Para onde vai a Alemanha?
No dia 03 de outubro de 2020 a reunificação da Alemanha completou 30 anos. O que se pode dizer do país e sua inserção na Europa e no mundo após estas três décadas?
De país dividido em um mundo cindido em dois blocos político-ideológicos, com fortes restrições à sua ação externa, a Alemanha se viu, pela primeira vez desde sua fundação no século XIX, sem se sentir ameaçada por parte dos vizinhos (e sem ser vista como país hostil) e com amplas possibilidades de expansão. O Leste Europeu tornou-se, na prática, sua periferia econômica, através, sobretudo, dos investimentos de seu setor industrial. Menos dependente da França, após o fim da URSS, e com interesses que englobam especialmente a Rússia e a China, a Alemanha conseguiu, após a crise de endividamento de vários países europeus, impor aos demais integrantes da zona do euro sua agenda de austeridade fiscal, o que contemplou seu projeto de inserção na economia global.
A crescente importância da geoeconomia e da geopolítica da Ásia, com destaque para o crescimento econômico (com crescente capacidade bélica) sem precedentes da China nas últimas décadas somada à reafirmação militar da Rússia vão produzindo uma reconfiguração no cenário global e um reposicionamento estratégico, que vem se expressando, na última década, na perda de importância relativa da Otan para os Estados Unidos e seu crescente interesse em reforçar a presença na Ásia, em especial na contenção da China.
Política e Economia
A reunificação da Alemanha gerou, em seu primeiro ano, forte crescimento econômico propiciado pela absorção de 17 milhões de novos cidadãos do leste, com a renda elevada aos padrões ocidentais.[1] Após um início com crescimento acentuado, segue-se um período difícil, com baixo dinamismo econômico e desemprego elevado. A literatura econômica ortodoxa atribui estes problemas aos altos custos da reunificação e aos problemas da transição da economia planificada para a economia de mercado. No entanto, especialmente a partir do início dos anos 1980, com a ascensão do conservador Helmut Kohl, a política fiscal alemã já havia se tornado bem mais restritiva, o que trouxe impactos para o crescimento econômico. Esta política teve continuidade até os dias atuais, a despeito dos gastos realizados no lado oriental.
No entanto, o país experimentou, a partir dos anos 2000, período de maior crescimento econômico, incremento expressivo de suas exportações e acentuada redução do desemprego, que alcançou patamares historicamente baixos. Tal desempenho foi possível pela combinação de um ambiente externo favorável, de forte demanda pelos bens industriais alemães, com os ganhos de competitividade advindos da adoção do euro, moeda mais fraca do que o antecessor marco e, portanto, mais favorável ao setor exportador. Isto se somou, em termos de competitividade econômica, à estagnação salarial na própria Alemanha e à deslocalização de parte de suas empresas industriais, que puderam aproveitar a mão-de-obra especializada bem treinada e mais barata, recém integrada à União Europeia, do Leste Europeu, em países como Hungria, República Tcheca, Eslováquia e Polônia. Automóveis e outros produtos industrializados passaram a ter apenas a montagem final em território alemão. O fim da “cortina de ferro” tornou a Alemanha novamente o centro da geoeconomia europeia. Essa “grande Alemanha” representou também um maior alinhamento destes países com a política alemã para a União Europeia. A criação do euro também teve o efeito de deixar os países do sul da Europa com uma moeda mais forte do que suas antigas moedas nacionais (tornando-os, portanto, menos competitivos em relação à Alemanha) e possibilitou o endividamento destes com taxas de juros baixas, apenas um pouco acima das cobradas dos alemães. Este endividamento também significou encomendas às fabricas alemãs.
Como descrito por Hans Kundnami em “The Paradox of German Power” a economia alemã da década de 1990, bastante dependente do setor industrial e com um mercado de trabalho mais regulado em comparação com outros países desenvolvidos era vista por muitos economistas como “o doente da Europa”, despreparado para competir com as indústrias de países de mão-de-obra barata como a China e as nações do Leste Europeu. Kundnami aponta que estes mesmos economistas defendiam que a Alemanha desregulasse a sua economia e tivesse uma parte maior de seu crescimento advindos da área financeira e dos gastos do consumidor, baixos em comparação com outras economias desenvolvidas. No entanto, nesta questão, o consenso político alemão, com a grande importância do setor industrial e dos fortes sindicatos dos trabalhadores é de que o sistema econômico do país, centrado na indústria, é “irreformável”. O mesmo autor destaca que, numa mudança inesperada e notável, sob o social-democrata Gehard Schröder, nos anos 2000, a Alemanha teria sido beneficiada por uma combinação, nas palavras do economista Barry Eichengreen, de “boa política e boa sorte.”
A “boa política” mencionada por Eichengreen foi a redução dos direitos trabalhistas na Alemanha. Para tanto, Schröder convidou o diretor da Volkswagen Peter Hartz para chefiar a comissão que faria as sugestões para “flexibilização” das leis do trabalho. Foi estimulado, à semelhança do que já ocorria nos países anglo-saxões, o trabalho em tempo parcial, foram dispensadas as contribuições previdenciárias para remunerações de até 400 euros e foi facilitada a dispensa de funcionários para pequenas companhias. A redução do custo trabalhista, de fato, aliado a outros fatores, tornou a produção industrial do país mais competitiva e isto se deu, e aí vem a “boa sorte” citada pelo mesmo economista, no momento em que o mundo vivia um ciclo de crescimento generalizado na década de 2000. Período de forte demanda pelos bens que os alemães produzem com grande competência como químicos, bens de capital e automóveis, com destaque para os veículos de luxo. O desemprego, diferentemente do que ocorreu em outros países europeus como Itália, Espanha e França, cai continuamente e chega a mínimas históricas. Isto ocorreu, contudo, com queda dos salários em termos reais. Embora a taxa de desemprego tenha sido reduzida, a percepção entre os trabalhadores na Alemanha é de piora do nível de renda.
Na prática estas políticas significaram, no contexto da moeda comum, uma “desvalorização interna” alemã frente aos seus competidores europeus. Sua demanda doméstica não crescia para equilibrar ou tornar menores as diferenças no saldo comercial com os sócios da UE. Tal situação deu grande vantagem à Alemanha no comércio europeu e foi um dos fatores que mais fortemente contribuiu para a crise dos países da periferia europeia. Isto somado a uma demanda global fortemente aquecida dos anos 2000 (no que passou a ter especial destaque as compras por parte da China) deu forte impulso ao crescimento alemão pela via das exportações.
Esta nova Alemanha, reunificada e mais poderosa, buscando seguir seus interesses nacionais, constrói novas alianças e, ao mesmo tempo, corrói o tecido que une os países da zona do euro e da União Europeia.

Guerra e paz: a peculiaridade alemã
A dissolução da “cortina de ferro”, contudo, com a expansão da União Europeia para o Leste Europeu e a aproximação com a Rússia fez com que os interesses alemães e norte-americanos não mais estivessem convergentes como no período do Guerra Fria. Em 2002, quando os EUA de George W. Bush anunciaram sua intenção de agir militarmente contra o Iraque pela suposta posse de armas de destruição em massa, a Alemanha, pela primeira vez desde o pós-guerra, se colocou contra os aliados norte-americanos e em oposição à guerra no Iraque, no que teve o apoio da França, China e Rússia. O chanceler Gehard Schröder, também buscando recuperar a popularidade, vocalizou a discordância do eleitorado alemão com a promoção desta guerra.
A singularidade alemã manifesta-se em ser a maior potência econômica da Europa sem a mesma importância como ator estratégico, mesmo em relação a seus vizinhos europeus, França e Grã-Bretanha, estes com presença militar em outras regiões do mundo, além de serem potências nucleares. A traumática experiência da derrota na Segunda Guerra Mundial e do Holocausto promovido pelo regime nazista fazem do tema de possíveis ações militares das Forças Armadas alemãs em intervenções no exterior algo muito delicado na opinião pública nacional. Na década de 2000 os alemães participaram de ações da Otan no Afeganistão e as mortes de soldados do país fizeram crescer entre os alemães a resistência à atuação armada no exterior.
Política externa: a Europa e o mundo
A Alemanha se viu, portanto, ao fim dos anos 2000, em uma posição de poder sem precedentes na Europa e pôde, na condição de maior credor, quando da negociação do resgate dos países endividados da zona do euro, impor as suas preferências, o que estava assentado na recusa a qualquer forma de europeização da dívida pública que implicasse em transferências dos países mais ricos da região aos demais, o que significaria assumir a responsabilidade pela maior parte destas transferências. Como também já colocado anteriormente o país soube manejar, em proveito de suas exportações industriais, a nova situação criada pelo alargamento da União Europeia, a criação do euro e o impulso dado pelo crescimento na primeira década do século 21.
Em relação à política europeia da Alemanha, uma discussão bastante presente a partir de 2010 se deu sobre qual deveria ser o papel do país na União Europeia, tendo em vista a reação política em muitos países à duríssima posição alemã nas negociações dos planos de resgate e exigências nestes de medidas draconianas de austeridade. Reação que em países como a Grécia deram ensejo a um forte sentimento popular anti-alemão, inclusive com a lembrança da ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial e pedidos de reparação, o que foi prontamente rechaçado por Berlim. Alguns defenderam que a Alemanha precisaria assumir posição semelhante à dos EUA após a Segunda Guerra Mundial e descrita na “teoria da estabilidade hegemônica.” Pensada por um membro do Departamento de Estado, Charles Kindleberger, um dos formuladores do Plano Marshall e pelo acadêmico Robert Gilpin, esta preconiza que a estabilidade das relações internacionais depende de um “poder estabilizador”, um Estado Nacional que forneça “bens públicos” globais como moeda internacional, livre-comércio, coordenação de políticas econômicas nacionais ou políticas anticíclicas de eficácia global. Mas a comparação é inadequada A teoria da estabilidade hegemônica foi construída por pensadores norte-americanos tendo em consideração o papel dos Estados Unidos e a estabilidade global.
A Alemanha não tem uma moeda com a penetração internacional do dólar e nem força militar para se sustentar como “hegemon”, mesmo no continente. A Otan é comandada pelos Estados Unidos e a segurança dos europeus depende da aliança com os norte-americanos. A Alemanha exerce uma hegemonia econômica, calcada na defesa dos seus interesses, no que tem tido êxito, porém ao custo de fragilizar o projeto europeu.
Houve uma alguma inflexão, recentemente, quando foram acertados os termos do pacote de recuperação econômica pós-pandemia de Covid-19. Pela primeira vez na história, a União Europeia emitirá títulos conjuntos de dívida para captação no mercado de 800 bilhões de euros até 2026 para capitalizar um fundo de resgate. Parte dos recursos virão na forma de subsídios e parte da dívida assumida diretamente pelos países beneficiados, como Itália e Espanha. Diferentemente dos pacotes de ajuda quando da crise de endividamento, nos quais a Alemanha impôs duras condições aos devedores e não aceitou qualquer medida de europeização de dívida, desta vez, contudo, a pressão dos países do sul, em especial da Itália, fortemente prejudicados pela pandemia, fez com que o governo Merkel mudasse sua posição e, em coordenação com a França, apoiasse este maciço plano de ajuda. Para tanto convenceu os países com quais normalmente tem posições conjuntas em matéria monetário-financeira: Holanda, Áustria, Finlândia e Suécia. A Alemanha temeu pelo futuro do bloco, se o resgate com subsídios não fosse efetivado. E a União Europeia tem importância central para a política externa alemã e lhe dá um peso nas relações internacionais que não teria atuando como país isoladamente.
Especialmente a partir do governo Schroeder, a política externa alemã se torna mais pragmática e disposta a explorar as tradicionais vantagens exportadoras da indústria do país, que se torna, ainda mais, “export oriented”, além de investir em mercados em forte expansão, como o chinês.
Conclusão
“Semi-hegemonia geoeconômica”. Esta é a expressão que melhor define a posição alemã no contexto europeu. Um país que exerce liderança regional, porém sem os instrumentos do poder das armas (hard power) e sim com a força da sua predominância econômica. A criação da arquitetura institucional da União Europeia e da moeda comum, embora tragam responsabilidades, que no contexto da pior pandemia em um século se transformaram em um pacote de ajuda aos europeus do sul com uma mutualização de dívida antes impensável, foram muito benéficos aos interesses nacionais da Alemanha. O euro e a mão de obra qualificada e barata do Leste Europeu, além da estagnação dos salários no próprio país lhe trouxeram vantagens competitivas ante os parceiros europeus e também fora da Europa e o país se “descolou” dos demais, mesmo em relação à França, em termos de desempenho econômico, com o desemprego chegando a níveis historicamente muito baixos. Contudo, ao custo de fragilizar o projeto europeu e gerar grande descontentamento nos países do sul, e também na França.
As relações com a China e a Rússia se intensificaram. Depois de décadas, durante a Guerra Fria, comprometidos com o Ocidente a Alemanha busca laços mais fortes à Leste, embora a crise na Criméia tenha despertado temores em relação à segurança no continente e Merkel tenha se colocado de forma crítica em relação à intervenção russa. Contudo, os alemães não querem acirrar disputas com Moscou e muitos defendem uma “equidistância” entre a parceria com o Ocidente e o Leste. Estar atado ao Ocidente passou a ser uma opção e não mais um constrangimento geopolítico. Como destacou Kundnami: “a história alemã, em outras palavras, ainda não terminou.”
Wagner Sousa é mestre em Sociologia pela UFPR e doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Fez o pós-doutorado em Economia Política Internacional na UFRJ. Atualmente é pós-doutorando em Relações Internacionais pela Unesp, onde continua seus estudos sobre política externa alemã, e editor do site América Latina
Referências
AHIJADO, Manuel. A União Económica e Monetária Europeia – Mitos e Realidades. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007
KUNDNAMI, Hans. The Paradox of German Power. New York, Oxford University Press, 2015
SOUSA, Wagner W. de. As Relações Franco-Germânicas e o processo político de criação da moeda comum europeia: do encontro em Hague ao Tratado de Maastricht (1969-1993) (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro, UFRJ, 2013
https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PEPI/teses/2013/Wagner%20Watson%20de%20Sousa.pdf
[1] Uma das decisões mais importantes do processo de reunificação da Alemanha foi a conversão dos ostmarks, a moeda da Alemanha Oriental em deutschemarks ocidentais, a partir de então a moeda do país reunificado. A taxa de conversão foi de praticamente 1:1, sendo que o deutschemark, lastreado na economia maior e mais desenvolvida da Alemanha Ocidental valeria bem mais, se se considerasse um preço de mercado. Economistas calculavam que o marco ocidental poderia valer 6, 9 ou até 12 vezes o valor dos ostmarks orientais. Uma reunificação nestes termos significaria um oeste rico e um leste recém integrado bem mais pobre. O então Chanceler Helmut Kohl tomou a decisão política da conversão em paridade praticamente igual, o que significou um custo elevado, mas garantiu a continuidade e a legitimidade do processo de reunificação. Além disso, nas duas décadas seguintes, a Alemanha investiu mais de 2 trilhões de euros no lado oriental.