Arquivos, vídeos e feminismos
Em um momento em que o feminismo capitalista de Barbie ocupa a maior parte das salas de cinema do Brasil, o IMS Paulista inaugura a mostra Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir
“Ficou muito claro que eu era um produto e eu deveria fazer de tudo para ser mais comercial, porque estavam investindo em mim. Não deixei mudarem meu nariz ou minhas bochechas, mas usei peitos falsos e o cabelo loiro por dez anos. Isso quer dizer que eu, Jane Fonda, estava de um lado, e essa imagem, de outro. Havia uma alienação entre os dois.” Uma Jane Fonda quase irreconhecível, para aqueles que têm como referência a loira extravagante que estrelava em roupas justas como mocinha nas comédias americanas da década de 1960, diz em cena. Ao lado dela, mais vinte atrizes americanas e francesas fazem relatos similares, entrevistadas pela atriz e realizadora francesa Delphine Seyrig para o documentário Seja bela e cale a boca!, de 1976.
Em um momento em que o feminismo capitalista de Barbie ocupa a maior parte das salas de cinema do Brasil, o IMS Paulista inaugura a mostra Arquivos, vídeos e feminismos: o acervo do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, que exibe filmes realizados por mulheres sobre as diversas facetas do movimento feminista entre as décadas de 1970 e 1980. Em cartaz até o fim do ano, a mostra traz os preciosos arquivos do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, fundado em 1982 pelas cineastas e militantes francesas Delphine Seyrig, Carole Roussopoulos e Ioana Wieder com o intuito de preservar e difundir o extenso material realizado por coletivos audiovisuais feministas desde o final da década de 1960.
Preservação das memórias das lutas feministas
Em uma entrevista à televisão francesa em 1985, ao lado de Simone de Beauvoir, Delphine Seyrig fala sobre o Centro: “queremos justamente preservar a memória de todas essas lutas feministas, que foram filmadas por mulheres que querem que não nos esqueçamos essa história, e que as mulheres possam se reconhecer nesses modelos de mulheres não-conformistas.”
Seyrig estrelou em alguns dos mais importantes filmes da nouvelle vague francesa, como O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, Pele de asno, de Jacques Demy e O discreto charme da burguesia de Luis Buñuel. Frequentemente interpretando mulheres mais velhas que sua própria idade, Seyrig incarnou sobretudo personagens que caíam no estereótipo de Femme Fatale, a mulher misteriosa e intangível.
No papel de Fabienne Tabard para o filme Beijos Roubados de François Truffaut, Delphine Seyrig diz: “Eu não sou uma visão – eu sou uma mulher”. Ironicamente, apesar desse ser mais um dos papéis estereotípicos que a atriz iria interpretar em sua carreira, a frase anuncia uma das denúncias que ela faria dali alguns anos em Seja bela e cale a boca!. No documentário, as atrizes concordam unanimemente que papéis escritos por homens não falhavam em seguir estereótipos, esquecendo que, por trás da imagem, havia uma mulher.
Apesar de sua presença constante no debate feminista, foi após retratar a dona de casa idealizada por Chantal Akerman em Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles que Seyrig tomou coragem para seguir na carreira de realizadora. Em carta para seu filho, Duncan Youngerman, em setembro de 1979, ela conta, em referência ao projeto do filme inacabado Calamity Jane: “Chantal apertou o botão que eu precisava. Me sinto inspirada, cheia de ideias, vai ser um lindo filme. […] Vai levar tempo, mas estou muito animada e de repente confio em mim mesma, por conta do pragmatismo de Chantal. De repente, já não sei mais o que estava me segurando, tudo parece tão simples.”
Do trabalho com diretoras como Chantal, Marguerite Duras e Ulrike Ottinger, Seyrig reconhece a importância de se ter mulheres por trás das câmeras. Em 1974, Seyrig, Ioana Wieder e Carole Roussopoulos fundam o coletivo de vídeo feminista Les Insoumuses – em tradução, As Insubmusas, junção das palavras “insubmissas” e “musas”, trocadilho que faz referência ao aforismo de Frida Khalo, “eu sou minha própria musa”.
Do coletivo, nasce o Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, que passa a preservar, produzir e distribuir produções das realizadoras. A atual diretora, Bárbara Rangel, conta sobre o Centro: “Ele se diferencia do que é o cânone do arquivo cinematográfico, que é o filme de ficção realizado em película por homens. Os filmes do Centro são documentários realizados em vídeo por mulheres e pessoas LGBT. Então, tem uma outra proposta de arquivo, que partiu da própria consciência das fundadoras da perenidade do suporte em vídeo dentro de um contexto político bastante favorável que foi a eleição do Miterrand, que estruturou várias associações feministas e passou a dar incentivos financeiros por parte do Estado.”
Uma mídia não colonizada pelo homem
No que diz respeito ao contexto mencionado por Bárbara, é importante ressaltar o papel da tecnologia de vídeo portátil, que surge na França em 1967, permitindo a captação de imagens de forma muito mais democrática, o que fez da nova mídia a preferida dos movimentos sociais. Para Seyrig, a descoberta possibilitou sua transição dos holofotes para trás das câmeras: “O vídeo, para mim, foi a possibilidade de fazer cinema sem demandar nada de ninguém, sem técnicos. Aprendi em alguns dias como captar imagens e rapidamente estava gravando um vídeo sobre a tortura com duas brasileiras (idealizado ao lado de Norma Bengell, “Inês”, de 1974, faz parte da programação do IMS). Foi fantástico de repente ser diretora, eu, uma atriz. Isso foi uma revelação, um prazer enorme, uma revanche contra o ofício que me convocava às 6 da manhã para fazer cabelo, maquiagem e ditava como eu deveria ser e o que fazer.”
Pioneira no uso da nova mídia e mestre de Seyrig nesse quesito, Carole Roussopoulos se aproveitou do vídeo para fazer um novo cinema, em oposição a tudo que havia sido feito até então, como explica Bárbara: “Não era só que era um meio novo, mas era um meio que não era masculino. Então, ao lado da Carole, tiveram também outros coletivos de vídeo formados por mulheres que passaram a filmar da mesma maneira – algo que ocorreu até aqui no Brasil, com uma produção militante a partir dos anos 80. Como era um meio livre, foi mais fácil para elas se apropriarem dele.”
O movimento feminista francês em cena
Seja bela e cale a boca! foi apenas um dos filmes produzidos pelas Insoumuses entre as décadas de 1970 e 1980, produção que iria explorar as diferentes lutas do Movimento de Libertação das Mulheres francês (MLF) a partir da década de 1960. Com destaque para os direitos reprodutivos, filmes como É só não trepar!, Com a palavra, as prostitutas de Lyon, Trate de parir! acompanham mulheres em manifestações no país inteiro falando sobre suas experiências com aborto, prostituição e métodos contraceptivos.
Legalizado na França em 1975, o aborto é o foco de diversas produções do Centro. Tendo assinado o “Manifeste des 343” ao lado de Gisèle Halimi, Marguerite Duras e Simone de Beauvoir afirmando ter realizado o procedimento, Delphine Seyrig diz, em entrevista à televisão francesa em 1972: “é mais traumatizante, e todas as mulheres o sabem, criar um filho do que abortar […] vocês são todos homens aqui, existem milhões de mulheres na França e são vocês que estão discutindo se devem dar a liberdade a elas.”
Em É só não trepar! (1971) as realizadoras colocam em destaque a propaganda contrária ao aborto nos meios de comunicação e a primeira grande manifestação a favor do aborto em Paris, em 1971. As imagens também mostram feministas realizando um aborto a partir do método Karman. Já em Com a palavra, as prostitutas de Lyon (1975), Carole Roussopoulos filma um ato em que um grupo de trabalhadoras do sexo ocupou a igreja de Saint-Nizier em Lyon, falando de sua história pessoal, de suas relações com a sociedade e de suas reivindicações.
Où est-ce qu’on se mai? (1976) mostra a violência contra mulheres durante as manifestações do dia do trabalho, organizadas pelos sindicatos parisienses. Autorizadas a participarem dos protestos dos trabalhadores, mulheres viram-se violentadas física e verbalmente por homens contrários às suas reivindicações. Ressoando as canções do clássico feminista de Angès Varda L’une chante, l’autre pas (1977), o curta também mostra a felicidade daquelas mulheres de estarem nas ruas juntas, protestando a realidade machista.
Um dos filmes mais distribuídos do Centro, no entanto, é Maso e Miso vão de barco (1975): chegando ao fim do declarado “ano da mulher”, o apresentador Bernard Pivot chama a Secretária de Estado da Condição Feminina, Françoise Giroud, para provocá-la – com muita misoginia – sobre a condição da mulher. Com respostas absurdas em conformismo com o Estado patriarcal, a secretária é classificada pelas realizadoras como masoquista, ideia que é sobreposta à emissão original com comicidade. Ao final da intervenção, as realizadoras esclarecem: “Nosso objetivo é mostrar que nenhuma mulher pode representar todas as outras no meio de um governo patriarcal. Ela não pode fazer nada além de encarnar a condição feminina, oscilando entre a necessidade de agradar (feminização – Maso) e o desejo de chegar ao poder (masculinização – Miso).”
Para além do feminismo, a interseccionalidade
Mas o movimento feminista francês não era o único interesse das criadoras do Centro, com destaque para Carole, que explorou temas como o racismo, os movimentos de libertação nas nações colonizadas da África e a guerra do Vietnã. Como profissional do vídeo, Carole até mesmo realizou oficinas com membros dos Panteras Negras nos Estados Unidos, com o objetivo de orientá-los na adoção do cinema como arma política.
Sobre isso, Bárbara comenta: “Existe um interesse por pautas interseccionais, não com os termos que usamos hoje, mas era algo presente enquanto ideal. A conferência sobre a mulher – Nairóbi 85 é um filme interseccional na medida que ele está cobrindo esse fórum da ONU e todos os debates paralelos a ele. Vários dos filmes do Centro são ligados a lutas estrangeiras, explorando a questão da Palestina, da ditadura brasileira e da ditadura portuguesa, por exemplo. Esse interesse, em especial na Carole, já estava presente antes mesmo delas começarem a explorar o feminismo.”
Há dois filmes, em especial, que exploram as noções de feminismo interseccional como a conhecemos hoje: em Flo Kennedy, retrato de uma feminista americana, a ativista explora a ligação entre o racismo e a misoginia nos Estados Unidos daquele momento; já em Genet fala de Angela Davis, a ativista americana – que também está presente no fórum de Nairóbi – é objeto de um discurso do escritor francês, logo após a prisão da militante pela polícia americana.
Arquivagem como caminho para uma reinterpretação da realidade
Diferente de filmes de ficção que exploraram o movimento feminista e outras lutas por direitos na história do cinema, os vídeos preservados pelo Centro e exibidos no IMS têm como virtude a escuta: apesar de brincarem com os artifícios da edição em filmes como Maso e Miso e em SCUM manifesto – cuja ideia vem do livro homônimo de Valerie Solanas, acrônimo que significa Society for cutting up men –, a maioria dos filmes preservados e distribuidos hoje são longas entrevistas, em que as vozes de diversos grupos de mulheres silenciadas finalmente ganham protagonismo.
Partindo de uma posição de igualdade em relação aos sujeitos de seus filmes, as realizadoras puderam desafiar os homens que dominavam suas vidas dentro e fora das telas. Apesar de muito tempo ter passado desde sua realização, ao assistir a apenas alguns minutos dos vídeos percebemos o quão pouco mudou, em especial no Brasil, onde o aborto segue ilegal e milhares de mulheres continuam morrendo todos os anos, vítimas do feminicídio.
Saiba mais sobre o trabalho do Centro Audiovisual Simone de Beauvoir no site.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.