Os tutores da nação
Desde a Proclamação da República, o povo brasileiro tem reforçado sua simpatia pelos militares, que historicamente arrogaram para si o papel de tutores da nação
Em evento militar em Guaratinguetá (SP), no dia 27 de novembro de 2020, Jair Bolsonaro afirmou que “a liberdade do nosso povo passa por nós”, referindo-se às Forças Armadas. Em 9 de dezembro, em evento de confraternização de fim de ano no Clube da Aeronáutica de Brasília, cercado pelo Alto-Comando, ele voltou a exaltar seus colegas de farda, dizendo que diante de qualquer imprevisto “as Forças Armadas estão prontas para cumprir com o seu dever e ajudar o próximo”. Após a fala do presidente, o comandante da Aeronáutica, Antonio Carlos Bermudez, reafirmou a aproximação da instituição ao presidente: “As Forças Armadas acreditam que somente uma nação livre tem assegurada a certeza de um desenvolvimento condigno. Afirmamos que estaremos juntos e fortes cumprindo as missões que nos forem designadas para que o nosso Brasil possa permanecer em voo estável e ascendente rumo ao futuro que todos desejamos”. Essas falas reforçam a associação histórica entre a política e os militares, culminando na imagem destes como protetores da nação e defensores da liberdade e, portanto, necessários à política nacional. Não esqueçamos que a população brasileira reconhece as Forças Armadas como a instituição mais confiável do país.
A associação da farda ao conceito de liberdade, 35 anos depois do fim da ditadura (1964-1985), é mostra de que os militares permanecem vivos na tradição política e no imaginário brasileiro. Após 1985, eles afastaram-se da vida pública, dando tempo para que sua imagem fosse renovada. Desde as manifestações de 2013, a narrativa anticomunista do período da Guerra Fria, tão cara ao regime, voltou à moda, despertando o apreço pela farda, pois a eles associou-se o ato heroico de barrarem um suposto golpe comunista em 1964. Foi nessa onda anticomunista e de exaltação das Forças Armadas que o clã Bolsonaro surfou.
Não é de hoje que o clã do presidente simpatiza com essa retórica. Em 2016, durante a votação no Congresso do impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro disse: “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”. Ustra foi um torturador do regime militar. A fala foi recebida por muitos de seus colegas congressistas – e parcelas da população – com salvas e aplausos. Em 2018, seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, chegou a dizer que bastava “um soldado e um cabo” para fechar o STF e concluiu que, tirando o poder da caneta de um ministro do Judiciário, ele não é nada. Em 2019, Eduardo Bolsonaro voltou a protagonizar polêmica ao defender um novo AI-5 caso a esquerda radicalizasse, sugerindo haver a possibilidade de uma onda de sequestros e assassinatos perpetrados pela esquerda. O AI-5 foi editado em 13 de dezembro de 1968 e durou 10 anos, garantindo poderes praticamente ilimitados ao Executivo, chefiado pelo presidente e general Arthur da Costa e Silva.
Podemos citar outros pontos que mostram a aproximação da família Bolsonaro e seus simpatizantes com as Forças Armadas: no começo de dezembro de 2020, o deputado bolsonarista Daniel Silveira sugeriu ao povo que pedisse uma intervenção militar e dissolução do STF; Os atos antidemocráticos de maio, também no ano passado, que pediam o fechamento do Congresso e do STF, contaram com a presença do próprio presidente; A mensagem intimidatória do general Villas Bôas ao STF em 2019; Do slogan do governo “Brasil acima de tudo” – expressão originada no Exército dos anos 1960; O número de militares em cargos civis, mais de 6 mil; O fato do presidente ser um capitão da reserva e seu vice, Hamilton Mourão, um general.
Para que o que foi dito não fique perdido como apenas fatos isolados da história recente, ou até mesmo como mera coincidência sem qualquer conexão com a realidade concreta da história do Brasil, voltemos para períodos mais recuados para entendermos a associação entre Forças Armadas e política.
Durante o período colonial (1500-1822) o Brasil não tinha um Exército oficial, a responsabilidade da defesa estava a cargo da administração real e das populações que se organizavam em milícias. Com a vinda da família real portuguesa em 1808, o Exército brasileiro começa a estruturar-se. Idealizado pelo conde de Linhares, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra de D. João, é criada, em 1810, a Real Academia Militar. Será, entretanto, no Período Imperial (1822-1889) que ocorrerá a efetiva estruturação do Exército. Porém, a defesa era orientada pelas províncias (o equivalente aos estados de hoje), sob a forma da Guarda Nacional, criada em 1831, instituição fragmentada, pouco afeita a conflitos externos, já que sua função era manter a ordem interna. Ao criar-se a Guarda Nacional, seguindo modelo francês, tentava-se forjar um cidadão-soldado – o que não se concretizará.
Somente após a Guerra do Paraguai (1864-1870) que o Exército ganha real destaque, substituindo a Guarda Nacional. O conflito no país vizinho demonstrou o quão despreparado militarmente e materialmente estava o país, levando a própria instituição a criticar sua situação precária, colocando-os mais próximos dos ideais republicanos. Além disso, o conflito deu ao Exército caráter unitário e maior sentimento institucional. Essas transformações repercutem no movimento militar que derrubou a monarquia em 1889. Naquele momento, as Forças Armadas assumiam o protagonismo político brasileiro, tomando o poder para si. Como bem definiu José Murilo de Carvalho: “Os militares tinham provado o poder que desde o início da Regência lhes fugira das mãos. Daí em diante julgaram-se donos e salvadores da República, com o direito de intervir assim que lhes parecesse conveniente”. Se com a Guarda Nacional tínhamos um cidadão que desempenhava o papel de soldado, a partir da República, passamos a ter um soldado que desempenha o papel de cidadão – primeiro ele é miliar, depois cidadão. Segundo essa lógica, não importa que um militar seja o detentor do uso da força, ele também pode desempenhar o papel político, inclusive, se necessário, pode usar da força para mudar os rumos da política – marca recorrente em nosso país.
Os dois primeiros presidentes do Brasil foram militares: os marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894). De 1895 a 1930 houve relativa baixa presença militar na política, com exceção do presidente marechal Hermes da Fonseca (1910-1914) e da revolta liderada pelos militares da Escola Militar da Praia Vermelha, em 1904, que já tinham histórico de rebeldia, revoltando-se em 1895 e 1897. Diante da insatisfação contra o governo de vários setores da sociedade, desde intelectuais, operários e dos militares, a Revolta da Vacina de 1904 serviu de estopim para alguns dos homens de farda levantarem-se contra o governo republicano que lhes havia escapado das mãos em 1895. O movimento fracassou.
Para além desse episódio de 1904, não faltaram convulsões sociais que contaram com a participação das fardas, convocados para solucionar as tensões, como a Guerra de Canudos (1896-1897), a própria Revolta da Vacina (1904) e a Guerra do Contestado (1912-1916). Será em 1930 que a participação militar volta com força. Nesse ano, em um movimento liderado por civis e militares, o presidente Washington Luís foi deposto e preso a mando do general Augusto Tasso Fragoso. Em seguida, formou-se uma junta provisória, encabeçada pelos generais Tasso Fragoso e João de Deus Mena Barreto e o almirante Isaías de Noronha. Pouco depois, a Junta passou o poder para Getúlio Vargas que ficou à frente do governo até 1945, quando, novamente, membros das Forças Armadas descontentes, em um movimento articulado pelo general Góis Monteiro, depõem o presidente.
No ano seguinte é eleito Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), um general. Em 1951, com o retorno de Vargas, dessa vez democraticamente eleito, persiste o desagrado de alguns militares que o haviam derrubado em 1945, pois identificavam no presidente e em sua política nacional desenvolvimentista traços de um suposto comunismo. Na década de 1950 já estava em andamento a Guerra Fria e tudo que parecesse, o mínimo que fosse, com comunismo, era combatido. Assim, novamente articula-se um golpe. Em 1954 é publicado o Manifesto dos Coronéis, assinado por 81 oficiais superiores do Exército. O documento reclamava a falta de recursos para o Exército e protestava contra a proposta do governo de dobrar o valor do salário mínimo. Entretanto, o acontecimento culminante é o suposto envolvimento de Getúlio Vargas no atentado da Rua Tonelero, no dia 5 de agosto, contra Carlos Lacerda, resultando na morte não deste, mas do major da aeronáutica, Rubens Vaz. As Forças Armadas exigem a renúncia de Vargas que, acuado, suicida-se em 24 de agosto, frustrando o golpe.
No ano seguinte, Juscelino Kubitschek (1956-1961) ganha a eleição, mas um grupo liderado pelo coronel Jurandir Mamede e o civil Carlos Lacerda tentam impedir o empossamento. Entretanto, a resposta vem de dentro do próprio Exército: o marechal Henrique Teixeira Lott. Através de um contragolpe, ele garante que a Constituição fosse cumprida e JK assume o mandato em 1956.
Em 1961 Jânio Quadros é eleito, mas renúncia após oito meses, legando a cadeira do Executivo para seu vice, João Goulart (1961-1964). Jango é impedido de tomar posse depois que os ministros militares Odylio Denys, Silvio Heck e Grum Moss se negam a aceitá-lo como presidente. Tal como o marechal Lott em 1956, o general Machado Lopes vai na contramão de seus colegas de farda e reconhece Goulart como presidente. O país fica à beira de uma guerra civil. Assim, para evitar um trauma, o Congresso assina uma emenda constitucional estabelecendo o parlamentarismo. Goulart assume, mas sem poderes. O sistema político é alterado em 1963 através de um plebiscito e Goulart toma posse em suas funções de chefe do Executivo.
As tensões, entretanto, nunca desapareceram e será no ano seguinte, após comício na Central do Brasil, no dia 24 de março, que as Forças Armadas iniciam o movimento para deposição de Goulart. No dia 31 de março, o general Olímpio Mourão marcha com suas tropas de Juiz de Fora para derrubar o governo. Goulart é deposto e exila-se no exterior. O poder é assumido por uma junta militar autodenominada Comando Supremo da Revolução, composta pelo general Artur da Costa e Silva, o vice-almirante Augusto Rademaker Grünewald e o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo. No dia 11 de abril o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco é eleito indiretamente para presidente. Os militares só sairão do poder 21 anos depois.
Após esse retrospecto, percebemos o quão presente foi a atuação das Forças Armadas na política nacional, seja para formular ou frear golpes e pressionar ações governamentais. Voltando ao que foi dito inicialmente, não é mera coincidência a forte associação de Bolsonaro a essa instituição e nem o grande apreço do povo por eles – não nos esqueçamos que Bolsonaro foi eleito democraticamente por 55 milhões de pessoas, 55% dos votos válidos. Desde a Proclamação da República, o povo brasileiro tem reforçado sua simpatia pelos militares, que historicamente arrogaram para si o papel de tutores da nação. Assim, criaram uma aura mítica e heroica em torno da instituição. É como um círculo vicioso em que o povo desiludido se torna inerte: ao sentirem-se desemparados, procuram um herói. As Forças Armadas, vendendo uma autoimagem de honradez, ocupa esse papel e o povo compra essa imagem. Ao fim, o imaginário popular reproduz a associação nada verdadeira de política, militares e liberdade. A democracia brasileira não é civil e não anda de mãos dadas com a liberdade, a nossa democracia veste farda.
Talvez o povo goste de ser tutelado, goste da ideia de ser salvo, afinal, aquele que é salvo não precisa agir, apenas esperar pacientemente que o outro faça algo por ele. Talvez aí que esteja o fetiche nacional pela farda, como se o espectro histórico da presença militar na política fosse prova de seu caráter salvador. Acredito que essa lógica faça sentido em nosso país de contrários: a ex-colônia que se torna independente sob a liderança do herdeiro da metrópole; a monarquia que cria um sistema parlamentarista às avessas, tutelado pelo exótico poder moderador; e um monarca que é derrubado por um monarquista; uma República que, quando proclamada, trata seus cidadãos como súditos, negando-lhes participação política. Talvez, segundo a lógica dos trópicos, a interferência das Forças Armadas geradora de atrasos em qualquer amadurecimento democrático, afastando o entusiasmo e protagonismo dos civis no destino da República, seja um sinal de “liberdade”, como afirmou Bolsonaro, mas uma liberdade tutelada, amarrada e orientada. Uma liberdade à brasileira.
Luís Alfredo Galeni, mestre em estudos da literatura e professor de História.