Incursão sentimental
Novo romance de Bernardo Carvalho, Os Substitutos toca relação de pai e filho às sombras da exploração amazônica e do genocídio indígena durante a Ditadura Militar
Pai e filho sobrevoam uma aldeia indígena em meio à Amazônia. O discurso da marcha do progresso, slogan da Ditadura Militar, ecoa pelo país. O pai, disposto a assustar os nativos, comanda um voo rasante, que sobressalta o menino. Nessa passagem, temos a tônica de Os substitutos, novo romance de Bernardo Carvalho. A questão indígena, pauta de destaque no cenário social brasileiro, já presente no notável Nove noites (2002), retorna à ficção de Carvalho quase uma década depois com novos ares de denúncia, a partir da exploração amazônica durante o regime autoritário e do genocídio de povos originários.
A crítica de Carvalho, entretanto, vence por sua sutileza. Em primeiro plano, uma paternidade problemática é forjada pelo autor, que coloca a lupa na relação entre dois personagens essencialmente distintos, unidos pelos papéis de pai e filho. Não é exagero apontar que o homem, caracterizado por impulsos amorosos volúveis e pelo ímpeto capitalista de “fazer dinheiro”, causa fascínio no menino de onze anos, arrastado para suas demandas. Ele, uma criança sensível, está à mercê dos caprichos dessa figura imperiosa.
A principal companhia do filho – e a mais bem vinda, vale dizer – é um romance de ficção científica, no qual um menino sem memórias está em uma nave espacial, com destino a outro planeta. O jovem parece não se destacar entre as outras crianças, escolhidas por suas habilidades especiais, úteis para a criação do “novo mundo”. Essa segunda história espelha a trajetória do nosso protagonista, que se sente abandonado pelo pai na Amazônia, enquanto negócios obscuros são resolvidos.
Já adulto, assombrado pelas memórias de seus dias de infância, ele encontra um volume peculiar: a biografia do autor de seu livro de infância. Dessa maneira, descobre que a fábula de ficção científica foi escrita como uma busca pelo pai que o escritor nunca conheceu. Nosso protagonista se reconhece em uma missão parecida, ao tentar reconstituir a figura paterna de suas recordações. Ele é, acima de tudo, um caçador de lembranças.
Os negócios do pai, permeados por uma atmosfera tão evasiva quanto ilícita, envolvem a negociação da madeira amazônica e acordos com norte-americanos, aproximando-se dos ideais da Ditadura Militar de exploração da floresta. Durante o período, a ocupação da Amazônia fez parte dos propósitos para expansão econômica do Brasil, em detrimento das populações indígenas do território e da preservação ambiental.
Mais velho, o filho segue a carreira de antropólogo, rascunhando um ensaio sobre o pensamento indígena, com base nas histórias ouvidas durante o período exilado na fazenda. É nítido como a experiência o marcou profundamente, embora seja desmotivado pelo pai, que o aconselha a se manter no limite de sua capacidade intelectual.
É também já maduro que ele desvela as paixões do pai e as nuances quase incestuosas da relação dos dois. Assim, o protagonista associa os rompantes sentimentais do homem ao seu próprio despertar amoroso. Após o fim de um romance falido, quando busca pelo amante, é o pai que ele encontra, abandonado em um bordel decadente.
Em um conflito com o namorado mais jovem, próximo de sua própria velhice, ele pensa em falar sobre os dias em que esteve na Amazônia. Mais do que isso, a narração da incursão de sua infância surge como uma possibilidade de salvação do relacionamento; uma redenção. Fica claro que uma grande culpa está em jogo. Numa cena que flerta com a psicodelia, ao se perceber solitário, os flashes difusos de outrora ganham novos contornos: a imagem de um genocídio. O romance põe em xeque a possibilidade de um “nós”, de uma existência coletiva.
Ainda que seja quase impossível desvincular a desventura na Amazônia do desbravar cósmico da ficção científica – motif que perpassa a trama – o romance vai além da associação óbvia. Ao fim, questionamos o quanto de violência há em toda gênese de colonização. Paira ao leitor a dúvida: quem são os substitutos do título? Bernardo Carvalho joga com o tempo estilhaçado, embora apareça menos pós-moderno nesse romance sensível, um lembrete das angústias que nos pertencem, sem possibilidade de substituição.
Os substitutos, Bernardo Carvalho | Companhia das Letras | 69,90
Giovana Proença é pesquisadora na área de Teoria Literária e Literatura Comparada na FFLCH-USP. Escreve sobre livros.