, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e, em menor escala, a Caixa Econômica Federal (CEF), tendo como fonte de recursos principais, fundos parafiscais: FAT e FGTS. Esses fundos, que têm origem na contribuição sobre o faturamento das empresas (PIS-PASEP) ou nas suas folhas de pagamento (FGTS), constituem patrimônio dos trabalhadores, sendo resgatáveis sob determinadas circunstâncias ou eventos e rendem uma remuneração fixa tendo como indexador a Taxa Referencial (TR). Concebidos também para servirem de base de recursos dos bancos públicos, eles sempre tiveram como característica taxa de juros fixadas administrativamente, em baixo patamar e com volatilidade reduzida. Os conservadores sempre criticaram esses fundos, por serem de uso exclusivo das instituições públicas ou por pagarem a seus cotistas taxas inferiores às do mercado. No que tange a este último aspecto ignoram o fato crucial: é a taxa de juros do mercado que é alta e não a dos fundos que é baixa.
A ampliação do financiamento à infraestrutura econômica e social pelo BNDES e pela Caixa enfrentará no futuro próximo importantes restrições decorrentes de insuficiência de recursos nos dois principais fundos, o FAT e o FGTS. O FAT, por exemplo, representa cerca de 30% do funding do BNDES, mas tem apresentado déficit sistemático, estimado em R$ 13,2 bilhões em 2018, projetando-se sua elevação para o patamar de R$ 25 bilhões em 2022. Para 2019, a estimativa de gastos do fundo com seguro desemprego e abono salarial é de cerca de R$ 80 bilhões e as receitas de R$ 50 bilhões. O déficit deve ser coberto integralmente por transferências líquidas do BNDES no valor de R$ 30 bilhões, sendo previstas novas devoluções nos anos seguintes da ordem de R$ 25 bilhões. Se adicionarmos este valor à devolução dos empréstimos do Tesouro ao BNDES, acertado em R$ 25 bilhões anuais, tem-se uma ideia clara do desfinanciamento ao qual a instituição será submetida.
Há uma pergunta de fundo aqui e que se refere às razões pelas quais o FAT tem apresentado um desempenho tão negativo. A primeira delas é a queda da arrecadação por causa das duas recessões de 2015 e 2016 e a estagnação, pois suas receitas dependem do faturamento das empresas. Todavia, as despesas também aumentaram substancialmente, sobretudo pela ampliação do seguro desemprego, a continuidade do pagamento de elevados valores do abono salarial e, também, pela apropriação das receitas do fundo por parte do Tesouro. Isso foi possibilitado pela Desvinculação das Receitas da União (DRU) que permitiu a apropriação de 30% da arrecadação do PIS-Pasep. Com a recuperação da produção e da receita e a queda do pagamento do seguro desemprego, o FAT recuperará em dois ou três anos o seu equilíbrio orçamentário. Todavia, dentro da lógica do desmonte do BNDES, o atual governo prevê a continuidade da cobertura do seu déficit eventual pelo BNDES.
Outro fundo no qual a situação é crítica é o FGTS, gerido pela Caixa, que financia além da habitação de interesse popular, a ampliação da infraestrutura urbana. Nos últimos anos, desde 2014 até a atualidade, a arrecadação anual caiu de um patamar de R$ 18 bilhões para R$ 5 bilhões. Isto fez com que o déficit, só para as necessidades de habitação, excluindo a infraestrutura, tenha atingido R$ 22 bilhões em 2018. Há dois problemas em curso que levam a essa situação. O primeiro, a recessão e a queda do emprego formal pois a origem do FGTS é a contribuição sobre a folha de salário das empresas. Mas há outras fontes de sangria e que dizem respeito à diversificação das possibilidades de saque, antes restritas a situações específicas, como demissão, compra de casa própria, aposentadoria, e que foram ampliadas no governo Temer. No afã de comprar popularidade, o governo Temer estendeu as possibilidades de saques ampliando os desequilíbrios financeiros do fundo. A principal medida foi a autorização de saque das contas inativas que fez cair a arrecadação líquida em 50% em 2017. A outra foi a permissão para a distribuição anual de 50% dos resultados obtidos, mudando a natureza do fundo – de um fundo de pecúlio para um fundo de rendimentos anuais. Tais medidas foram de tão grande intensidade, que o FGTS foi obrigado a vender parte de sua carteira de títulos de longo prazo para fazer face aos desembolsos, gerando importante desequilíbrio atuarial.
Embora a situação financeira de ambos os fundos seja recuperável, tanto com a retomada da economia quanto com medidas que restrinjam os saques não vinculados às suas finalidades precípuas, isto demorará algum tempo, durante o qual sua contribuição ao funding de longo prazo dos bancos públicos será restringida. Como a alternativa de financiamento via setor privado é possível, mas limitada e sujeita a várias injunções, é necessário reforçar durante um período transitório o funding de longo prazo das instituições públicas, o que poderia ser feito, de forma indireta, pela utilização de parcela das reservas internacionais, como já defendido aqui em outro artigo. Por fim, é necessário pensar também que as necessidades de investimento do país irão além dos recursos disponíveis nos fundos parafiscais e nas instituições públicas e que será necessário contar com a ampliação do financiamento privado doméstico para evitar o recurso excessivo ao financiamento externo. Mas isso depende do equacionamento da questão macroeconômica, especialmente do patamar e volatilidade das taxas de juros e de câmbio.
*Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.