Patrimônio cultural no país do ‘Vale Tudo’
Os escândalos da política urbana brasileira não são novos, mas têm ganhado novos contornos com estratégias de comunicação e articulação, sobretudo quando atravessam conselhos participativos e deliberativos. Na esfera dos órgãos de preservação do patrimônio, cabe perguntar: como defender o patrimônio cultural diante de uma elite que odeia o próprio país?
Entre tantas coisas nesse país que confirmam a condição de Elite do Atraso, título do livro do sociólogo Jessé Souza, uma delas é a maneira como lidamos com o patrimônio cultural, histórico e ambiental. O senso comum nos levou a crer que patrimônio “histórico” se trata apenas de espaços antigos, normalmente com aspectos que nos remetem a tempos mais distantes e vínculos com a Europa, conhecida como o “velho continente”. Assim, entendemos que tudo o que é antigo seria patrimônio, ou melhor, tudo o que é antigo e tem relações com as camadas ricas e privilegiadas da sociedade, representadas por edifícios monumentais de museus, palácios, sedes de bancos, catedrais ou mesmo cidades inteiras que refletem o período da colonização, como Paraty e Ouro Preto. Nas grandes metrópoles, áreas centrais são tratadas como “centros históricos”, como se fossem responsáveis por toda a história da cidade, como o que ocorre com o Pelourinho em Salvador, com os distritos da Sé e da República em São Paulo, ou com o Centro do Rio de Janeiro – caso que tem ganhado evidência pela disputa da Zona Portuária, seja pelos incentivos ao setor imobiliário, seja pelos projetos urbanos e culturais que buscam a preservação da Pequena África. São projetos e políticas que buscam reforçar a história do país por meio da chegada de africanos negros em condição de escravidão, pelo antigo Porto do Rio de Janeiro, onde atualmente existe um sítio arqueológico denominado Cais do Valongo.

Trabalhar com o patrimônio cultural de um bairro, de uma cidade, região, estado ou mesmo de um país, exige autoestima da nossa parte sobre todas as escalas de lugares. Podemos fazer um paralelo com o corpo humano que sofre com diversos procedimentos estéticos, por recorrentes insatisfações com características e condições físicas. Independente das intervenções, o corpo em questão se mantém. Sabemos que procedimentos desse tipo demandam cuidados e limites, seja pela saúde, seja por questões de identidade e aceitação. Os padrões construídos socialmente não dizem respeito apenas aos corpos humanos, sobretudo aqueles que sempre tiveram mais espaço no mercado audiovisual, de moda e publicitário, onde o ideal de beleza fomentado é branco, magro ou malhado, de cabelos lisos e sem necessidades especiais de locomoção, etc. Os padrões também fomentam estilos de vida, muito comum no setor imobiliário ao vender os seus produtos, sobretudo em condomínios fechados. Em sessões especiais da imprensa, são muitas as matérias produzidas para evidenciar novidades do setor imobiliário, em que bairros inteiros são apresentados como um manequim e suas medidas para uma prova de roupas: equipamentos públicos e privados, praças e parques, segurança pública, padrões de consumo, renda e status social das famílias locais, transporte público (quando convém) e localização. Tudo é possível de tornar-se um ativo de valorização de um novo empreendimento imobiliário. Inclusive, em alguns casos, o próprio patrimônio cultural (também quando convém), normalmente utilizado como um elemento de distinção estética e associado a um valor moral de tradição.

A cidade é patrimônio de si mesma, assim como nossos hábitos, ações e trajetórias constituem valor de identidade para cada um de nós, que coletivamente é convertido para as muitas feições e contradições de uma cidade. É a mesma lógica em relação à política, daqueles que elegemos para ocupar cargos públicos e políticos, como vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e presidentes: eles refletem a sociedade que os elegeu e representam as identidades culturais e ideológicas da sociedade. Para tanto, percebemos as complexidades sociais brasileiras apenas pelas paisagens, quase sempre conturbadas pela competição frequente entre as construções, ora pelo prédio que tenta ser maior e mais arrojado que o outro, ora pelo vizinho que tenta ter uma casa que chame mais atenção ou pelos muitos carros que servem de ativo cultural para balizar a moral da população. Afinal, para que andar a pé e se misturar com o povo no transporte público se podemos ter nosso próprio carro particular, supostamente confortável e seguro? É uma ironia, haja vista a condição de caos de cidades inteiras que ficaram à mercê do carro e da poluição causada por eles, da deterioração de espaços públicos para acomodar um objeto, o carro, que é de uso particular e nada tem a ver com o interesse público.

Crédito: Lukaaz
Espaços de encontro social que tiveram importância na formação de bairros e comunidades acabam perdendo espaço para transformações que dizem pouco para o interesse público, mas reforçam a fragmentação de um ideal coletivo que se perdeu com o avanço do neoliberalismo e suas políticas voltadas ao interesse individual – qual grupo social que precise trabalhar para viver e sobreviver, poderia vencer sem a união entre os pares? A condominização da vida ganhou força em todos os sentidos e mais pessoas estão subordinadas ao interesse de certos grupos que dominam os rumos das cidades. Monumentos naturais, quando não atrelados ao caráter de “cartão-postal” que entra como ativo no setor do turismo, perdem espaço na paisagem para construções que pouco contribuem para a coletividade. A arquitetura enquanto campo profissional é expressa pela qualidade dos espaços projetados, sobretudo edificações para moradia, o que é pouquíssimo valorizado em um país que constrói muito pouco com o suporte de profissionais da arquitetura e da engenharia. Pior ainda no cenário atual, em que temos perdido espaço para experts que agenciam interesses particulares e distorcem informações de relevância para influenciar no debate público, garantindo os interesses de certos grupos de interesses privados.


Ao adentrar o campo da preservação do patrimônio cultural, os principais agentes contrários são justamente proprietários de imóveis, sobretudo quando vinculados a grandes empresas do setor imobiliário e de construção, apoiados pelo Direito à Propriedade Privada e o Direito Imobiliário. Contudo, quando é do interesse dos mesmos proprietários, dizem que seus empreendimentos imobiliários farão bem para a cidade e a sociedade, como aqueles que usam do adensamento construtivo e demográfico como argumento de benefício da verticalização – produzida pelo setor imobiliário privado. Mas quando a sociedade elege seus imóveis como bens culturais, de interesse da mesma cidade, os proprietários invocam o Direito à Propriedade Privada e acusam o tombamento, principal instrumento de preservação, de ser uma espécie de “desapropriação”, impedindo o livre uso da sua propriedade em questão. Na prática, se trata de compreender que, embora exista a propriedade privada, a cidade é um bem público e coletivo, formada por áreas públicas e privadas. Quando estamos na rua, no espaço público, caminhamos enquanto observamos e interagimos com propriedades particulares ao nosso redor, como casas, prédios, lojas, escritórios, templos religiosos, etc. Mesmo que sejam particulares, as relações de vizinhança são de interesse público, tal qual as relações que os edifícios provocam e servem às pessoas. Ninguém vive dentro da própria propriedade e a calçada à frente consiste na relação entre público e privado.

Se um arranha-céu dotado de apartamentos, escritórios e lojas pode usar do argumento do benefício do adensamento para a cidade, por que uma vila de casas, também com usos mistos muitas vezes, não pode utilizar do mesmo argumento a favor do interesse público? Em ambos os casos estamos tratando de propriedades privadas, com diferentes valores que agregam à cidade, seja pela eficiência da verticalização na compartimentação de usos no solo urbano, seja pela eficiência do valor cultural de um conjunto de edificações mais antigas e de relações de vizinhança consolidadas. É claro que entre ambos os casos, o divisor de águas é o lucro, uma vez que a venda de imóveis com potencial construtivo elevado e metro quadrado valorizado, promovem maiores rendimentos aos agentes que buscam comercializar suas propriedades. É evidente que os proprietários de imóveis tombados precisam ter benefícios, contrapartidas positivas aos seus negócios, mas uma coisa que não pode ser normalizada é a barbárie. Um ótimo exemplo é o caso de conflitos de interesse que envolveram o presidente do conselho estadual de preservação do patrimônio paulista (Condephaat), o arquiteto e urbanista Carlos Augusto Mattei Faggin, condenado por improbidade administrativa por assinar laudos técnicos para o setor imobiliário contrário ao patrimônio.
Embora escandaloso, sabemos que não é incomum. Faz parte do lobby do setor imobiliário privado e de determinadas gestões municipais e estaduais, envolvendo políticos, técnicos e outros tipos de agentes que influenciam no interesse de determinados grupos. Em 2016, ocorreu um lobby para pressionar o Iphan, órgão federal de preservação do patrimônio, a aprovar a construção de um edifício de luxo de 30 andares na Ladeira da Barra, em Salvador, o que poderia trazer danos à paisagem cultural formada por uma série de bens tombados. O órgão havia aprovado a construção máxima de 13 andares, justamente para evitar prejuízos à paisagem. O caso tomou proporções nacionais ao envolver a saída de Marcelo Calero, então Ministro da Cultura do Governo Michel Temer, por não compactuar com a corrupção do caso, sobretudo pela pressão por parte de Geddel Vieira Lima, então outro ministro do governo que adquiriu um apartamento no respectivo empreendimento, além da pressão sobre a equipe técnica do órgão de preservação. Outra camada sensível é a de que o departamento baiano do Iphan havia aprovado o empreendimento, o que levou o Iphan de Brasília a ser pressionado. Naquele momento, o Instituto de Arquitetos do Brasil da Bahia (IAB) ainda questionava o parecer técnico emitido pelo Iphan da Bahia, de autoria de Bruno Tavares, engenheiro civil que ocupava o cargo de superintendente do órgão, uma vez que não é da competência técnica de um engenheiro avaliar questões paisagísticas.
Em perspectiva nacional, a discussão avança para outras escalas: mesmo com a criação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) em 2011, depois da emancipação dos arquitetos e urbanistas em relação ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA), o CAU não teve assento garantido nos conselhos de preservação do estado e do município de São Paulo. Além disso, o CREA nem sempre é representado por engenheiros, atribuindo a função de representação também aos advogados, mesmo que esses já disponham do assento reservado para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nos conselhos, o que abre outra margem de questionamento a respeito de critérios supostamente técnicos dos pareceres realizados pelo conselho, que em tese deveriam estar alinhados com as competências profissionais das entidades de classe ali representadas. Situação semelhante ocorre com as áreas técnicas que existem para apoiar as decisões do conselho, como o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Atualmente, assim como em outros momentos dos últimos anos, o cargo de direção do órgão é ocupado por uma pessoa do campo do Direito. Além disso, muitos conselhos de preservação no país contam com cadeiras pouco definidas e de sentido muito amplo, como a de “profissional de notório saber em urbanismo”, que no caso do Condephaat (estado) é ocupada pelo mesmo conselheiro do CREA no Conpresp (município). Afinal, o que determina um notório saber em urbanismo? E o que define esse notório saber em urbanismo, voltado à preservação do patrimônio, a fim de garantir que um representante ocupe esse espaço nos conselhos? Sobretudo em conselhos que pouco tem se preocupado com a dimensão urbana e territorial do patrimônio cultural.


Com efeito, ficamos diante de um sistema que busca minar o patrimônio na sua dimensão local e social, de caráter popular e cotidiano, ao passo que o mesmo sistema tentará extrair o máximo de valor financeiro do patrimônio que lhe é de interesse, como aqueles ligados aos grupos sociais hegemônicos e de enorme interesse turístico. Não é por acaso que ao falarmos de patrimônio, apareçam de imediato ideias para transformar edifícios antigos em “equipamentos culturais”, como se o patrimônio fosse uma espécie de atrativo cultural distante, exótico, um enfeite decorativo na cidade. O patrimônio do cotidiano, para valer, pode e deve ser (também) habitação social, escola, creche, posto de saúde e empresas bem-sucedidas.
Em uma ideia hegemônica de patrimônio, quem falará contra a preservação do Museu do Ipiranga, do MASP, do Teatro Municipal ou do Parque do Ibirapuera? Em outras cidades, quem iria se mobilizar contra a estátua do Cristo Redentor, ao Teatro Amazonas ou ao Mercado Ver-o-Peso? O caso da destruição do bem público monumental e tombado de Brasília é excepcional, pois se trata do ódio conservador ao movimento moderno, que buscou democratizar o trabalho dos arquitetos para outros estratos sociais e pensar uma identidade nacional, sobretudo pela construção de Brasília como sede do governo brasileiro. O mesmo movimento contrário ao modernismo é visto em outros países, como na Alemanha e nos Estados Unidos, como quando o presidente Donald Trump decretou que todos os edifícios públicos do governo estadunidense deveriam ter estilo arquitetônico “clássico”.
Se hoje vemos arranha-céus antigos que são tombados como patrimônio da metrópole e são referências importantes na paisagem paulistana, como o antigo Banespa, o Martinelli, o Itália e o Copan, o mercado imobiliário contemporâneo não entende que tudo o que ele constrói ficará para a posteridade e, um dia, poderá ser lido enquanto patrimônio? Caso contrário, também podemos pensar que essa mesma elite não faz mesmo questão do próprio país e o utiliza apenas para promoção de lucros, transformando tudo o que pode para seu próprio interesse, já que a mesma só entende como patrimônio aquilo que vem dos países europeus e dos Estados Unidos, onde passam suas férias. Por esse lado, faz sentido porque a mesma prefere fazer lobbies (articulações) dentro do próprio poder público para evitar tombamentos de suas propriedades, já que as mesmas são tidas como espaços sem valor e, ao fim e ao cabo, é uma elite que odeia o Brasil e tudo o que vem dele.
O envenenamento da sociedade contra o patrimônio está na manipulação de classes médias e baixas, para que se voltem contra o próprio país. Não é por acaso que grande parte da nossa população mantenha referências cotidianas de arquitetura e cidade vinda de países do norte, como as casas de subúrbios residenciais dos Estados Unidos, clonadas nos muitos condomínios brasileiros aos moldes de Alphaville e do que ocorre na Barra da Tijuca, assim como a cultura de consumo do circuito hegemônico de cidades, como Nova York, Los Angeles, Londres e Paris. Experimentem fazer uso de ferramentas de Inteligência Artificial para perceber o eurocentrismo dessas plataformas.
É encantador ver projetos urbanos que fazem referência a ruas repletas de pessoas e bicicletas em cidades que priorizam o transporte público, normalmente famosas por serem centros de interesse da economia global, como Londres, Paris e Amsterdã. A parte da história que não nos contaram é que o mesmo não será feito na Avenida do Estado, na Grande São Paulo, completamente engolida pela inundação do Rio Tamanduateí frente a uma enorme tempestade no último dia 31 de março, entre São Paulo, São Caetano do Sul, Santo André e Mauá. A subordinação global é também uma questão de referências de projeto. Olhar para os rios da cidade enquanto patrimônio natural e de infraestrutura, em franca deterioração por décadas, é um modo de observação da memória e cultura da metrópole. O enterramento e canalização frequentes resultaram em espaços públicos agressivos e poluídos, que romperam a relação da população com suas águas, destinadas a receber todo tipo de lixo e esgoto. Nesse momento, a Prefeitura de São Paulo, a partir da São Paulo Urbanismo, vem desenvolvendo um plano hidroviário para a cidade, com o pontapé inicial dado por meio da construção do Aquático, um sistema de balsas na Represa Billings.
É uma oportunidade de construir novas relações com o território, sobretudo pelas perspectivas de paisagem. Porém, caberá à gestão municipal entender que o Rio Pinheiros não é mais importante do que outros corpos hídricos, o que tem acontecido diante da sua condição de vitrine para o mercado financeiro e imobiliário do entorno, materializado pelos empreendimentos da Faria Lima, Berrini e Morumbi. Dos bons exemplos que temos, Santos, no litoral paulista, se destaca pelo tombamento dos canais projetados pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, que foram uma parte essencial do planejamento da cidade que detém o maior porto brasileiro.
Por outras perspectivas de identidade e valor cultural, a própria luta dos movimentos de moradia são patrimônio de si mesmos, em busca de dignidade para milhões de brasileiros que estão longe de acessarem o mercado imobiliário formal e privado de habitação, seja de aluguel, seja pela compra da casa própria. Foi fruto de uma luta de anos a mudança do IBGE para utilizar os conceitos de “favela” e “comunidade urbana”, em vista dos conceitos utilizados anteriormente, como “aglomerado subnormal”. Quando mudamos palavras de uso público, temos o objetivo de reposicionar seus significados na sociedade, o que no caso das favelas envolve o desejo de legitimar a luta e construção desses espaços, sobretudo por uma população vulnerável que é resultado de um país em que as elites simplesmente odeiam. Assim, a defesa pelo patrimônio das camadas populares se tornou um braseiro repleto de obstáculos, reduzida a uma discussão rasa sobre “valor estético” que normalizou a ideia de patrimônio limitada a edifícios antigos e de um determinado estilo arquitetônico, que geralmente mobiliza sentimentos saudosos de um passado – de grupos privilegiados. Nessa mesma trincheira, se já não bastasse todo o cenário desolador da preservação, ainda temos grupos privilegiados que fazem uso do campo do patrimônio, sobretudo do instrumento do tombamento, para evitar o processo de verticalização. É uma estratégia recorrente em bairros das Zonas Oeste e Sul de São Paulo, o que abriu margem para que grupos ligados ao setor imobiliário fizessem uso da imagem desses movimentos para colocar a opinião pública contra o patrimônio cultural. No fundo, são duas faces de uma mesma moeda de privilégio daqueles que detém o poder tanto de preservar, quanto de transformar (determinadas áreas) na cidade.
Diante desse cenário, todo cuidado é pouco frente à persistência do passado. Depois de 61 anos do golpe militar de 1964, a historiadora Deborah Regina Leal Neves é quem lidera o movimento pela realização do Memorial Doi-Codi, um dos espaços em que vítimas da ditadura foram torturadas em São Paulo. No dia 1º de abril, o projeto lançou oficialmente a sua plataforma virtual, o Memorial Virtual Doi-Codi. Neves é autora do livro A Persistência do Passado: Patrimônio e Memoriais da Ditadura em São Paulo e Buenos Aires, fundamentado em sua dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo (USP), com desdobramentos posteriores na sua tese de Doutorado, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde tratou da construção do poder político por meio das obras públicas implementadas durante a Ditadura Civil Militar.
O Brasil é um país em que as elites se valem economicamente tanto do discurso de progresso, por meio de novos empreendimentos de múltiplas escalas, quanto da influência na “decadência” dos centros das cidades, promovendo a ideia de obsolescência dos espaços de outrora e sobretudo quando apropriados pelos estratos sociais populares. Não é por acaso que se convencionou dizer que o “centro” está abandonado, se aproveitando do “consenso” em torno da produção de habitação social (mesmo quando fraudadas pelo mercado privado), da conservação e restauro dos prédios antigos (muitos abandonados pelos proprietários), da segurança pública e do incremento das redes de transporte público.
Não se trata apenas de usar jargões gastos e pouco precisos, como “especulação imobiliária”, mas de ir até a cicatriz cultural do problema, que torna as transformações monumentais como elemento superior e dominante às camadas do espaço urbano comum e popular, relegadas a serem arrasadas por interesses de quem não vive esses territórios. Nesse momento no Conpresp, conselho municipal de preservação paulistano, o conjunto de 5 sobrados da antiga Vila Operária João Migliari, no bairro do Tatuapé, é usado como boi de piranha para abrir caminhos para destombamentos na cidade, onde já é árdua a luta pela preservação. Em uma manifestação favorável ao tombamento das casas, em 2019, me lembro de ouvir um homem gritar a partir de um prédio comercial vizinho: seus vagabundos!
A poucos quarteirões das casas, o mesmo conselho barrou o tombamento da sede do Sindicato dos Metroviários de São Paulo. O espaço que foi projetado por arquitetos do metrô e construído com recursos dos próprios sindicalistas, foi arrematado por uma construtora em um leilão feito pelo ex-governador João Dória, após rasgar um comodato que dava pleno uso do local pelo sindicato por 99 anos. A empreitada de tripé político-econômico-ideológico, foi ignorada nos argumentos contrários à preservação do espaço, que se valeram da tentativa de desvincular o valor do edifício-sede tanto dos trabalhos realizados pelo sindicato, quanto do processo de redemocratização do país e da história de construção do bairro – como se tanto o processo de defesa da democracia ou de urbanização tivessem uma espécie de encerramento oficial, em que a cidade não seguisse em franca construção e transformação, bem como a sociedade que nela habita. É disso que se trata quando falamos do risco de associar o patrimônio a algo saudoso e vinculado exclusivamente ao passado, sendo uma armadilha do espectro neoliberal que busca firmar uma suposta data e aspecto físico e material (quando convém) para que algo seja considerado patrimônio. A defesa da construtora que arrematou a sede do sindicato foi feita por um advogado que já ocupou a cadeira da OAB/SP no mesmo conselho, bem como atualmente ocupa uma cadeira no conselho estadual.
No fim, é o país do Vale Tudo (por dinheiro), em que precisamos exercitar a autoestima para lutar por garantias de preservação dos espaços que nos representam socialmente, com base no interesse público e coletivo, a fim de promover melhorias nos territórios que formam o país, ora preservando, ora transformando.
Lucas Chiconi Balteiro é arquiteto e urbanista, mestrando em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo na FAU/USP e membro dos grupos de pesquisa “Cultura, Arquitetura e Cidade na América Latina” (CACAL, FAU/USP) e “Cidade, Arquitetura e Preservação em Perspectiva Histórica” (CAPPH, UNIFESP).