Os processos de reparação e a situação das famílias atingidas
Em artigo, a advogada popular Victória Taglialegna Salles traz um relato de seu trabalho como coordenadora do projeto “Defesa da justiça e da reparação integral dos direitos das comunidades atingidas pelo crime da Vale em Brumadinho”
Nos últimos onze meses, período em que estou próxima da cidade de Brumadinho e das pessoas atingidas tendo uma compreensão do território e da localidade a partir da minha presença, vejo como um dos meus maiores desafios o de construir com as pessoas atingidas a participação nos processos de reparação a partir da disponibilidade do meu trabalho.
Olhando para o marco dos quatro anos do desastre-crime a partir das realidades e das narrativas que ouço do passado, posso dizer que o cenário social de Brumadinho tem piorado com o passar do tempo. A realidade aqui é muito diferente das propagandas enganosas que a Vale S.A passa nos horários nobres de televisão e na rádio sobre o imaginário da reparação pela empresa, discurso que é divulgado de modo unilateral e que beneficia a imagem da própria mineradora causadora dos danos individuais e coletivos, não sendo divulgadas as histórias reais pelas pessoas atingidas ao longo da Bacia do Paraopeba e do Lago de Três Marias.
Em um contexto social, há um elevado índice de adoecimento mental da população na bacia do Paraopeba que impacta, principalmente, as mulheres, pessoas negras, de baixa escolaridade, jovens e pessoas que vivem próximas à mineração fisicamente. Além disso, houve um aumento significativo da violência sobre as mulheres e de suicídio no território de Brumadinho, causados principalmente pela alteração social após o rompimento e em razão da sensação de impunidade, somada ao luto coletivo diante da insegurança jurídica da reparação.
Os atendimentos do sistema de saúde voltados para a saúde emocional subiram em mais de 60% após o desastre-crime do rompimento da barragem da Vale S.A. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizou uma pesquisa que apontou para níveis elevados de metais pesados no sangue e na urina de moradores de Brumadinho e região. A título de exemplo, entre os adultos, 33,7% apresentaram níveis aumentados de arsênio na urina e 37% de manganês no sangue. Entre os adolescentes, foram detectados níveis de metais acima dos limites de referência. Crianças de 0 a 6 anos também foram avaliadas por meio de exames de urina e, em todas as 172 amostras consideradas válidas para análise, foram detectadas a presença de pelo menos um dos cinco metais em avaliação (cádmio, arsênio, mercúrio, chumbo e manganês).
As regiões da bacia do Rio Paraopeba também viveram em 2022 impactos e danos causados pelas inundações decorrentes do transbordamento do rio. As pessoas atingidas relatam preocupações e ansiedades que surgiram em razão das inundações. Um dos aspectos citados são os impactos à saúde física e psicológica, além das transformações nas dinâmicas cotidianas da realidade local, modificando as relações comunitárias entre os vizinhos e a restrição do espaço social, impossibilitando o lazer das crianças, além da poluição do ar e do solo.
A população vive sob o dilema da minério-dependência, projeção continuada do sistema colonial capitalista colocada como única opção socioeconômica na região. Nesse aspecto, é importante mencionar que as mineradoras descumprem as leis promulgadas após o desastre, como a Lei Mar de Lama Nunca Mais, a Política Estadual dos Atingidos Por Barragens e a Política Nacional de Segurança de Barragens, mantendo seus modus operandi e colocando a população atingida pelos empreendimentos minerários em segundo plano e o lucro acima da vida, gerando um cenário de mais insegurança. Na atualidade, pessoas atingidas defensoras dos direitos humanos encontram-se amparadas pelo programa de direitos humanos do estado de Minas Gerais, pois tiveram suas vidas ameaçadas ao denunciarem as violações das empresas mineradoras no território e por lutarem por direitos básicos os quais são retirados pelas empresas. Isso é inaceitável!
Somado a isso, a ausência de acesso às informações sobre outras barragens no território com risco de rompimento continua causando terrorismo nas comunidades, como é o caso das estruturas Menezes I, Menezes II, BVI e BVII localizadas na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG. Na atualidade as estruturas estão passando por um período de simulado prático de emergência, cumprindo protocolos para atestar a sua segurança. Entretanto, essa ação tem incluído comunidades de Brumadinho/MG na nova mancha do rompimento das barragens de propriedade da Vale S.A., colocando novamente as famílias em risco. Diante da ausência de acesso às informações sobre essas barragens, há um pânico instaurado nas comunidades que estão na mancha.
As comunidades da bacia do Paraopeba vivem uma realidade de crime continuado. Há um luto coletivo, sendo que três pessoas ainda não foram encontradas nas buscas do corpo de bombeiros desde janeiro de 2019. No dia 24 de janeiro de 2023 a Justiça Federal aceitou denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra dezesseis pessoas e as empresas Vale S.A e a subsidiária no Brasil da certificadora alemã TÜV SÜD, pelo rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão em Brumadinho, responsável por ceifar a vida de 272 pessoas. Os crimes imputados são os de homicídio qualificado em sua forma dolosa por 270 vezes, crimes de poluição, contra a fauna e a flora. Até o momento nenhum réu foi condenado e a sensação de impunidade assola a vida das famílias e traz insegurança jurídica para as comunidades. É inaceitável a lentidão da justiça, que demorou praticamente quatro anos apenas para definir o juízo competente para processar e julgar o segundo maior crime trabalhista da humanidade.
Sobre a reparação dos danos coletivos causados pelo rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, o qual foi fruto do acordo celebrado entre o Governo de Minas Gerais e a Vale S.A e não contou com a participação das pessoas atingidas, este previu o valor total de R$ 37,6 bilhões destinados para as obrigações de fazer e de pagar pela Vale. Deste, somente foi executado em sua integralidade o Anexo 1.2 (Programa de Transferência de Renda – PTR).
O recurso destinado para a reparação vem sendo utilizado pelo governador Romeu Zema (Novo) para outras finalidades, como nos casos do projeto de construção do Rodoanel Metropolitano, obra que irá impactar comunidades atingidas e não atingidas pelo rompimento da barragem da Vale S.A. Além disso, realizou repasses para as cidades mineiras e para a promoção de sua reeleição para governador do estado de Minas Gerais no ano passado, governo que vem deixando um legado compatível com o do ex-presidente Jair Bolsonaro, marcado pela destruição do meio ambiente, de concessão de licença às mineradoras sem licenciamento ambiental e ameaça aos recursos hídricos e serras preservadas.
As medidas de reparação de modo geral não são satisfatórias, pois são executadas sem a participação das pessoas atingidas, sobretudo, perfazendo as vontades da empresa Vale S.A. e os acordos entre as instituições públicas, violando os direitos humanos, favorecendo a imagem da empresa e, simultaneamente, impactando os territórios com as suas obras enquanto há comunidades que ainda não possuem acesso aos direitos básicos como à água potável.
Em dezembro de 2022 as instituições de Justiça publicaram o edital de seleção pública para a seleção do consórcio que vai gerenciar os recursos do Anexo I.1 do acordo (Projetos de Demandas das Comunidades Atingidas), referente ao Programa de Reparação Socioeconômica, sendo em fevereiro de 2023 selecionada como entidade gestora a Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais, que deverá apresentar sua proposta definitiva de atuação por meio da participação das pessoas atingidas. Entretanto, a decisão ainda está pendente de homologação.
Sobre as indenizações dos direitos individuais homogêneos ainda não há uma definição sobre como serão as obrigações da Vale de reparar. Entretanto, foi proferida decisão no dia 14/03/2023 pela 2ª Vara de Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Belo Horizonte determinando a liquidação parcial de sentença no bojo da Ação Civil Pública aceitando a instauração de perícia específica para o levantamento dos danos individuais, garantindo o levantamento pelos assistentes técnicos das Instituições de Justiça (Assessorias Técnicas Independentes – ATIs) e pelo perito do juiz (UFMG). Essa decisão é uma vitória das pessoas atingidas e da articulação dos movimentos sociais e das Assessorias Técnicas, pois tem como principal garantia a inversão do ônus da prova, sendo a Vale S.A, a ré, responsável por comprovar o motivo quando discordar em reparar os danos causados às pessoas atingidas. Além disso, é uma decisão coletiva que vincula todas as pessoas atingidas da bacia do Rio Paraopeba e do Lago de Três Marias no que tange às garantias individuais.
Enquanto a Vale S.A age com negligência, é indiscutível que as mulheres são as pessoas mais impactadas pela ausência da reparação, pela violação dos direitos humanos e pelo crime continuado. São elas que estão no dia a dia da luta, na busca pela preservação da vida, pela reparação integral, memória e encontro. São elas que cuidam dos trabalhadores e trabalhadoras, que sofrem com a violência, com a ausência dos seus filhos, com a morte do rio, com a poluição das terras, do ar, das águas. Que deixaram de ter seus sustentos e são privadas dos seus sonhos, mas estão na busca incansável pela construção de realidades outras possíveis e que resistem à impunidade, tendo a justiça como horizonte. Por isso, não esqueçam Brumadinho, as comunidades da bacia do Rio Paraopeba e do Lago de Três Marias.
Victória Taglialegna Salles é mestre em Direito pelo Programa “Novos direitos, novos sujeitos”, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Advogada popular e coordenadora do projeto “Defesa da justiça e da reparação integral dos direitos das comunidades atingidas pelo crime da Vale em Brumadinho” – na Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser).