PEC 45 na Câmara: usuários e pacientes estão em risco
Associações e empresas, quando resolvem plantar maconha, correm risco de acusação de tráfico ou porte de drogas
A PEC 45/2023, que pretende inserir na Constituição Federal a proibição da legalização de qualquer droga, independentemente da quantidade, foi aprovada, em regime de urgência pelo Senado Federal, em dois turnos, neste mês de abril. O texto final[1] prevê, sem explicar como se dará, penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência química para pessoas flagradas em posse de drogas.
A proposta, que é um contraponto reacionário à votação no Supremo Tribunal Federal (STF) do R.E 635659, que reconhece a inconstitucionalidade do crime de porte de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei de Drogas), seguiu para votação, em dois turnos, pela Câmara dos Deputados.
No dia 28 de maio, ocorreu a audiência pública “Medicamentos à base de canabidiol: impactos da PEC 45/23 no acesso à saúde”, na Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, por iniciativa do deputado Ruy Carneiro (Pode-PB), após solicitação das Associações de Pacientes Acaflor e Liga Canábica, da Paraíba. Presidida pelo deputado Jorge Solla (PT-BA), a sessão teve a presença de sete deputados; dentre eles, Osmar Terra (DEM-RS), notório terraplanista em ciência, com profunda má-fé objetiva no debate sobre drogas.
Estávamos à mesa, eu, Ítalo Coelho, maconheiro/paciente, advogado de pacientes e associações de maconha terapêutica, membro da Rede Reforma; Sheila Geriz, mãe e paciente de usuários de cannabis e presidente da Liga Canábica; Leandro Ramires, pai de paciente e médico oncologista, pesquisador especialista em Cannabis, membro da Associação Ama-Me (MG), de modo presencial. Virtualmente, Ana Hounie, médica psiquiatra (USP) e presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia (Ambcann); Eduardo Faveret, médico neurologista do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da UnB; e Renato Filev, coordenador científico na Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD).
Os especialistas foram uníssonos em alertar que, apesar da PEC não afetar o uso medicinal uma vez que este tem algum tipo de regulamentação pela Anvisa para empresas estrangeiras produzirem e venderem no Brasil, o cultivo medicinal doméstico ou por pessoas jurídicas, apesar de previsto pelo artigo 2º, parágrafo único, da Lei 11.343/06, nunca foi legalizado. Assim, associações e empresas, quando resolvem plantar, correm risco de acusação de tráfico (art. 33) ou porte de drogas (art. 28).
Curiosamente, se aprovada a PEC, não vai haver mudança textual na Lei de Drogas de 2006. Esta lei aboliu, em teoria, a pena de prisão para usuário, considerando, no artigo 28, o porte para consumo próprio crime de menor potencial ofensivo, prevendo medidas como prestação de serviço, comparecimento em curso e medidas educativas. Contudo, a legislação tornou-se mais rigorosa para quem é condenado por tráfico de drogas, estabelecendo a pena mínima em 5 anos e a máxima em 15 anos. No entanto, a legislação não estabelece critérios claros para distinguir entre usuários e traficantes.
É importante ressaltar a importância das decisões dos países que estão à nossa volta, especialmente nos últimos cinco anos no que diz respeito à defesa dos usuários/pacientes de maconha com fins terapêuticos ou que fazem uso adulto responsável.
O entendimento do uso da maconha com intuito medicinal como parte do direito à saúde avançou concretamente na Argentina entre 2017 e 2022 com o estabelecimento do Registro de Pacientes de Cannabis Medicinal (Reprocann). O mecanismo foi adotado definitivamente em 2020 e atualmente conta com mais de 320 mil pacientes registrados, além de ONGs e universidades.
Na prática isso autoriza, de forma regulamentada, a pessoa ou instituição a cultivar até 9 plantas em floração para si ou para outra pessoa na modalidade cultivador solidário, e a transportar legalmente inclusive de forma aérea entre as províncias e internacionalmente 40 gramas de flores secas e 1,5 g de concentrados – além de até seis frascos de 30 ml de óleo de maconha.
Contudo, no governo Milei as aprovações são mais lentas, ultrapassando 90 dias em alguns casos. Além disso, há uma recente ofensiva do Ministério da Saúde argentino que levantou a possibilidade de restringir as doenças a nove patologias, sendo amplamente pressionado pelas organizações do país, que compõem um conselho junto ao Ministério e apresentaram suas demandas ao Executivo portenho, em movimento semelhante ao observado em Brasília neste último dia 28.
Importante abrir um destaque para a semelhança da regulamentação inicial na Argentina no ano de 2017, ainda no governo Macri, amplamente restrita e, à época, destinada somente à epilepsia refratária. Isso encontra ampla similaridade com a aprovação recente da distribuição via SUS e o forte lobby do Conselho Federal de Medicina para uma restrição não apenas nas patologias, mas que propõe interferências e pressões no trabalho de médicos e médicas prescritoras. Isso se reflete na regulamentação efetivada no estado de São Paulo, que na prática autoriza a distribuição de produtos para um grupo limitado de pessoas, o que segue restringindo o acesso, ainda que pese a compra em forma de monopólio de um produto facilmente cultivado e produzido legalmente no Brasil por meio de associações ou pacientes com habeas corpus.
A criminalização da conduta do usuário no Brasil encontra pouco eco no continente de forma geral. Na Argentina, o Fallo Arriola, aprovado em 2009, despenalizou na prática a posse de todas as drogas, embora haja perseguição inclusive a usuários com Reprocann. A aprovação da Lei Nacional de Cannabis Medicinal e Cânhamo Industrial, em 2021, fortaleceu o debate sobre a regulamentação do uso adulto no país, um dos últimos passos pendentes.
Ao longo de todo continente, como na recente proposta de reclassificação da maconha levada adiante pela administração Joe Biden nos Estados Unidos, que propõe adequar de forma mais “branda” a planta, removendo da lista mais restrita onde esteve durante décadas e chegando aos avanços concreto em termos globais mais recentes. Como são os casos de Alemanha e a ainda mais recente regulamentação do uso adulto na África do Sul, o Brasil segue isolado insistindo na criminalização, uma história antiga e repetida, que precisa ser revertida imediatamente, garantindo que os pacientes e usuários não estejam em risco, e sim, dentro da quatro linhas de seus direitos sociais e individuais.
Ítalo Coelho de Alencar é especialista em Lei de Drogas e assessor de associações de pacientes.
Gabriel Murga é fundador do grupo Liamba 360 e editor e co-fundador do site argentino Industria Cannabis.