Pensar um mundo novo
Já está claro que esta é uma crise sistêmica. Não podem ser vistas como isoladas as crises de segurança alimentar, ambiental, energética e financeira. É uma crise do modo de produção capitalista de mercado e de sua narrativa que explica o mundo como um campo de competitividade, de conquistas e derrotas, de uma predação sem limites.
Nos últimos meses a fé dos fundamentalistas de mercado se viu profundamente abalada. Durante décadas seu discurso foi o da defesa do livre mercado, sustentando que a concorrência é a melhor forma de regulação dos atores econômicos. Seu poder foi tamanho que obrigou os Estados nacionais a aceitarem suas imposições. Suas idéias tornaram-se hegemônicas e nos levaram até mesmo a pensar que havíamos chegado ao fim da história. Nada mais poderia substituir o livre mercado.
As críticas existentes não eram dirigidas ao modelo capitalista de mercado, e sim à exacerbação de uma ciranda especulativa, descolada da economia real, que haveria de esbarrar nos seus próprios limites. Análises feitas em 2001 estimaram que somente 8% das transações financeiras internacionais tiveram como objetivo a movimentação de capitais para financiar a produção de riquezas reais. O resto teria sido constituído por movimentos especulativos1.
Pois não é que a dinâmica do livre mercado acabou por ser a maior ameaça à própria existência dos grandes conglomerados financeiros e empresariais dos países centrais do capitalismo?
Depois de quebrar bancos, financeiras e seguradoras, e engolir trilhões de dólares de fundos públicos, a crise chega à economia real. As grandes empresas da indústria automobilística norte-americana, de pires na mão, estão pedindo socorro ao governo. Como se trata de uma reação em cadeia, outros setores produtivos entram na fila dos inadimplentes, a construção civil à frente dos demais. O paradigma do livre mercado se quebrou. E as grandes corporações pedem um keynesianismo para os ricos, isto é, pedem uma enorme transferência de capital público para o setor privado. Como nunca se viu.
Já está claro que esta é uma crise sistêmica. Não podem ser vistas como isoladas as crises de segurança alimentar, ambiental, energética e financeira. É uma crise do modo de produção capitalista de mercado e de sua narrativa que explica o mundo como um campo de competitividade, de conquistas e derrotas, de uma predação sem limites.
Mas, se os capitalistas estão sofrendo suas perdas, o que irá acontecer com as legiões de pobres que aumentam a cada dia? Também está claro que as conseqüências sociais da crise serão perversas e que os conflitos sociais vão se intensificar.
Desta vez esta crise sistêmica não vem só. O planeta não agüenta mais o grau de degradação ambiental que o atual modo de produção impõe. A rarefação da camada de ozônio, a escassez de água, o aquecimento global, a destruição das florestas, a extinção das espécies, tudo aponta para uma catástrofe anunciada que ninguém consegue frear.
Os analistas que recuperam a dimensão histórica dos processos atuais apostam numa ampla mobilização social, em transformações profundas, mas não constroem a narrativa da sociedade futura. O que virá depois deste modo de produção capitalista de mercado?
Abre-se um novo período de disputas e negociações. Novos atores e novos sujeitos políticos entram na cena pública na América Latina e apresentam suas demandas, que começam por exigir mais democracia. Os movimentos sociais ganham vigor e articulam-se em redes, buscam suas conexões com a política, com as universidades, com as classes médias, elaboram plataformas, propõem políticas, soluções.
Em muitos países da América Latina, amplas maiorias elegem governantes de novo tipo, mais comprometidos com os interesses populares. Com isso, estão dadas condições para instituir novas relações entre Estado e sociedade civil. Processos constituintes, reformas políticas, referendos e participação cidadã na gestão pública vão criando novos espaços de negociação e buscam a realização de um novo contrato social. Pois é disso justamente que se trata – a aspiração mais geral que vem de todos esses movimentos é criar um novo contrato social, fundar uma nova sociedade.
Já existiu no passado uma experiência de contrato social que avançou no reconhecimento dos direitos humanos. Foi o Welfare State, o Estado do Bem-Estar Social. Resultado das lutas conduzidas durante um século pelos movimentos operários e sociais, cristãos e socialistas, ele foi aceito pelas classes dominantes para demonstrar, entre outras coisas, que o sistema capitalista de mercado pode responder de maneira mais eficaz que o socialismo-comunismo ao objetivo de realização de uma sociedade justa, solidária, democrática e fundada na igualdade entre todos os cidadãos.
Hoje a situação é outra. Não há mais a ameaça comunista. E os setores mobilizados da sociedade não correspondem mais ao proletariado de antigamente. Mas as apostas por mudanças estão mais fortes, impulsionadas por grupos que se constituem a partir de outras identidades. Apesar de toda essa mobilização, falta uma narrativa de uma nova sociedade, uma interpretação do que pode ser o futuro que empolgue multidões.
A principal tarefa da esquerda é propor um mundo novo, pensar uma nova sociedade, construir uma utopia, construir uma narrativa – com passado, presente e futuro – que seja capaz de prefigurar uma nova sociedade.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.