Nunca repetir o óbvio
O que penso, e que salva o filme Pobres criaturas, é que ele não é só um “Frankenstein feminista”. Dizer isso é dizer o óbvio, e pior: é dizer o óbvio de novo, depois de ter sido dito tantas vezes. Uma máxima que procuro seguir é esta: nunca dizer o óbvio. Se não tiver nada além dele para falar, então é melhor não dizer nada. E eu decidi escrever este texto porque penso que o filme é mais que isso
Eu assisti ao Pobres criaturas (Poor Things), filme do Yorgos Lanthimos, o mesmo diretor de Dente canino (Kinodontas), que fez ainda outros filmes mas eu não soube e não vi, colhido que fui pelo furacão do fim do doutorado. Kinodontas foi um filme que me causou muito boa impressão, mas isso foi na época da graduação ainda. E fui assistir ao Pobres criaturas sem saber que era do mesmo diretor, mais pelo hype e por ter visto o trailer antes de O menino e a garça, que fui ver com meu filho no cinema que tem aqui perto de casa. É, tem um cinema de arte a dez minutos a pé da minha casa. O trailer foi um tiro no escuro: o tipo de filme que agrada a uns tipinhos que me fazem não querer ir a certos locais; mas a cena em que uma mulher diz a um sujeito que fazia sombra sobre seu livro que lia no convés de um barco – Saia do meu Sol – me causou curiosidade. Uma mistura de Diógenes e Alexandre com a atmosfera pernóstica do Talentoso Ripley. Uma burguesia decadente procurando sentido na vida por meio de uma torrente de excessos, coisa que chamam de “aventura”.
Pois bem, fui ver o filme, e foi estranho que ele começou em preto e branco, mas o trailer era colorido que doía, pensei até que o filme ainda não tinha começado e ainda estivessem passando trailers. Logo a cabeça disforme de um sujeito que chamava a si mesmo de God (Deus), e que só ao fim do filme confirmei ser a de Willem Dafoe, dominava a cena e impressionava um jovem médico que aceitou ser seu assistente num experimento. Depois ficamos sabendo que seu nome era Godwin, mas sua “filha” o chamava de God, e a superposição de Pai e Deus aqui não era nada inocente. Deste ponto em diante, o filme seria dominado pela filha, e nós, como o jovem médico, tornamo-nos observadores-escrivães de tudo que ela fará dali por diante. Confesso que essa exigência que o filme me impôs tornou a primeira hora do filme um tanto difícil: eu não deixava de me lembrar de Kinodontas, que retrata a vida de jovens que crescem reclusos numa casa sem nunca ver o mundo, por pais que querem lhes poupar da maldade humana. Outra coisa em comum era a reflexão sobre um jogo de linguagem primitivo e a gradual aquisição de palavras que ampliava a linguagem e a complexidade mental dos filhos. Quando nos foi revelado que se tratava de uma mulher com cérebro de bebê que amadurecia velozmente, pensei: será uma espécie de estátua de Condillac, só que de carne e osso? O filme tinha que me dar mais que isso para eu não sair dali pensando que era melhor ter ficado em casa maratonando The Walking Dead.

Mas eis que entra em cena um advogado playboy (e depois saberemos, fanfarrão) e a retira da casa. A princípio temi pela moça, porque ela era como uma criança, e o sujeito era claramente um aproveitador que provavelmente a abandonaria assim que se entediasse dela. Mas para minha surpresa, God consente que ela parta com o playboy, para viver aventuras, mesmo tendo sido prometida como esposa ao jovem doutor. Era tudo parte do experimento, e a introdução do playboy foi tão planejada por God quanto a escolha de um futuro marido que aceitaria esperar até que sua filha voltasse madura do mundo. A partir daí o filme fica colorido, e confesso que eu gostava mais quando não era. As cores eram berrantes, como tudo na verdade. Um mundo bizarro, irreal, por vezes uma espécie de ficção científica retrô, com personagens estranhos, roupas extravagantes, locações enervantes. É claro que Lisboa não era assim; e Paris tomada por prédios art nouveau que mais pareciam um barroco malfadado. Eu sabia que aquele pórtico na sacada do bordel era familiar: parece a entrada do cabaret L’Enfer, demolido em 1950 em Montmartre. O uso da lente “olho de peixe” distorcia o mundo nas bordas, mas ao mesmo tempo dava uma impressão de continência, de que tudo estava integrado numa bolha, numa esfera, numa mente.
Aliás, o filme faz uso extensivo de um vocabulário “científico” e de raciocínios e cenas de autópsia e cirurgia que agem no sentido de fortalecer uma série de pressupostos não explicitados: que não somos nossos corpos, embora o habitemos; que a diferença entre o corpo animado e o inanimado se deve a uma descarga de energia que é depois mantida por uma “vontade”; que o que quer que sejamos depende do cérebro, mas também da linguagem. Assim, o cérebro “vazio” de um bebê, posto no lugar de um cérebro de uma mulher morta, resulta num novo ser que não guarda nada de resquício da vida que teve até então, senão pelas cicatrizes que possui: uma operação no crânio, um parto, o rosto de outra pessoa que se liga a um passado só conhecido por outros, distantes. Estes sinais não produzem reminiscências, nem curiosidade. O corpo não é um veículo, um intermediário entre duas existências. Eu sou o que aprendi e registrei no meu cérebro. A criança em pleno descobrimento da libido, mas tendo à disposição um corpo completamente amadurecido de mulher, ademais sem a malícia e as regras de etiqueta, encanta o playboy, que acredita ter encontrado um ser raro que faz pouco das convenções e da polidez da alta sociedade. De predador ele se descobre presa, e isto o enlouquece. Mas é curioso, gente assim existe, sempre existiu: a idosa e seu acompanhante negro também são sinceros e pouco interessados nos joguetes e fingimentos. Só que eles são cínicos, a moça Bella, não. Porque ela é uma criança. Esta parte do filme também já estava me cansando, porque é inverossímil que alguém ande sem cuidado por metrópoles, esperando encontrar “aventuras”, e volte pra casa sem nunca ter sido roubado, espancado, xingado, agredido. A vida de Bella transcorria sem riscos, e sua dança na festa do navio termina sendo uma sensação, uma performance vanguardista, que pelo seu tom cômico, foi claramente destinada a entreter a plateia; a briga que se segue é mais uma das “aventuras”. No meu caso, quebrou a imersão: não fui ao cinema pra ver um Cândido de saias. Felizmente seu amigo negro lhe mostra a miséria humana, o “mal moral” de Rousseau, aquele cuja existência depende da nossa vontade, e não existiria se não quiséssemos.
Esta nova etapa no filme introduz o mal, a antítese da “aventura”, mas de uma forma distanciada: “se fôssemos lá embaixo, eles nos roubariam, amarrariam e estuprariam; e se fôssemos nós lá embaixo e eles aqui em cima, nós faríamos o mesmo com eles”. Distanciada porque naturaliza a desigualdade social e neutraliza a responsabilidade dos envolvidos, ao ignorar que os de cima sabem da situação e escolhem não fazer nada, podendo fazê-lo, encerrar com tudo isso. E ao não reconhecer que os de baixo reagem, dão vazão ao ódio e ressentimento, e sua violência é justa e justificada, pois esta é sua maneira de tentar encerrar com tudo isso. Bella trava contato com o lado repugnante da vida quase como uma brincadeira: é uma forma de ganhar dinheiro e gozar, você goza e ainda te pagam. É dito que este contato é doloroso e transformador, e contribuirá para seu amadurecimento, mas Bella acha um jeito de tornar a vida de prostituta uma grande brincadeira, uma coleção de experiências: inventa quizes, jogos, banha os parceiro com água de lavanda pra anular o ocasional fedor, conta as estocadas que lhe dão até gozar, bota o dedo no ânus de um ou de outro, experimenta o mesmo sexo. O único momento em que aquele mundo realmente se mostra repulsivo é quando a dona do bordel entra em seu quarto para tirar proveito dela, de sua ingenuidade curiosa. Aquela mulher é o mal encarnado, um diabrete que faz de tudo pra ser horrendo, nem mesmo tira a touca para que os cabelos soltos atenuem sua careta. E ela morde até sangrar.
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Bella volta quando sabe que seu God está morrendo. Mas que vida de prostituta é esta, que pode ser abandonada ao bel prazer? Era isso que me incomodava, Bella não engravida, não faz abortos clandestinos em lugares fedidos, não pega infecção, não perde dentes, não se vicia em ópio, não tem desilusões amorosas, não se vê presa em relações abusivas mas reincidentes. Bella passa pelo fogo, pela lama e pelas fezes, sem uma cicatriz, um respingo, um chamuscado. Nenhum mal permanente, nenhum evento que a quebre pra todo o resto de sua vida, sem nunca mais conseguir se recobrar. Como queria fazer a moça da música Common People, do Pulp. Ela passa pela ponte de onde se jogou a que viveu antes naquele corpo; e eu: ela vai se jogar! O filme vai dar a volta, em círculo até o ponto inicial. Mas o corpo não é veículo! Ou será que é? E qualquer cérebro de bebê que se lhe ponha vai resultar na mesma mulher que termina saltando da ponte? Mas Bella não salta. Em vez disso ela aceita se casar, com o marido que ficou guardado esperando-a, compreensivo e confortante. É a parábola do filho pródigo, que recebe tudo de volta depois de uma vida de dissolução e miséria pelo mundo. E neste momento o playboy aparece, e traz consigo a vida da hospedeira anterior daquele corpo.
Bella quer descobrir, e segue com o primeiro marido do seu corpo. Depois fui saber, o filme é baseado num romance, e esta parte do filme não existe no livro. É criação do roteirista, que decidiu explicar o que teria motivado a morte da primeira mulher. Uma vida de opressão, agrilhoada por um marido insípido e monstruoso. Ele conclui que a raiz da infelicidade de sua esposa, que se manifesta em histeria e inconformismo com sua vida encarcerada, é o desejo sexual, materializado pelo clitóris. Planeja extirpá-lo, como faziam na África, por um processo de castração literal (não apenas simbólica). O filme acaba como acaba, com um certo sabor identitário, e o mais contraditório é que eles preservem do marido o corpo, que não é veículo, portanto não é o marido mas um bode condenado a não digerir as folhas que mastiga; quando na verdade deviam ter ficado com o bode com cérebro humano, pois aí é que está o castigado. Mas o filme precisa deixar explícito, certo? Não vou implicar com isso.
Procurando por imagens do filme pra este texto, noto que muitas críticas o tratam como um “Frankenstein feminista”. Eu sei, essa coisa do Frankenstein, um cientista louco que reanima um cadáver feito com partes de diferentes pessoas por meio de descargas elétricas, é óbvio. E essa coisa de feminista, é mais que óbvio, é quase obrigatório, em nossos dias. Uma mulher é protagonista de alguma estória — a menos que ela seja um ser desprezível, fraca e detestável, mas não por culpa de algum homem ou da sociedade, apenas por si mesma — e a estória será chamada de feminista. Porque se ela vence, é a vitória da mulher; se perde, ou é derrotada, morta, enlouquece, é a denúncia do Patriarcado. Se fosse um homem passando por tudo isso, não seria nada, só um filme exótico. E eu me pergunto: por quê eu sairia de casa para assistir a um filme cuja grande mensagem é dizer que a mulher precisa ser livre? Que ser livre significa ter uma gama de experiências sexuais (de novo o corpo) e terminar como uma dama lendo livros de Filosofia no conforto de casa, dizendo-se socialista enquanto faz um “machista de estimação” penar? O mais curioso: aquela pessoa que dançou desajeitada no navio, e foi protegida pelo playboy de ser ridicularizada, talvez até levada a um manicômio (que sim, é um bufão narcisista, mas entrou na dança por amor a ela), converte-se ao final numa “mulher da sociedade”, como tantas que ele poderia encontrar pelos salões da vida. Aquela que ele protegeu por amor, por se tratar de um ser irregular e único, uma joia que não foi lapidada, amadurece para ser alguém que ele poderia abandonar em Lisboa. Este é o feminismo que o filme tem pra mostrar? Será que sou eu quem precisa ouvir essas coisas? E se não, será que não deveriam mirar em outro público, mais amplo, mais popular, menos permeável a sutilezas cinematográficas? Acho engraçado como os americanos se referem ao que chamamos de “filme de arte”: eles chamam de “filme de estudante”. Porque é o que estudantes de cinema em busca de experimentalismos fazem. Assim que precisam ganhar o pão da atividade, “entram nos eixos” e passam a fazer filmes comerciais, direcionados ao grande público. Não concordo com essa conclusão, mas tem alguma verdade aí, perdida nesse pirão. O que penso, e que salva o filme, é que ele não é só isso, um “Frankenstein feminista”. Dizer isso é dizer o óbvio, e pior: é dizer o óbvio de novo, depois de ter sido dito tantas vezes. Uma máxima que procuro seguir é esta: nunca dizer o óbvio. Se não tiver nada além dele para falar, então é melhor não dizer nada. E eu decidi escrever este texto porque penso que o filme é mais que isso.
Eu vejo este filme carregado de elementos psicanalíticos, a ponto de me permitir uma leitura mais ampla, e portanto não restrita às mulheres. E pouco importa se o autor do romance, o roteirista, o diretor, os atores, discordam disso. A graça da Psicanálise é que você não precisa saber dela, concordar com ela, para agir em acordo com ela. Como a gravidade, a humanidade não precisava saber dela para que as coisas fossem sujeitas a ela, mesmo quando as explicações eram outras. God é Pai de Bella, ao mesmo tempo seu criador e cuidador. Ele não a quer para sexo (tabu do incesto), pois foi ele mesmo castrado pelo próprio pai. Sua relação com o pai é ambígua, ele parece admirá-lo e seguir seus passos, embora seja óbvio que seu pai fora um monstro com ele. Ainda assim, ele é um pai amoroso e protetor da filha, e faz de tudo para garantir seu sucesso, até criando as condições para que seus “acompanhantes” a conduzam pelas várias etapas: da formação, e da síntese final, quando se torna uma adulta plena. A pulsão sexual é o motor inicial de Bella, dando lugar a sublimações que inicialmente eram rejeitadas por ela (a polidez, as maneiras à mesa, saber andar, se vestir, se portar), mas ao fim são “assimiladas”. E mesmo assim, a pulsão sexual continua sendo fonte de problemas (a castração real), mas também de prazer, ainda que recalcado, domado: não mais pegar nos genitais de qualquer um na frente de todos, como fazem os animais e as crianças. Em certo momento God lhe diz: você é filha de si mesma, e é mãe de si mesma. E para mim isto se refere ao processo de análise, quando vamos aos poucos elaborando um novo ser que queremos ser, construído sobre outro anterior, e que virá a habitar com ele o mesmo corpo. A mulher que existira no corpo de Bella, que ela rejeita e não quer ser, que maltratava os criados e era brutalizada pelo marido e deixa de querer viver, essa mulher Bella não quer ser. Quer ser o que se tornou, invenção de si mesma, conduzida não por um cientista louco, Frankenstein, mas pelo analista, que lhe abre perspectivas mas não diz qual caminho seguir, apenas toma notas.
Eu lembro de quando dava aulas de Filosofia das Artes, e decidi, em vez de ler um texto de algum esteta, que tentasse explicar, a quem já tem a experiência do belo, o que é que o faz ser belo, ou como se formam empiricamente os gostos, para gastarem estas teorias em discussões diletantes e fúteis; em vez disso, decidi oferecer aos alunos uma ferramenta para que soubessem o que fazer com o belo, quando estivessem diante dele. Decidi ler Freud, para que quando fossem ver um filme como esse, ou tantas outras obras de arte, não terminassem dizendo que é um “Frankenstein feminista”. Que seus olhos pudessem ver sinais invisíveis aos leigos, que suas inteligências tivessem à disposição todo um conjunto de conceitos, armações, liames. Nem tudo se resolve com Psicanálise, mas em Artes, ela ajuda, e muito! Não me arrependo do que escolhi lhes ofertar, porque sei que se não o tivesse feito, a maioria talvez passaria pela universidade sem conhecê-lo. Encher a sociedade de pessoas melhores, esta é a tarefa do professor.
Pedro de Souza Rodrigues Neto é professor doutor em Filosofia pela Ufba, especializado em Filosofia da Economia, Empirismo Clássico e Filosofia Moral. Para saber mais: https://fugadehanoi.wordpress.com
Continuei rolando a tela, ãh? O texto acabou? Apareceu seu nome e ainda custei acreditar e continuei rolando a tela …
Fiquei curiosa para achar alguma crítica que formasse um pensamento parecido com o que tinha rolado por aqui e eis que encontro teu texto. Ufa, um bálsamo, vou até conseguir dormir.
…e a minha mente pipocava um mantra de: cara, que filme bom, quanto tempo que eu não via algo assim, tantas sutilezas em uma tema que está suuuper banalizado.