Para adiar o fim do mundo não é preciso reinventar a roda, mas sim distribuir os recursos para os territórios
Apesar de toda sabedoria, experiência e força de povos e comunidades tradicionais estar sendo mais reconhecida, ainda falta garantir o acesso a recursos de forma acessível, capilarizada e desburocratizada para os territórios
Se as mudanças climáticas, cada vez mais graves e presentes no nosso dia a dia, já anunciam o que muitos têm chamado de “fim de mundo”, o cenário de devastação ocasionado pelas queimadas aumentou a sensação de distopia. Parecemos viver em um mundo apocalíptico de ficção científica.
Os impactos das queimadas são de diferentes ordens, algumas mais facilmente identificáveis, outras mais complexas, como a perda de ecossistemas e os efeitos na saúde. Afinal, é rinite, gripe, “virada do tempo” ou poluição?
Há uma terceira ordem de impactos que acaba passando quase despercebida em uma sociedade já bastante adoecida na qual o estresse e a ansiedade se tornaram ponto comum. Falo da chamada eco-ansiedade que, segundo a American Psychology Association (APA), está relacionada ao medo crônico de sofrer um cataclismo ambiental e uma preocupação exacerbada associada ao futuro (ou a falta dele). Nas últimas semanas eu senti isso no meu corpo. Não só a taquicardia, o nervosismo, a dificuldade em dormir, mas principalmente o medo. E medo pode ser algo perigoso porque paralisa a gente e traz desesperança.

Créditos: https://www.otss.org.br/
Foi com esses sentimentos que tomei a estrada rumo ao I Encontro Internacional Territórios e Saberes que aconteceu entre os dias 9 e 13 de setembro em Paraty (RJ). Saindo das paisagens queimadas e com pastagens degradadas do interior de São Paulo, passando pela nuvem de fumaça na Serra do mar, cheguei ao calor escaldante do litoral fluminense. Mas, ao invés de me sentir sufocada, pude, pela primeira vez, respirar fundo porque me deparei com um cenário fértil e abundante de vida, sociobiodiversidade e ancestralidade. Com o esperançar vivo e vivente dos agricultores familiares, pescadores, marisqueiros, extrativistas, ribeirinhos, caiçaras, quilombolas e indígenas, além de estudantes, professores, pesquisadores, gestores públicos e ambientalistas. Pessoas e comunidades que estão na linha de frente das lutas socioambientais, sustentando o céu e indicando os caminhos para outros mundos possíveis, a partir das vivências de seus territórios.
Ao longo de uma semana de atividades, o evento demonstrou, na prática, que é possível (e fundamental) o diálogo de saberes tendo os povos e comunidades tradicionais como protagonistas. Eles têm soluções ou, ao menos, alternativas, ao destino catastrófico que temos construído para nós. Como traz a carta final do evento: “o território fala. Pois, escutemos!” Com isso, podemos encontrar e partilhar ações que não só resolvam as questões locais, mas também sirvam como potencializadores de transformações que podem ser replicados, servir de inspiração e fomentar políticas públicas que construam e promovam o Bem Viver.
Apesar de toda sabedoria, experiência e força desses atores estar sendo mais reconhecida, ainda falta garantir o acesso a recursos de forma acessível, capilarizada e desburocratizada para os territórios.
O primeiro desafio é garantir mais recursos em si, porque sim, eles existem em enorme volume, mas ficam concentrados em grandes organizações. Em ano de COP29, que terá grande foco no financiamento climático, e com a COP30 prevista para acontecer no Brasil no ano que vem, é necessário que as comunidades e povos tradicionais adentrem, de fato, o campo das negociações climáticas e consigam disputar de maneira mais justa os recursos dessa e de outras agendas. E aí entra a atuação dos fundos independentes e dos fundos e fundações comunitárias.
Porém, não se trata apenas de mobilizar recursos, é preciso também construir uma governança para a descentralização desses recursos de modo contextualizado e mesmo descolonizado. Porque se a burocracia serve, por um lado, para garantir transparência e controle social, por outro, ela dificulta e às vezes até impossibilita que o recurso seja utilizado. E, uma vez, utilizado ainda tem a prestação de contas.
Durante o encontro, discutiu-se as dificuldades que as lideranças comunitárias enfrentam ligadas ao baixo letramento causado pelo sucateamento da educação e a complexidade dos trâmites administrativos, jurídicos e contábeis dos editais. Além disso, muitas vezes elas têm que deixar o trabalho, o lazer ou a militância para “cuidar de um documento que ficou faltando”. E escrever projeto, arrumar a documentação, submeter ao edital, mobilizar parceiros, exigem horas de trabalho que não são remuneradas, sem contar o sentimento de frustração quando não são contemplados com o apoio.
Por fim, há o desafio de fazer uma gestão dos recursos de modo que atendam as necessidades e desejos reais das comunidades. Saber investir no que é prioritário pode parecer simples, mas não é, sobretudo quanto maior for a carência da comunidade. Tampouco se busca usar o recurso de modo mais estratégico e estruturante, já que um projeto tem prazo de validade e muitas vezes não permite pagar os custos de existência do coletivo ou da organização que representa a comunidade.
Apesar de tudo, têm sido criados arranjos inovadores e arquiteturas colaborativas para superar essas lacunas. É nisso, por exemplo, que se baseia o campo da filantropia comunitária, cuja premissa é a doação de confiança e o protagonismo das comunidades na destinação e no uso dos recursos financeiros. Que rompe a lógica das comunidades terem que se adequar ao edital de um agente externo que as pauta.
A filantropia comunitária também reconhece que já existem recursos, mesmo não financeiros, circulando pelas comunidades e territórios que podem e devem ser valorizados; busca traduzir informações legais, apoiar lideranças e coletivos não formalizados, realizar formações e apoio técnico, promover trocas de experiências, produzir conhecimento e incidir em políticas públicas.
O encontro, que de fato foi entre territórios e saberes, demonstrou a relevância dessas alternativas no campo do financiamento, comprometidas em potencializar os povos e comunidades tradicionais, pois somente assim poderemos barrar o projeto de destruição e morte que está em andamento, e manter viva a esperança por um mundo melhor. Mesmo com eco-ansiedade, sigo acreditando que é possível.
Isabela Kojin Peres é Bacharel em Gestão Ambiental (USP), mestre e Doutora em Ciências e Coordenadora de Programas do FunBEA – Fundo Brasileiro de Educação Ambiental