Billy Woodberry sobre cinema brasileiro, lugar de fala e representatividade
Pioneiro no movimento do cinema negro norte-americano L.A. Rebellion, o cineasta é homenageado pelo IMS Paulista em mostra que inclui sua filmografia completa e seleção de curtas que o influenciam
Quando Billy Woodberry ingressou na Universidade da Califórnia, no início da década de 1970, a febre dos cinéfilos que tentavam fugir do cinema hollywoodiano era o Cinema Novo brasileiro, que os encantava com a natureza contestadora de Glauber Rocha e o realismo terceiro-mundista de Nelson Pereira dos Santos. Acompanhado por colegas do curso de cinema da UCLA, o cineasta – recém-formado em um curso de graduação em Estudos Latino Americanos – criou um cineclube dedicado ao cinema da região, preferência que o acompanha desde então.
Aos 73 anos de idade, Woodberry vem ao Brasil para exibir sua obra inteira no cinema do IMS Paulista, ao lado de algumas indicações de filmes “que possam ser úteis aos jovens que fazem filmes ou tenham o desejo de fazê-los.” Dentre os escolhidos está Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade, um curta-metragem que acompanha garotos das favelas do Rio de Janeiro que, às vésperas do Carnaval, percorrem a cidade em uma caça aos gatos de rua que seriam usados por artesãos na produção de tamborins, em troca de algumas moedas. A escolha, diz Woodberry, não foi feita apenas porque ele está no Brasil, mas porque a riqueza cultural, política e social de filmes como esse o chocaram pela diferença em relação ao cinema mainstream que era produzido em Los Angeles.
A influência do cinema latino-americano nos filmes é visível: o neorrealismo de Bless Their Little Hearts, primeiro longa do diretor, se aproxima muito mais de Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, do que de Roma, Cidade Aberta, do italiano Roberto Rossellini. Acompanhando a vida de uma família em um bairro pobre de Los Angeles, o enredo explora a crise em três dimensões: raça, classe e gênero. Charlie Banks está desempregado há uma década e sua esposa, Andais, é a principal fonte de renda da família, mas, quando chega a hora de dar a mesada aos três filhos pequenos, ela passa as moedas para Charlie, para que ele as distribua como bom chefe de família. Com roteiro do colega Charles Burnett, Woodberry cria um realismo pautado na luta diária da classe trabalhadora, com atenção especial à personagem da esposa, que, além da jornada-dupla de trabalho, tem que lidar com os olhares de reprovação de vizinhos que sabem das traições do marido.
Construído por longas cenas de contemplação cujo tom se impõe pelo Blues de Archie Shepp and Horace Parlin, Bless Their Little Hearts é um dos principais filmes do movimento que ficou conhecido como L.A. Rebellion. Criado por estudantes de cinema negros e não brancos da UCLA na década de 1970, o grupo propunha uma renovação do estilo cinematográfico da Nova Hollywood, questionando os padrões da indústria americana – marcada sobretudo pela branquitude – e buscando representatividade aos moldes dos cinemas de vanguarda na África e na América Latina. Movidos pelo jazz, cineastas do movimento expressaram aquilo que não viam na produção contemporânea: os dilemas cotidianos e as vivências afro-americanas nos bairros mais pobres da região.
Além do longa, o IMS exibirá três curtas de Woodberry – A bolsa, Marseille après la guerre, Uma história de África – e um documentário sobre o poeta beatnik Bob Kaufman intitulado E quando eu morrer, não ficarei morto. De origem negra e judaica, Kaufman foi perseguido por questões raciais e políticas. Após uma de suas inúmeras prisões injustificáveis, o poeta fez um voto de silêncio que durou mais de uma década. O filme mergulha na vida do artista através de leituras de seus poemas gravados na época, fotografias, registros policiais e entrevistas.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Billy Woodberry conta mais sobre seu primeiro encontro com filmes brasileiros, sua relação com outros cineastas da chamada Nova Hollywood – como John Cassavetes, Shirley Clarke e Michael Roemer – e suas opiniões acerca do conceito de lugar de fala. Confira a entrevista na íntegra:
Você fala muito sobre como o Cinema Novo te influenciou, e para este programa você escolheu exibir Couro de Gato, de Joaquim Pedro de Andrade. Como você conheceu o cinema brasileiro e como isso influenciou sua visão sobre produção cinematográfica?
Eu aprendi sobre isso tudo no meu primeiro ano de graduação. Na época, por causa do Cinema Novo, acadêmicos estavam empolgados e começaram a encontrar ocasiões para exibir esses filmes. Depois conheci um amigo brasileiro que estudava cinema na UCLA comigo, Mário da Silva – que fez a fotografia de A bolsa –, com quem aprendi mais sobre cinema brasileiro e comecei a investir nesse interesse. Na escola de cinema, isso se tornou uma preferência para mim e para alguns dos meus amigos. Tínhamos um cineclube dedicado ao Terceiro Mundo onde eu via filmes latino-americanos. Na Bolívia, havia um ótimo grupo liderado por um homem chamado Jorge Sanjinés, que fez o filme Blood of the Condor. O interessante nesses filmes era que, ao contrário dos filmes comerciais de Hollywood, ou mesmo da Nova Hollywood, eles pareciam ter uma dimensão cultural, política e social que era diferente dos filmes que se poderia gostar e admirar por outros motivos, que eram principalmente sobre entreter e distrair as pessoas. Projetos mais abertamente políticos, como Hour of the Furnace, do argentino Fernando Solanas, eram apreciados por sua forma, por sua abordagem, que foi bastante influente para nós naquele momento. Mesmo que não pudéssemos imitá-lo, ficamos impressionados com a riqueza crítica e o dinamismo dessa retórica que foi bastante inspiradora.
Os filmes brasileiros foram uma influência duradoura e uma preferência. Glauber Rocha era um grande porta-voz e figura da época, e depois conheci mais pessoas e passei a apreciá-las, isso ficou comigo. Não sei se tentei fazer filmes exatamente como os deles, mas aprendi algo sobre a abordagem formal da linguagem e de temas e pessoas afro-brasileiras de uma forma que era mais atraente, radical e avançada do que a que eu encontrava nos filmes americanos.
Tive uma ocasião quando estava lecionando alguns anos atrás, em que um dos alunos – que era particularmente brilhante e também era afro-americano – tinha como interesse a América do Sul e os povos indígenas. Ele decidiu viajar pela região e começou a fazer filmes com comunidades tradicionais em diferentes países. Mas a reação dele quando viu alguns filmes do Cinema Novo e a maneira como os cineastas lidavam com o tema afro-americano foi um choque: “Como eles puderam fazer isso? Como eles tiveram a coragem ou a presunção ou a vontade de fazer isso?” Isso foi quase 40 anos depois que eu encontrei esses filmes, um contexto diferente, onde o discurso principal é sobre quem tem o direito de representar os outros. De volta aos Estados Unidos, ele recebeu muitas críticas não muito sofisticadas de seus colegas, que questionavam por que ele estava fazendo filmes com pessoas indígenas se ele não é indígena e não é da América do Sul. A explicação simples é que ele encontrou essas comunidades, as abordou com respeito, não para fazer um filme inicialmente, mas para aprender algo com elas. Ele se formou em antropologia na Universidade de Brown e depois viajou, teve esse encontro e as pessoas decidiram cooperar com ele. Eles gostaram do que ele fez, das perguntas que ele estava fazendo, da abordagem. Mas então ele ficou desanimado ao ponto de pensar que cursar cinema era inútil e foi embora.
Em uma declaração de Nelson Pereira dos Santos sobre o neorrealismo ele disse que o neorrealismo é uma forma de praticar uma política socialista de solidariedade com as classes populares e a sociedade. Nelson me explicou que Glauber tinha uma formação protestante, então sua natureza é protestar e se engajar. Se olharmos para a história do cinema, veremos que intelectuais e artistas muitas vezes vêm de origens diferentes. Eles têm consciência do fato de que não vivem a circunstância que representam, mas é uma escolha moral, ética e criativa. Decidir onde se posicionar em relação ao mundo e se identificar com um lado ou outro. Às vezes é contra nossas origens, mas é uma possibilidade, e a história está cheia de pessoas que fizeram essa escolha.
Ao assistir a Bless Their Little Hearts, senti que você se inspira muito no Neorrealismo Italiano e na Nouvelle Vague, mas também, nos Estados Unidos, em John Cassavetes, sobre quem não vi você falar em entrevistas que li. O que você acha dele?
Acredito que as pessoas assumam isso porque há uma espécie de estilo de improvisação nele, que se assemelha àquele de Uma Mulher sob Influência, com Gena Rowlands e Peter Falk, mas não foi a minha referência. Até mesmo a câmera na mão da cena de briga em Bless Their Little Hearts foi uma referência ao cinema cubano e ao cinema brasileiro, e não estou dizendo isso porque estou no Brasil, mas acredito que seja aqui onde o recurso foi melhor utilizado em filmes.
Eu entendo porque as pessoas pensariam que tem a ver com Cassavetes, mas o filme dele que gosto muito é Shadows. Para mim, há uma relação genealógica entre Shadows (1959), The Cool World de Shirley Clarke (1963) e Nothing But a Man de Michael Roemer (1964). Para mim, esses são progenitores úteis para pensar em um “novo cinema negro” nos Estados Unidos. Não é uma questão de se as pessoas que o fizeram eram negras, porque elas não fizeram esses filmes sozinhas, o cinema é uma arte colaborativa.
Eu não agi sozinho em nenhum dos meus filmes. Em Bless Their Little Hearts, são aquelas pessoas que constroem aquelas relações que você vê em tela. Se eles não me concedem sua presença e sua voz, não tenho nenhum assunto, nenhum filme, nenhuma substância. Então, esses filmes – Shadows, The Cool World e Nothing But a Man – foram colaborações entre o diretor de fotografia, o roteirista, os produtores, os criadores e as pessoas que atuam e que podem trazer o sentimento, o movimento, a maneira desses filmes. Então, para mim, são exemplos úteis. Eles também têm uma espécie de afinidade com um certo período da música jazz, assim como eu em meus filmes.
Um dos pequenos filmes que exibimos na Carta Branca no IMS é In the Streets, de Helen Levitt, Janet Loeb e James Agee. Eles fizeram esse filme juntos e depois, em 1948, fizeram outro chamado The Quiet One, que é sobre um menino jovem, de uns 12 anos, que está com problemas e é enviado para um internato. Era uma espécie de escola liberal para onde crianças problemáticas iam, mas era um lugar humanista. Para mim, esse filme é a origem dos outros três que mencionei. Shirley Clarke me contou que essas pessoas, nas décadas de 1940 e 1950, estavam fazendo seus filmes com câmeras excedentes da Segunda Guerra Mundial e estoques de filmes supérfluos. Eles faziam parte desse tipo de cinema independente de Nova York, antes do movimento chamado de Novo Cinema Americano, e ajudaram a inspirar e convencer pessoas mais jovens de que você poderia fazer um filme com muito pouco.
O final de Bless Their Little Hearts, conforme escrito por Charles Burnett, foi alterado por você durante as filmagens. Em outra entrevista, você disse que passou a acreditar e aceitar que, se você quiser falar sobre política no cinema, não seria tão interessante ser tão direto. Acredito que seu final ressoa essa ideia. Qual pensamento estava por trás dessa mudança?
Talvez tenha sido falta de imaginação ou qualquer coisa assim. Eu pensei no final dele e acho que poderia ter sido bonito, mas não consegui descobrir como fazê-lo. Conforme fazíamos o filme, o material começou a dizer para nós que estava indo em outra direção. Então, tentei ter alguma fidelidade com ele, mas não pintar seus rostos de palhaço para chamar a atenção, como no roteiro de Charles. Ironicamente, quando fizemos aquele filme, eu não acreditava nisso, mas, pouco tempo depois, as pessoas estavam se vestindo de Estátua da Liberdade, de sanduíches e coisas do tipo, acenando com placas para vender seus produtos. Era assim que eles estavam ganhando a vida. Mas, quando ele escreveu aquilo, eu pensei que fosse fantasioso e não precisava ir por esse caminho.
Embora eu aprecie cineastas que falam sobre política de maneira muito direta, como Jean-Luc Godard, sinto que há uma força especial em fazer isso ao focar na vulnerabilidade dos personagens e atores, e nos detalhes, como você faz. Como você conseguiu dizer tanto com tão poucas palavras?
A cooperação das pessoas com as quais estou trabalhando é principalmente como eu faço isso. Eu admiro absolutamente todas essas pessoas que falam de maneira eloquente e direta ou com algum tipo de ironia e acidez, como Jean-Luc Godard, ele é o mais versátil e radical de todos, não vejo como alguém poderá substituí-lo. Mas, na minha experiência, trata-se dos seres humanos com quem se trabalha, porque, de certa forma, a política que alguns professam está sendo vivida por pessoas de verdade. Elas estão vivendo suas pequenas histórias épicas, e você apenas permite isso no seu filme. Eu sei que essa é uma ideia que compartilhei e falei algumas vezes com Charles, mas ele tinha essa ideia de que as pessoas vivem em histórias muito grandes e não têm a menor ideia disso. Talvez, se você pensar que eles estão vivendo uma grande história, você lhes dê o respeito e o espaço para fazer isso, e então outras pessoas como você, pessoas sensíveis, percebam que essas pessoas são dignas da minha atenção enquanto cineasta e espectador.
Para finalizar: para você, qual é a importância do cinema na mudança social?
Em um momento como este, você pode ir a uma cinemateca ou a algum desses serviços de streaming fora do mainstream, você tem acesso a filmes que abrangem toda a história do cinema. Se você for ao Museu de Amsterdã, no site, eles disponibilizam muitos filmes e você pode assistir tudo de graça. Você pode assistir a todos os curtas que restam dos filmes de Dziga Vertov no Museu de Cinema da Áustria online. O que isso significa? Significa que alguém pode ter acesso a grande parte da história anterior e não precisa necessariamente frequentar uma escola de cinema para fazer isso.
O fato de que o cinema brasileiro está neste momento muito vibrante e político, com jovens começando, fazendo muito mais filmes do que em certos períodos em que havia dificuldades para produzi-los, é muito bom. Mesmo alguns dos principais cineastas enfrentavam problemas para realizá-los, mas parece que, com os recursos que o país gerou, ainda há valor e interesse. Os Estados Unidos viveram algo semelhante, mas as escolas de cinema formaram muito mais pessoas do que a indústria comercial poderia absorver. Essas pessoas começam e, com sorte, podem continuar. Em um sistema capitalista, só se pode absorver tanta capacidade criativa em determinado momento. Espero que isso não leve apenas à frustração, mas a uma saída criativa. Fico feliz por todos esses jovens cineastas que se tornam profissionais.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.