Para preparar a reconquista
Ninguém mais acredita que a razão prevalecerá sobre as políticas de austeridade sem sentido, nem que a moral evitará os escândalos que misturam dinheiro e poder. Cada vez mais, a esperança de uma mudança de direção repousa no questionamento frontal dos interesses em jogoSerge Halimi
Eu quero saber de onde estou partindo
Para manter tanta esperança
Paul Éluard, Poésie ininterrompue [Poesia ininterrupta]
Algumas revelações nos remetem ao que já sabíamos. Acabamos de aprender que líderes políticos podem amar o dinheiro e frequentar aqueles que o possuem? Que, juntos, eles às vezes se comportam como uma casta acima da lei? Que a tributação fiscal mima os contribuintes mais ricos? Que a livre circulação de capitais lhes permite esconder seu saque em paraísos fiscais?
A revelação das transgressões individuais deveria levar a um questionamento do sistema que as engendrou. No entanto, nas últimas décadas, a transformação do mundo tem sido tão rápida que superou em velocidade nossa capacidade de analisá-la. A queda do Muro de Berlim, o surgimento dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), as novas tecnologias, as crises financeiras, as revoltas árabes, o declínio europeu: a cada vez, especialistas se revezam para nos anunciar o fim da história ou o nascimento de uma nova ordem mundial.
Além desses prematuros enterros ou desses partos incertos, três grandes tendências surgiram, mais ou menos universais, das quais, num primeiro momento, é importante fazer um balanço: crescentes desigualdades sociais, decomposição da democracia política e encolhimento da soberania nacional. Pústula de um grande corpo doente, cada “escândalo” nos permite ver os elementos desse tríptico reaparecerem separadamente e se encaixarem uns aos outros. O pano de fundo geral poderia ser resumido da seguinte forma: como dependem principalmente das arbitragens de uma minoria favorecida (que investe, especula, contrata, demite, empresta), os governos concordam com a deriva oligárquica dos sistemas políticos. Quando eles empinam diante dessa negação do mandato que o povo lhes confiou, a pressão internacional do dinheiro organizado trabalha para fazê-los saltar.
O clube dos bilionários
“Os homens nascem e permanecem livres e iguais perante a lei; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.” O primeiro artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão nunca foi, como todos sabem, rigorosamente observado. Ao longo dos tempos, as distinções foram motivadas por outra coisa que não a utilidade comum: o lugar onde se tem a sorte (ou azar) de nascer, a condição dos pais, o acesso à educação e à saúde etc. Mas o peso dessas diferenças era, por vezes, aliviado pela crença de que a mobilidade social iria contrariar as desigualdades de nascimento. Para Alexis de Tocqueville, uma esperança como essa, mais comum nos Estados Unidos que no Velho Continente, ajudava os norte-americanos a acomodar as disparidades de renda maiores do que em outros lugares. Um pequeno contador de Cleveland ou um jovem californiano sem diploma poderiam sonhar que seu talento e sua determinação os impulsionariam ao lugar que John Rockefeller ou Steve Jobs tinham ocupado antes deles.
“A desigualdade em si nunca foi um grande problema na cultura política norte-americana, que enfatiza a igualdade de oportunidades em vez da igualdade de resultados”, lembra hoje o intelectual conservador Francis Fukuyama. “Mas o sistema só permanece legítimo se as pessoas continuam a acreditar que, ao trabalhar duro e dando o melhor de si, elas próprias e seus filhos têm boas chances de progredir, e se elas dispõem de boas razões para acreditar que os ricos assim se tornaram respeitando a regra do jogo.”1 Calmante ou anestésica, essa fé secular se evapora no mundo inteiro. Entrevistado seis meses antes de sua eleição para a presidência da República sobre as formas de “reabilitação moral” às quais ele apelava com suas promessas, François Hollande evocou o “sonho francês. Ele corresponde à narrativa republicana que nos permitiu seguir em frente, apesar de guerras, crises e divisões. Até os últimos anos, tínhamos a convicção de que nossos filhos viveriam melhor que nós”. Mas o candidato socialista acrescentava: “Essa crença se dissipou”.2
O mito da mobilidade social dá lugar ao medo do rebaixamento. Um operário quase já não tem mais chances de se tornar patrão, jornalista, banqueiro, professor universitário, líder político. As grandes escolas estão ainda mais fechadas para as categorias populares do que na época em que Pierre Bourdieu publicou Les héritiers[Os herdeiros], em 1964. O mesmo vale para as melhores universidades do mundo, cujas taxas dispararam.3 Incapaz de pagar por mais tempo os estudos superiores, uma jovem acaba de cometer suicídio em Manila. E, há dois anos, um estudante norte-americano explicava: “Eu devo US$ 75 mil. Em breve, não terei condições de reembolsar as mensalidades dos meus estudos. Como meu pai é meu fiador, ele terá de pagar a dívida. Também irá à falência. Terei, portanto, arruinado minha família, porque eu quis me elevar acima da minha classe”.4 Ele queria viver o sonho americano, “os farrapos da fortuna”. Por causa dele, sua família vai percorrer o caminho inverso.
Quando o “vencedor leva tudo”,5 a desigualdade de renda é por vezes uma questão de patologia social. Proprietária do gigante da distribuição Walmart, a família Walton tinha trinta anos atrás 61.992 vezes a riqueza média norte-americana. Provavelmente, não foi o suficiente, porque hoje tem 1.157.827 vezes mais.6 A pátria de Silvio Berlusconi está ligeiramente atrás em relação às proezas norte-americanas, mas, no ano passado, o Banco da Itália anunciou que “as dez maiores fortunas nacionais [detinham] tanto dinheiro quanto os 3 milhões de italianos mais pobres”.7
E agora a China, a Índia, a Rússia e os países do Golfo estão disputando um lugar no clube dos bilionários. Em termos de concentração de renda e de exploração dos trabalhadores, eles não têm nada a aprender com os ocidentais, aos quais, aliás, ministram de bom grado aulas de liberalismo selvagem.8 Os bilionários indianos, que em 2003 tinham 1,8% da riqueza nacional, açambarcaram 22% dela cinco anos depois.9 Enquanto isso, eles se tornaram, é verdade, um pouco mais numerosos, mas 22% da riqueza para um grupo de 61 indivíduos não é muito em um país de mais de 1 bilhão de habitantes?
Estamos em um ponto em que até o Fundo Monetário Internacional (FMI) se preocupa… Depois de ter por muito tempo proclamado que “a dispersão de renda” foi um fator de emulação, eficiência e dinamismo, ele observa que 93% dos ganhos de crescimento alcançados nos Estados Unidos durante o primeiro ano de recuperação da economia beneficiaram apenas o 1% de norte-americanos mais ricos. Mesmo para o FMI, isso parece muito. Pois, deixando de lado qualquer consideração moral, como garantir o desenvolvimento de um país cujo crescimento beneficia cada vez mais um grupo reduzido que não compra grande coisa, já que tem tudo e que, portanto, acumula ou especula, alimentando uma economia financeira já parasitária? Há dois anos, um estudo do FMI entregava as armas. Ele admitia que promover o crescimento e reduzir a desigualdade eram “dois lados da mesma moeda”.10 Os economistas também notam que os setores industriais que dependem do consumo das classes médias começam a perder oportunidades em um mundo em que a demanda global, quando não está sufocada pelas políticas de austeridade, privilegia os bens de luxo ou aqueles de qualidade bem inferior.
De acordo com os defensores da globalização, o aprofundamento das desigualdades sociais viria, sobretudo, de um aumento tão rápido do desenvolvimento de tecnologias que prejudicaria as pessoas menos instruídas, menos móveis, menos flexíveis, menos ágeis. A resposta para o problema seria então facilmente encontrada: educação e formação (dos retardatários). Em fevereiro, a The Economist, a revista semanal das “elites” internacionais, resumiu esse conto legitimista do qual estão ausentes a política e a corrupção: “O 1% mais rico viu sua renda saltar, de repente, por causa da remuneração que uma economia global baseada em altas tecnologias confere às pessoas inteligentes. Uma aristocracia que outrora gastava seu dinheiro em ‘vinho, mulheres e música’ foi substituída por uma elite educada nas business schools, cujos membros se casam entre si e gastam seu dinheiro com sabedoria, pagando cursos de chinês e assinaturas da The Economist para os filhos”.11
A sobriedade, a modéstia e a sabedoria dos pais atenciosos que treinam seus filhos na leitura da (única) revista que os tornaria melhores explicariam assim o crescimento das fortunas. Não é proibido aventar outras hipóteses. Esta, por exemplo: o capital, menos tributado que o trabalho, consagra à consolidação de seus apoios políticos uma parte das economias que tira das decisões que o têm favorecido: tributação acomodatícia, resgate dos grandes bancos tomando como reféns os pequenos poupadores, populações pressionadas para que os credores sejam reembolsados, dívida pública que constitui para os ricos um objeto de investimento (e um instrumento de pressão) suplementar… As conveniências políticas garantem ao capital que ele continuará a ser menos tributado que o trabalho. Em 2009, seis dos quatrocentos contribuintes norte-americanos mais bem-sucedidos não pagaramnenhum imposto; 27, menos que 10%; e nenhum pagou mais de 35%.
Em suma, os ricos usam sua riqueza para aumentar sua influência, depois usam sua influência para aumentar sua riqueza. “Com o tempo”, resume Fukuyama, “as elites estão em condições de proteger suas posições por meio da manipulação do sistema político, colocando seu dinheiro no estrangeiro para evitar a tributação e transmitindo essas vantagens a seus filhos por meio de um acesso privilegiado às instituições elitistas”.12 Pode-se adivinhar, então, que um possível remédio exigiria mais do que um retoque constitucional…
Uma economia globalizada, na qual “o vencedor leva tudo”; sindicatos nacionais divididos em pedaços; impostos baixos para as rendas mais altas: a máquina promotora de desigualdade remodela todo o planeta. As 63 mil pessoas (incluindo 18 mil na Ásia, 17 mil nos Estados Unidos e 14 mil na Europa) que possuem uma riqueza superior a US$ 100 milhões possuem uma fortuna conjunta de US$ 39,9 trilhões.13 Fazer os ricos pagar não seria mais algo apenas simbólico.
Duas asas da mesma ave de rapina
As políticas econômicas que têm contemplado uma minoria ainda assim quase nunca violaram as formas democráticas do governo da maioria. A priori, existe nisso um paradoxo. Um dos mais famosos juízes da história da Suprema Corte dos Estados Unidos, Louis Brandeis, afirmava que “precisamos escolher. Podemos ter uma democracia ou ter uma concentração de riqueza nas mãos de uns poucos, mas não podemos ter as duas coisas”. Não é por acaso que, em 1975, em um período de ebulição política, otimismo coletivo, solidariedade internacional e utopias sociais, o intelectual conservador Samuel Huntington admitia sua preocupação. Ele estimava em um famoso relatório publicado pela Comissão Trilateral (fórum internacional criado em 1973 por David Rockefeller, Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski) que “a operação eficaz de um sistema democrático geralmente requer um nível de apatia e falta de participação por parte de certos indivíduos e grupos”.14
Missão cumprida… A reacionária Comissão Trilateral acaba de comemorar seu quadragésimo aniversário expandindo o círculo de seus convidados para ex-ministros socialistas europeus (Peter Mandelson, Elisabeth Guigou, David Miliband) e participantes chineses e indianos. Ela não precisa se ruborizar com o caminho percorrido. Em 2011, dois de seus membros, Mario Monti e Lucas Papademos, ambos ex-banqueiros, se viram impulsionados por uma troika não eleita – FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu (BCE) – à testa dos governos italiano e grego. Mas ainda acontece que povos cujo “nível de apatia” continua a ser insuficiente refugam um pouco. O filósofo francês Luc Ferry declarou-se triste: “O que me entristece, porque sou um democrata no coração, é a constância com que o povo, em tempos de crise, escolhe sem falhas, se não os piores, pelo menos aqueles que dissimulam mais habilmente e mais amplamente a verdade”.15
Para se prevenir contra esse tipo de decepção, o mais fácil é ignorar por completo o veredicto dos eleitores. A União Europeia, que ministra lições de democracia para o mundo inteiro, fez dessa negação uma de suas especialidades. Não é por acaso, pois, há trinta anos, os ultraliberais que conduzem a dança ideológica nos Estados Unidos e no Velho Continente se inspiram na “teoria das escolhas públicas” do economista James Buchanan. Basicamente desconfiada da democracia, tirania da maioria, essa escola intelectual postula que os líderes políticos estão inclinados a sacrificar o interesse geral – indissociável das iniciativas dos empresários – para satisfazer seus clientes e garantir sua reeleição. A soberania desses irresponsáveis deve, por consequência, ser estritamente limitada. Esse é o papel dos mecanismos coercitivos que inspiram neste momento a construção europeia (independência dos bancos centrais, regra dos 3% de déficit, pacto de estabilidade) ou, nos Estados Unidos, a amputação automática dos créditos públicos (“sequestro orçamentário”).
Perguntamo-nos então o que os liberais ainda temem dos governantes, já que as reformas econômicas e sociais que estes colocam em prática continuam a coincidir com as exigências da comunidade de negócios e dos mercados financeiros. No topo do Estado, a convergência é, aliás, fortalecida pela extravagante super-representação das categorias sociais mais burguesas e pela facilidade com a qual estas se movem do público para o privado. Quando, em um país como a China, onde a renda média anual mal ultrapassa US$ 2,5 mil, o Parlamento tem 83 bilionários, entendemos que não faltem aos ricos chineses bons advogados no topo do Estado. Em relação a esse ponto, pelo menos, o modelo norte-americano encontrou seu mestre, ainda que, pela falta de eleições, Pequim não distribua suas cobiçadas embaixadas aos doadores mais generosos das campanhas do presidente vitorioso, como faz Washington.
Os conluios – e os conflitos de interesse – entre governantes e bilionários agora estabelecem fronteiras. Nicolas Sarkozy, que, quando estava no poder, tinha reservado favores ao Catar, entre os quais uma convenção fiscal que isentava o emirado do imposto sobre suas mais-valias imobiliárias, agora planeja embarcar nas finanças especulativas com o apoio de Doha. “O fato de ele ser um ex-presidente não significa que deve se tornar um monge trapista”, defendeu seu ex-ministro do Interior, Claude Guéant.16 O voto de pobreza também não se impõe aos ex-chefes do executivo Tony Blair, Jean-Luc Dehaene e Giuliano Amato – o britânico é assessor do JP Morgan, o belga do Dexia e o italiano do Deutsche Bank. Podemos defender o bem público tomando cuidado para não ofender regimes feudais estrangeiros ou instituições financeiras das quais se calcula que poderiam ser futuros empregadores? Quando, em um número crescente de países, tal aposta interesseira motiva ao mesmo tempo os dois principais partidos, estes se tornam para o povo aquilo que o romancista Upton Sinclair chamava de “duas asas da mesma ave de rapina”.
O Instituto Demos quis medir os efeitos da proximidade entre líderes governamentais e a oligarquia econômica. Assim, dois meses atrás, publicou um levantamento detalhando “como a dominação da política pelos ricos e pelo mundo dos negócios freia a mobilidade social nos Estados Unidos”.17 Resposta: em termos de políticas econômicas e sociais e de direito do trabalho, os cidadãos mais prósperos concordam sobre prioridades muito diferentes daquelas da maioria de seus concidadãos. Mas dispõem de meios incomuns para concretizar suas aspirações.
Assim, enquanto 78% dos norte-americanos acreditam que o salário mínimo deveria ser indexado ao custo de vida e bastar para que seu titular não se debata numa situação de pobreza, apenas 40% dos contribuintes mais ricos partilham esse ponto de vista. Eles também se mostram menos favoráveis que os primeiros aos sindicatos e a leis que possam favorecer a atividade das entidades trabalhistas. A maioria, por sua vez, gostaria que o capital fosse tributado pelas mesmas taxas que atingem o trabalho. E concede uma prioridade muito maior à luta contra o desemprego (33%) do que àquela contra os déficits (15%).
Resultado dessa divergência de opiniões? O salário mínimo perdeu 30% de seu valor desde 1968; nenhuma lei (ao contrário da promessa do candidato Barack Obama) abrandou a via sacra que constitui a criação de um sindicato em uma empresa; o capital continua duas vezes menos tributado que o trabalho (20% contra 39,6%). Por fim, o Congresso e a Casa Branca rivalizam neste momento no campo dos cortes no orçamento em um país onde a proporção da população ativa empregada acaba de atingir uma baixa histórica.
Qual é a melhor maneira de dizer que os ricos imprimem fortemente sua marca no Estado e no sistema político? Eles votam com mais frequência, financiam mais que os outros as campanhas eleitorais e, o mais importante, exercem uma pressão contínua sobre os eleitos e os governantes. O crescimento da desigualdade nos Estados Unidos se deve em grande parte ao nível baixo de tributação do capital. Ora, essa medida é objeto de um lobbypermanente no Congresso, enquanto 71% de seu custo para o conjunto dos contribuintes só beneficia o 1% mais rico.
A recusa de uma política ativa de emprego se baseia em uma mesma escolha de classe, também apoiada por um sistema oligárquico. Em janeiro de 2013, a taxa de desemprego entre os norte-americanos, muitas vezes de classe média, que têm pelo menos o segundo grau, era apenas de 3,7%. Em contrapartida, foi de 12% para os não graduados, muito mais pobres − aqueles cujas opiniões contam menos para Washington que as dos meios empresariais. “Na maior parte dos casos”, conclui o estudo de Demos, “as preferências da maioria esmagadora da população parecem não ter nenhum impacto sobre as políticas escolhidas.”
Impotência dos governos nacionais
“Você quer que eu me demita? Se for esse o caso, diga-me!” O presidente cipriota Nicos Anastasiades teria gritado assim com Christine Lagarde, diretora do FMI, quando esta exigiu que ele fechasse imediatamente um dos maiores bancos da ilha, grande fonte de empregos e renda.18 O ministro francês Benoît Hamon também parece reconhecer que a soberania (ou influência) de seu governo é limitada, uma vez que, “sob a pressão da direita alemã, impõem-se políticas de austeridade que se traduzem em toda a Europa por um aumento do desemprego”.19
Na aplicação de medidas que consolidam o poder censitário do capital e da renda, os governos sempre souberam recorrer à pressão de “eleitores” não residentes, dos quais basta invocar o poder irresistível: a Troika, as agências de classificação de risco, os mercados financeiros. Uma vez concluído o cerimonial eleitoral nacional, Bruxelas, o BCE e o FMI também enviam seu roteiro para os novos líderes para que eles abjurem imediatamente essa ou aquela promessa de campanha. Mesmo o Wall Street Journal se comoveu com isso: “Desde que a crise começou, há três anos, franceses, espanhóis, irlandeses, holandeses, portugueses, gregos, eslovenos, eslovacos e cipriotas têm, de uma forma ou de outra, votado contra o modelo econômico da zona do euro. As políticas econômicas, no entanto, não mudaram depois desses reveses eleitorais. A esquerda substituiu a direita, a direita perseguiu a direita, a centro-direita chegou mesmo a esmagar os comunistas [no Chipre], mas os Estados continuam a cortar gastos e a aumentar os impostos. […] O problema enfrentado pelos novos governos é que devem agir dentro do quadro das instituições da zona do euro e seguir as diretrizes macroeconômicas fixadas pela Comissão Europeia. […] Em outras palavras, após o som e a fúria de uma eleição, a margem de manobra econômica deles é estreita”.20 “Parece que”, reconhece tristemente Hamon, “uma política de esquerda ou de direita dosa diferentemente os mesmos ingredientes.”21
Um alto funcionário da Comissão Europeia participou de uma reunião entre seus colegas e a direção do Tesouro francês: “Foi alucinante: eles se comportavam como um professor explicando a um mau aluno o que ele devia fazer. Fiquei muito admirado com o diretor do Tesouro, que manteve a calma”.22 Uma cena que lembra o destino da Etiópia ou da Indonésia, na época em que os líderes desses Estados foram reduzidos à categoria de executores das punições que o FMI infligia a seus países. É uma situação com a qual a Europa se defronta agora. Em janeiro de 2012, a Comissão, em Bruxelas, intimou o governo grego a cortar quase 2 bilhões de euros em gastos públicos no país − num prazo de cinco dias, e sujeito a multa.
Em contrapartida, nenhuma sanção ameaça o presidente do Azerbaijão, o ex-ministro das Finanças da Mongólia, o primeiro-ministro da Geórgia, a esposa do vice-primeiro-ministro russo ou o filho do ex-presidente colombiano. Todos, no entanto, guardam uma parte de sua riqueza – mal adquirida ou definitivamente roubada – em paraísos fiscais. Como as Ilhas Virgens Britânicas, onde há vinte vezes mais empresas registradas do que habitantes, e as Ilhas Cayman, que possuem uma quantidade de hedge funds equivalente à dos Estados Unidos. Isso sem mencionar, no coração da Europa, a Suíça, a Áustria e Luxemburgo, graças aos quais o Velho Continente é caracterizado por um coquetel explosivo de políticas de austeridade orçamentárias muito cruéis e indústrias de evasão fiscal.
Ninguém se queixa dessa porosidade de fronteiras. Dono de uma multinacional de luxo e décima fortuna do planeta, Bernard Arnault chegou um dia a se alegrar com a perda da influência dos governos democráticos: “As empresas, principalmente as internacionais, têm meios cada vez mais extensos e adquiriram, na Europa, a capacidade de participar da competição entre os Estados. […] O impacto real dos políticos na vida econômica de um país é cada vez mais limitado. Felizmente”.23
Em contrapartida, a pressão sofrida pelos Estados aumenta. E se exerce ao mesmo tempo pelo viés dos países credores, do BCE, do FMI, da patrulha das agências de rating e dos mercados financeiros. Jean-Pierre Jouyet, atual presidente do Banco Público de Investimento (BPI), admitiu há dois anos que estes últimos, na Itália, “tinham feito pressão sobre o jogo democrático. É o terceiro governo que dança por sua própria iniciativa por causa do endividamento excessivo. […] O aumento da taxa de juros da dívida italiana foi a cédula de votação dos mercados. […] No final, as pessoas vão se revoltar contra essa ditadura de facto”.
Mas a “ditadura de facto” pode contar com a grande mídia para elaborar os tópicos de redirecionamento que retardam e depois desviam as revoltas coletivas, para personalizar, isto é, despolitizar os escândalos mais gritantes. Esclarecer as verdadeiras molas daquilo que se trama − os mecanismos graças aos quais riquezas e poderes foram captados por uma minoria que controla tanto os mercados quanto os Estados − requer um trabalho contínuo de educação popular. Isso lembra que qualquer governo deixa de ser legítimo quando permite que cresçam as desigualdades sociais, valida o colapso da democracia política e aceita a colocação sob tutela da soberania nacional.
Todos os dias, as manifestações se sucedem – nas urnas, nas ruas, nas empresas – para reiterar a rejeição popular a governos ilegítimos. Mas, apesar da amplitude da crise, elas tateiam em busca de propostas alternativas, meio convencidas de que aquelas não existem ou que induziriam um custo proibitivo. Daí o surgimento de uma exasperação desesperada. É urgente encontrar saídas para elas.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).