Pacto federativo e segurança pública
Reduzir a pobreza e diminuir a desigualdade foram e são objetivos essenciais para conseguir um avanço histórico no país, mas o Brasil não será um país avançado enquanto tiver de conviver com altos níveis de impunidade, violência e abusos contra os direitos humanosIgnacio Cano
Em todos os estados federais, a coordenação das políticas de segurança entre os diversos entes federativos e a colaboração entre as diversas forças policiais constituem um grande desafio, ameaçado sempre pela fragmentação e a falta de coordenação. O Brasil não é exceção a essa regra. Em sua Constituição Federal, a segurança pública é basicamente uma competência dos estados federados, cada um contando com seu próprio poder judiciário e com duas polícias, uma investigativa e outra preventiva.
Nos últimos anos, entretanto, houve uma expansão crescente do papel dos atores tradicionalmente secundários: os municípios e o governo federal. Essa mudança progressiva decorre de dois fatores. O primeiro é uma demanda crescente da cidadania para que todos os poderes públicos sem exceção deem sua contribuição para melhorar a segurança dos cidadãos, considerando que a insegurança escalou até o topo da agenda política e social. Nesse sentido, o público tem cada vez menos paciência com o ritual de acusações mútuas entre estados e governo federal, que se responsabilizam reciprocamente pela criminalidade. Aqueles reclamando da porosidade das fronteiras que o poder federal não consegue blindar, e este último colocando a culpa nas políticas falidas dos estados.
O segundo motor da mudança é a distribuição dos recursos no Estado brasileiro, que mantém a maior proporção do poder de gasto discricionário na mão do governo federal e de alguns municípios ricos e/ou de grande tamanho. Os estados, por sua vez, contam com um orçamento muito limitado para investimentos na área de segurança e empregam a grande maioria de seus recursos com gastos de pessoal, em boa parte pessoal inativo. Assim, o paradoxo de ter mais responsabilidades e ao mesmo tempo contar com menos recursos, e vice-versa, precisava ser reconduzido a uma situação de maior equilíbrio. Na primeira década do presente século, o governo federal expandiu a Secretaria Nacional de Segurança Pública e criou um Fundo Nacional de Segurança Pública, destinado a financiar políticas de estados e municípios. Receoso de ser acusado de invadir competências de outros entes federativos, o poder federal agiu principalmente pela indução aos estados por meio do incentivo econômico do fundo, supostamente condicionado ao cumprimento de metas e políticas. Na prática, a condicionalidade foi sempre muito tênue, e a capacidade efetiva do governo federal de induzir políticas, muito limitada. Por sua vez, os municípios com recursos suficientes ampliaram seus programas de segurança, sobretudo na área de prevenção. Renomearam antigos programas em termos de prevenção de violência, criaram novos órgãos específicos ad hoc(como secretarias de Segurança ou de Ordem Pública) e fortaleceram suas guardas municipais. Contudo, a mudança foi paulatina e limitada, e ainda hoje se mantém vigente a contradição entre a falta de recursos onde sobram mandatos e a falta de mandatos onde sobram recursos.
Um grupo de especialistas em segurança, de diversas orientações ideológicas e filiações partidárias, reuniu-se recentemente para propor uma agenda federal de segurança que servisse de referência para os debates da campanha presidencial e, posteriormente, de guia para as políticas públicas a serem construídas a partir de 2015. A iniciativa resultou num programa de mínimos concretizado em seis medidas prioritárias. O denominador comum de todas elas é a necessidade de que o governo federal assuma um papel de maior destaque na segurança pública brasileira, deixando de lado suas ressalvas e o temor de melindrar os governos estaduais, e assumindo plenamente como sua a responsabilidade de melhorar a segurança de um país que sofre com altas taxas de homicídio e crimes violentos, só inferiores às observadas em países da América Central e do Caribe e muito superiores à média de seus parceiros do Cone Sul.
Para remodelar a distribuição de competências, propõe-se um novo pacto federativo nessa área, formalizado por meio de uma mudança constitucional que incorpore a segurança pública entre as competências, explicitamente compartilhadas entre os três níveis de governo: municipal, estadual e federal (art. 23). Em particular, espera-se que o governo federal conduza uma verdadeira política nacional de segurança, integrada e abrangente, que contribua significativamente para o financiamento de todo o sistema por meio de uma transferência de fundo a fundo, nos moldes do que ocorre hoje na saúde (SUS) e na educação (Fundeb). O financiamento, contudo, não poderia ser automático e deveria ser submetido ao cumprimento de metas e políticas pactuadas, ganhando uma condicionalidade efetiva que hoje está ausente e incorporando a capacidade real de induzir políticas nacionais.
A proposta prevê um papel particularmente ativo para a União em dois âmbitos. O primeiro é a formação de gestores e agentes de segurança pública, por meio da criação de uma Escola Nacional de Segurança Pública que ajude a padronizar e qualificar as práticas em todo o país. O segundo é a produção e disseminação de informações, bem como a avaliação das políticas públicas nessa área. Tradicionalmente, informações sobre violência e criminalidade são escassas, de baixa qualidade e sigilosas, o que compromete os diagnósticos e as avaliações das políticas, hoje à mercê de interpretações subjetivas e impulsos eleitorais. Um país como o Brasil, de 200 milhões de habitantes, não dispõe sequer de uma pesquisa anual de vitimização que sirva de parâmetro para estimar a incidência criminal. A criação de um Instituto Nacional de Estatística, Análise e Avaliação de Segurança Pública e Justiça Criminal ajudaria a produzir, qualificar e difundir informações essenciais, incluindo pesquisas de vitimização. Paralelamente, a difusão e integração de informações de diversos órgãos (polícias, Ministério Público, Judiciário etc.) poderiam contribuir para melhorar a coordenação entre eles para que funcionassem efetivamente como um sistema, que hoje só é perceptível no nome.
Reduzir a pobreza e diminuir a desigualdade foram e são objetivos essenciais para conseguir um avanço histórico no país, mas o Brasil não será um país avançado enquanto tiver de conviver com altos níveis de impunidade, violência e abusos contra os direitos humanos e enquanto não conseguir que seus cidadãos sintam que sua integridade está protegida.
Ignacio Cano é do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LAV-Uerj).